Operário politicamente consciente, soldado revolucionário, militante comprometido, amigo do seu amigo. Um vislumbre biográfico de quem sempre se bateu por alternativas ao capitalismo e por uma sociedade sem classes.
[Esta é a segunda parte da série Anatomia de um Homicídio.]
1984. O Bar das Palmeiras estava longe de ser aquilo que se viria a tornar anos mais tarde. Era mais um espaço onde se bebiam umas cervejas e se organizavam uns jantares. Havia mesas, colunas de som, um balcão, cartazes políticos colados nas paredes, pouco mais. Tocavam-se músicas de intervenção, cantavam-se canções de Sérgio Godinho, nada que gerasse muita confusão. Era um espaço para poucos, que se queria acolhedor.
No andar de cima, o filho de Eduarda, João Salaviza, então com três meses, dormia numa alcofa no primeiro andar. As garrafas de cerveja acumulavam-se a um canto e a caixa do dinheiro não enchia, à semelhança de tantas outras noites. Era para ganhar uns trocos, se tanto, nada mais. “A meio da noite já não se cobrava a ninguém. Abríamos cervejas, depois a caixa não tinha quase nada”, recorda hoje Eduarda Manso, uma das gestoras do Bar das Palmeiras.
As horas foram passando e, para quem não tinha carro e o seu destino era bem fora do centro de Lisboa, havia que se fazer à estrada em direção à estação de comboios do Rossio. O objetivo era apanhar o último comboio desse dia para Sintra. “Eu, o Maçarico e o Zé pegamos na alcofa, cada um a segurar por um lado e a correr pelo Rossio com o bebé. Ela [Eduarda] só berrava “ai o meu filho!’”, conta, entre risos, o pai Edgar Feldman. “E eu a ver que o puto levantava voo”, acrescenta Eduarda.
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José Carvalho, contam, adorava crianças, de se meter com elas, e gostava de chocar, principalmente pessoas que se regiam por padrões sociais rígidos. Quando João fez um ano, Eduarda e Edgar organizaram uma pequena festa em sua casa. Convidaram os avós, umas tias e quatro amigos, um deles o Zé. “Ele chega lá com aquele ar, cabelo tipo Frank Zappa, à frente de umas tias bem vestidas. Pega no João, cheira-lhe a fralda e diz ‘então, ó cagalhão, ‘tás todo cagado’. As tias ficaram chocadas”, recorda Eduarda, entre pequenas gargalhadas. O Zé era assim, sorri encolhendo os ombros.
Nascido em 1953, José Carvalho era filho único de uma família originária da Beira Alta. Nasceu e cresceu no bairro da Venda Nova, na Amadora, às Portas de Benfica, e os seus pais, Custódio Carvalho e Isabel da Conceição, começaram por ter uma banca de fruta e legumes no mercado do bairro, até mudarem a banca para um outro mercado na Avenida das Forças Armadas, perto de Entrecampos. Era onde trabalhavam em outubro de 1989.
José Carvalho ajudava-os constantemente com a banca, daí os seus amigos do bairro lhe terem dado a alcunha “Zé das Couves”. Começou por odiá-la, mas acabou por acarinha-la e adotá-la. No bairro era o Zé das Couves; nas andanças políticas era o Zé da Messa, nome da fábrica de máquinas de escrever onde trabalhou por mais de uma década.
Com o quinto ano de escolaridade, José Carvalho ingressou por algumas semanas na escola comercial, mas abandonou-a depois das férias de Natal de 1967. Não queria continuar a ser um encargo financeiro para os pais e, por isso, entrou na fábrica da Messa, em Mem Martins, com apenas 14 anos. Lá aprendeu e cresceu, a fábrica tornou-se a sua segunda casa, os seus camaradas operários uma nova família, por mais diferendos que pudessem ter, e tiveram muitos.
O jovem operário metalúrgico entrou em contacto com as condições da classe operária no chão da fábrica e radicalizou-se, interessou-se cada vez mais por política. A ditadura do Estado Novo, na altura já liderada por Marcello Caetano, dava os últimos suspiros. O regime estava podre, suspeitava-se que não iria durar muito mais tempo, sem se saber como terminaria.
Terminou pelas armas de um movimento composto pela hierarquia intermédia das Forças Armadas, principalmente do Exército, a 25 de Abril de 1974. As ruas politizaram-se e José Carvalho acompanhou-lhes os passos nas lutas da fábrica. Enquanto sucessivas manifestações, comícios e assembleias de fábrica e de bairro mantinham o povo na rua, os quartéis agitavam-se e ninguém queria continuar a mandar os seus jovens rapazes para África. Desejava-se que os soldados regressassem o mais depressa possível de uma guerra que há 13 anos tentava travar o progresso da história. O serviço militar obrigatório foi suspenso, mas não tardou a que fosse reativado.
Nos últimos meses de 1974, José Carvalho foi convocado para cumprir o serviço militar no Regimento de Infantaria de Queluz, em Lisboa. Depois de ter sentido na pele a falta de condições dos trabalhadores na linha de montagem, chegou a vez de o sentir no papel de soldado raso no quartel. Foi aí que entrou pela primeira vez em contacto com um pequeno grupo trotskista que se legalizou depois como partido, a Liga Comunista Internacionalista (LCI), fundada em dezembro de 1973 e pertencente à IV Internacional. O jovem metalúrgico transformado em soldado deu mais uns passos na radicalização, mas ainda era cedo para agir nas casernas. E ele era um homem de ação.
Heitor de Sousa ainda hoje se lembra como conheceu José Carvalho. O golpe de 11 de Março de 1975 tinha acabado de acontecer e a então LCI (partido que ao juntar-se em 1978 ao Partido Revolucionário dos Trabalhadores criou o PSR) procurava uma sede para ocupar. Há semanas que militantes seus andavam à procura de uma casa vazia. Finalmente a encontraram na Rua da Palma: um palacete do século XIX que encaixava na perfeição no que precisavam. O palacete, que já não tinha janelas ou portas, seria em breve demolido por ordem dos seus donos, que estavam fora do país. Não iriam reivindicar a propriedade da casa quando o país estava em convulsão política. Era uma ocupação sem riscos.
Na noite de 11 para 12 de março, militantes da LCI anteciparam-se ao partido MRPP, que também a andava a namorar, e ocuparam-na. Dezenas de militantes e simpatizantes dormiram na casa por vários dias para garantir que não a perdiam e, perante a suspeita de o MRPP poder reagir violentamente, os PSR apressaram-se a ligar aos seus simpatizantes para se lhes juntarem. “Havia para aí umas 40 pessoas a dormir no chão à luz das velas”, recorda Heitor, agora membro do Bloco de Esquerda e ex-deputado. “O Zé estava na organização em Lisboa, conheci-o a 12 de março, quando cheguei para ajudar.”
As relações entre os dois estreitaram-se pouco depois. Ao ser um dos primeiros funcionários da LCI, Heitor foi destacado para fortalecer o núcleo da Venda Nova-Amadora, onde Zé Carvalho militava. “Na altura, ele já estava na tropa, mas assistia às reuniões.” Uma relação que continuou nos meses e anos seguintes, a começar pela Frente de Soldados e Marinheiros Revolucionários (FSMR), passando pelo coletivo Soldados Unidos Vencerão e terminando no apoio à luta sindical e ao Movimento Tropa Não.
A tentativa de golpe de direita a 11 de Março de 1975 virou o país radicalmente à esquerda. Os trabalhadores da banca forçaram a sua nacionalização, as fábricas ficaram sob controlo dos trabalhadores, casas devolutas foram ocupadas por quem não tinha um teto e a hierarquia militar começou a tremer entre os portões dos quartéis. Depois de a palavra de ordem “nem mais um soldado para as colónias” se transformar em lei, os soldados queixavam-se das condições em que cumpriam o serviço militar.
A LCI agregou então algumas dezenas de militantes que serviam nas Forças Armadas e criou a Frente de Soldados e Marinheiros Revolucionários, desenvolvendo trabalho clandestino, principalmente com a distribuição dos 12 boletins chamados A Caserna. José Carvalho era um dos que os distribuíam. Defendiam a unidade entre operários e soldados no combate político, reivindicavam transportes gratuitos e tentavam fazer a ponte com outras organizações. Essa rede inicial desembocou depois nos Soldados Unidos Vencerão (SUV), um movimento publicamente mais forte e alargado.
Publicamente anunciado a 7 de setembro de 1975 no Porto, o coletivo auto-organizado Soldados Unidos Vencerão apresentou-se como “uma frente unitária anticapitalista e anti-imperialista” para lutar, “com todos os trabalhadores, pela preparação de condições que permitam a destruição do Exército burguês e a criação do braço armado do poder dos trabalhadores: o Exército Popular Revolucionário”. Os seus elementos atuavam clandestinamente dentro dos quartéis, divulgando propaganda e incentivando a criação de comissões de soldados. Punham em causa a hierarquia nos quartéis e por isso eram obrigados a esconder as suas identidades por ameaça de represálias. Uma das imagens mais presentes na memória coletiva sobre os SUV é a de três soldados, todos com o rosto escondido por um saco de pano preto com três furos, estarem a ler uma declaração em frente às câmaras.
O coletivo foi politicamente apoiado (e disputado) pela LCI e pelo Partido Revolucionário do Proletariado (PRP), de Isabel do Carmo, e tinha como inspiração a revolta dos soldados e marinheiros russos em 1917. O jornalista Ferreira Fernandes, José Carvalho e Heitor de Sousa foram três dos fundadores. “O manifesto de soldados e marinheiros é muito influenciado pela vertente internacionalista de antimilitarismo”, ressalva Heitor. “Os núcleos funcionavam em completa autonomia. Aquilo era auto-organização.”
“Houve muitos conflitos por causa das condições miseráveis em que os soldados viviam. Os marinheiros não tanto, porque os SUV não chegaram a entrar na Marinha, ou entraram muito marginalmente”, conta Heitor. “Essa luta por melhores condições de vida dos soldados permitiu a auto-organização dos SUV. O Zé fazia parte desse comité de soldados de Queluz, era um quadro antimilitarista, fazia parte das manifestações”, ajudando a organizá-las.
Ainda que o coletivo tenha sido criado por soldados rasos, depressa surgiu um debate sobre se oficiais de extrema-esquerda o poderiam integrar. Foi decidido que sim, mas estariam em pé de igualdade com os soldados, não haveria divisas. A partir daí, a palavra espalhou-se e passaram a ser uma ameaça ainda maior para a hierarquia. As duas manifestações dos SUV, a de 10 de setembro de 1975, no Porto, com dois mil soldados nas ruas, e a de 25 do mesmo mês em Lisboa, mostraram como o coletivo era uma crescente ameaça à ordem nos quartéis.
Então, e ainda antes do golpe de 25 de novembro de 1975, as altas chefias militares expulsaram vários soldados das Forças Armadas na esperança de decapitar o movimento. Um deles foi José Carvalho. “Quando foi expulso da tropa, em outubro, o Zé voltou à fábrica com um prestígio ainda maior”, recorda Heitor.
O 25 de Novembro pôs fim ao Processo Revolucionário em Curso (PREC), as instituições e a política nacional estabilizaram, houve eleições legislativas e a contrarrevolução de veludo substituiu a euforia popular. José Carvalho fez parte da luta contra essa contrarrevolução, desta vez nos nove anos que se seguiram, na fábrica cujos cantos conhecia como a palma da mão.
Em 1977, a economia portuguesa mostrava sinais de fragilidade e, nesse mesmo ano, o governo PS-CDS pediu a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI). Foi a inauguração das medidas de austeridade no regime democrático por imposição externa: subiram-se as taxas de juro, restringiu-se a concessão de crédito, desvalorizou-se o escudo, fizeram-se cortes orçamentais e os aumentos salariais tinham de ficar 20% abaixo do ritmo da inflação. Os trabalhadores sofreram, as pequenas e médias empresas perderam liquidez. As greves não pararam e postos de trabalho desapareceram.
José Carvalho juntou-se aos trabalhadores da sua fábrica e tornou-se conhecido por acompanhar os seus camaradas nas greves, nos piquetes, na contestação à hierarquia. Fundada em 1958, a fábrica da Messa era o principal empregador (1700 pessoas) em Mem Martins, uma zona industrial em Sintra, e já tinha uma longa tradição de luta. A Messa era a maior empregadora no concelho.
A liberdade que o 25 de Abril trouxe fez com que os trabalhadores de outras fábricas se juntassem à luta na Messa, que a 24 de abril já estava em conflito aberto com a administração de então. A unidade dos trabalhadores avançava a todo o vapor.
Logo a 9 de maio de 1974, os operários, entre os quais Carvalho, que ainda não tinha ido para a tropa, denunciaram em plenário as prepotências dos chefes, recusaram-se a aumentos nas cadências de produção, declararam guerra aos prémios e às horas extraordinárias, exigiram as 40 horas semanais e opuseram-se aos despedimentos repressivos. O plenário lançou a semente para uma comissão operária permanente, oficialmente constituída uma semana depois.
A administração da fábrica rejeitou as reivindicações dos trabalhadores e estes entraram em greve, ocupando os gabinetes e as linhas de montagem por 12 dias. Para fortalecer a consciência de classe e o processo de luta, os operários publicaram duas edições do Jornal do Trabalhador da Messa. A administração cedeu, mas não em toda a linha: o salário mínimo na Messa passou para os 5.500 escudos (hoje equivalente a 932 euros, com a inflação) e o horário para as 45 horas semanais, quando antes eram 48 horas e meia. Quem menos recebia na fábrica saiu vitorioso e a unidade dos operários foi reforçada para lutas futuras, que regressaram logo em 1975, quando a administração propôs um ‘plano de viabilização’.
Por baixo dos constantes embates com o patronato, houve uma outra confrontação, desta vez com o PCP. Os comunistas opunham-se à criação das comissões de trabalhadores, queriam que os sindicatos fossem o principal e único instrumento de luta operária, e outros trabalhadores, entre os quais Carvalho, defendiam que fossem os próprios operários da fábrica a decidirem, mesmo que por representação.
“Depois de muita luta contra os gajos do sindicato, foi criada [em 1976] uma comissão de trabalhadores, da qual o Zé fazia parte, mas que a maioria era do PCP”, recorda Heitor. Foi um meio termo, continua, que criou uma “situação de conflito permanente”. O então funcionário da LCI lembra-se bem por, ao entrar para a direção e comissão política do partido, ter ficado responsável pelo acompanhamento do trabalho sindical. “O Zé falava muito das questões de conflito com os sindicatos, da democracia na fábrica, das comissões de trabalhadores”, pois era um quadro operário militante. Foi, durante vários anos, o único quadro dirigente com raízes operárias da LCI e, depois, do PSR.
A empresa foi alvo de plano de viabilização em plano de viabilização nos dez anos seguintes, perdendo consecutivamente trabalhadores, e José Carvalho esteve no centro das lutas que se seguiram. Pelo meio, segunda entrada do FMI em 1983. Mais austeridade, mais desvalorização da moeda, mais cortes orçamentais, mais desemprego. Mais lutas laborais.
A luta política orientava a vida de Carvalho e as greves tornaram-se parte do seu dia a dia. Por muitas vezes não ter transporte para casa, ficava numa casa género comuna em Mem Martins, mesmo próxima da Messa, nas Mercês. Nunca lá viveu com Eduarda Manso, José Falcão e José Martins, mas era uma presença assídua, ora durante a semana ora aos fins de semana. Quando lá pernoitava, dormia no sótão, e ao acordar, dedicava-se ao jardim da casa. Gostava muito de catos e de suculentas, chegava mesmo a roubar plantas de outros jardins para fazer propagações. E sempre que havia algo partido na casa, ele tratava do assunto. Era, dir-se-ia, um mãozinhas.
“A casa era do pai de um amigo nosso e nós estávamos lá a viver”, éramos sete a pagar a renda, diz José Falcão, militante do PSR e amigo próximo de Carvalho. “Era uma casa para toda a gente.” A sala era tão grande, conta Falcão, que lá cabiam 40 pessoas quando davam festas.
Uma das imagens mais vívidas que Eduarda Manso ainda hoje retém é a do jovem metalúrgico chegar nos sábados de manhã carregado com couves, frutas, batatas. Por vezes trazia umas frutas roubadas dos quintais dos vizinhos, ia à chinchada, como lhe chamavam; noutras manhãs vinham da banca dos seus pais. “Vinha todo contente e nós esfregávamos as mãos, íamos ter almoço”, conta. “O Zé era muito amigo do seu amigo”, reforça Edgar Feldman. “Era um gajo do caraças”, realça José Falcão.
Os piquetes de greve dos trabalhadores não pararam e, apesar dos seus esforços, os tempos estavam contra eles. A fábrica, ainda que tivesse capacidades próprias de desenvolvimento e conceção de produtos, não conseguiu acompanhar o avanço tecnológico. A maior parte da sua produção destinava-se à exportação, principalmente para o mercado norte-americano, e os computadores começaram a entrar no mercado. Ao mesmo tempo, as outras empresas ocidentais de máquinas de escrever deslocalizaram a produção para outros países, onde a mão-de-obra era mais barata. Eram demasiadas pressões.
A situação foi-se arrastando, degradando, e a empresa perdeu competitividade, a par e passo com a má gestão privada. Os atrasos salariais passaram a ser recorrentes, os trabalhadores lutavam, mas pouco podiam fazer. O governo acabou por intervencionar a fábrica, ainda assim pouco mudou. A Olivetti, empresa italiana fabricante de computadores, ainda ponderou comprá-la para a transformar numa linha de montagem de computadores, registadores e balanças de precisão, mas acabou por optar por Tarrasa, em Barcelona.
A Messa fechou portas em 1985, um claro exemplo da desindustrialização que varreu Portugal na década de 1980. Mil pessoas ficaram desempregadas. “O Zé ficou até ao fim, até ao último momento. A fábrica teve um processo de luta que demorou pelo menos dois anos, em desagregação, com salários em atraso, remodelação”, reconta João Carlos Louçã, camarada e amigo próximo de Carvalho. “[A fábrica] Era a vida dele.”
O processo de luta marcou-o profundamente a nível político. Além de ter melhorado as suas capacidades de organização, nunca perdoou ao Partido Socialista a destruição da fábrica. “Sempre se recusou a considerar o PS um partido de esquerda. Naquela altura, e durante muito tempo depois disso, ainda tínhamos a ilusão da unidade de esquerda. Ele sempre achou que isso era uma treta”, acrescenta João Carlos Louçã. Não era, no entanto, um “sectarismo de bandeira”, continua, antes uma análise de quais os interesses que o partido acabava por defender quando a pressão aumentava: virava-se contra os trabalhadores. “A sua experiência era de serem traidores, de pessoas que acabaram com uma fábrica que foi uma grande parte da vida dele.”
Encerrada a fábrica, José Carvalho perdeu um pouco o pé e agarrou-se ao que podia: ajudava os pais com a banca, fazia os seus próprios sapatos e malas em couro, dedicava-se a pequenos biscates em armazéns de livros, aproveitou para tirar a carta de pesados. Tinha, sobretudo, mais tempo para a militância no PSR e para as suas campanhas, entre as quais contra o serviço militar obrigatório e o recrutamento de jovens. Era peça essencial na organização da ida da secção portuguesa aos acampamentos da IV Internacional.
Lia muito, contam vários amigos seus, e era um “organizador nato”, refere João Carlos Louçã. “Era um gajo de ação, com consciência de classe”, acrescenta Edgar Feldman. E, no entanto, não gostava de assumir a dianteira em termos de protagonismo, realça Heitor de Sousa, mas estava sempre “na linha da frente”. O que ele queria era o poder aos trabalhadores, a quem vivia do seu trabalho. E quanto mais democrático, verdadeiramente democrático, melhor. Tinha até uma costela anarquista, constata João Carlos Louçã.
“O Zé era um militante de base, mas, no final dos anos 1980, com a campanha antimilitarista, era uma pessoa com responsabilidades”, diz João Carlos Louçã, que fazia a ponte entre o movimento e o seu congénere espanhol. Carvalho pertencia, desde o último congresso do PSR, em dezembro de 1988, ao Comité Central e ao Secretariado do partido.
Se não era militante de base, continua Louçã, sentia-se como se fosse, e o PSR era uma organização pequena, que tinha perdido muitos militantes com a desesperança que se vivia na década de 1980 com a contrarrevolução de veludo. “Havia alguma pressão de definição de envolvimento e o Zé era uma pessoa que discutia com toda a gente, a todos os níveis. Podia ser chamado a uma reunião do secretariado do PSR para discutir aspetos práticos da sua atividade, mas situava-se sempre como não-militante”, relembra João Carlos Louçã.
Como assim? “Ele dizia que era antipatizante, a cena dele era ‘não sou militante nem simpatizante, sou antipatizante’, era a forma, num misto de brincadeira, de resistir aos vínculos formais”, continua. Depois do seu assassinato, e muito por causa da necessidade de simplificar das notícias, construiu-se a história de ser “militante, dirigente”. “Era militante porque militava, mas não era formal, nunca quis ser militante formal, apesar de pagar quotas.” Uma contradição própria de José Carvalho, dir-se-ia.
A militância para si era na rua, não era tanto teórica. Queria ação, não ficar a discutir teoria numa sala fechada. Queria ir ter com os jovens, mostrar-lhes alternativas ao capitalismo e à sociedade de classes. E dava sempre uma ajuda quando precisavam dela, daí ser de extrema confiança entre os seus camaradas. Se não tivesse sido assassinado a 28 de outubro de 1989, a direção do PSR ia, no dia seguinte, convidá-lo para ser funcionário na reunião do secretariado. Ia ficar responsável pelo trabalho político dos núcleos do partido que surgiam fora de Lisboa e Porto, fruto dos seus esforços de construção da ala jovem da força política.
Este trabalho de construção deu um grande salto a partir do Bar das Palmeiras. Em 1984, o rés-do-chão da sede era alugado pelo PSR a uma pessoa que fazia uns almoços, retirando daí algum dinheiro. Teve algum sucesso e, a partir de certo momento, os três militantes do PSR Eduarda Manso, Maçarico e João da Ponte aperceberam-se que estava ali uma cozinha funcional.
Pararam de arrendar o espaço, apetrecharam-no com o que arranjaram e começaram a abri-lo aos fins de semana a pessoas conhecidas. A ideia era ser um espaço confortável, transformar a sede num local de convívio. “No início era mais música de intervenção. Se alguém sabia tocar, sabia. Não recebíamos nada, estávamos desempregados”, recorda Eduarda.
O desgaste de gestão acumulou-se, encontraram trabalho e os trocos que recebiam não compensavam a dedicação que a manutenção de um espaço daqueles exigia. “Com as dificuldades, o miúdo, sem carro, aquilo tornou-se inviável para mim e colocou-se a questão de quem teria bom perfil para entrar, até por causa de quem estava desempregado.” Daí que em 1985, 1986, Eduarda tenha ido a Benfica encontrar-se com José Carvalho para lhe fazer uma proposta: e se ocupasses o meu lugar no Bar das Palmeiras? Carvalho aceitou.
A partir desse momento, o Bar das Palmeiras foi muito mais dinamizado. José Falcão juntou-se no contacto com as bandas, José Carvalho conhecia outras ou quem podia fazer a ponte entre eles. Bandas de rock, de punk, de hardcore e de música mais acústica ensaiavam lá, depois começaram a dar concertos. Cobravam-se à entrada bilhetes com preço simbólico.
Houve um aproveitamento mútuo entre as bandas e o PSR, conta João Pedro Almendra, fundador da banda Kú de Judas e depois vocalista da banda punk Peste & Sida. As bandas queriam um espaço para ensaiar e atuar, o partido queria tornar o Bar das Palmeiras atrativo. “Nada político, tudo boa vontade. Tal como não era algo que se pudesse dizer elitista ou de massas, era um movimento de jovens que queriam tocar”, disse-nos o músico. Zé da Messa, Maçarico, João Correia e José Falcão “foram importantes enquanto agentes promotores de Cultura”.
O bar abriu-se aos jovens, tornou-se um conhecido polo da vida noturna de Lisboa e, conta Almendra, alguns músicos chegaram a pedir ao PSR um espaço na sede, adjacente ao Palmeiras, para se reunirem e discutirem ideias em conjunto. Queriam, coletivamente, “tornar real o que eram só palavras de ordem e transformá-las em razões válidas para se fazerem concertos”. O bar podia, portanto, ser algo mais: um complemento social à luta política.
Em 1987, o PSR continuava a ser um partido nas margens da política nacional. Nas legislativas nacionais de 1987 recebeu apenas 32 mil votos (0,57%) e, nos anos anteriores, as suas coligações eleitorais com a União Democrática Popular (UDP) redundaram em falhanço, até prejudicaram as relações entre as duas forças políticas. A unidade de esquerda, tão defendida e desejada, não resultou. Era, então, necessário incluir-se na agenda política um tema que destacasse o partido, que lhe permitisse chegar aos mais jovens, até para renovar os quadros do partido. O tema seria o serviço militar obrigatório (SMO).
No final de 1987, inícios de 1988, o Movimento Tropa Não deu o seu primeiro grande passo com a publicação de um Guia Antimilitarista, passando depois para a organização de debates em escolas. O seu principal objetivo era pôr fim ao SMO que forçava os jovens de 20 anos a servir entre 18 a 24 meses nas Forças Armadas, incutindo-lhes valores patrióticos e de hierarquia. O SMO terminaria a 19 de novembro de 2004 pela mão da direita no governo, para profissionalizar as Forças Armadas.
Entretanto, no final da década de 1980, as notícias de jovens soldados mortos em recrutas e treinos eram uma constante: “Comando afogado não se atirou à àgua”, “Comandos: 30 mortos em 8 anos”, “Comandos mortos em Santa Margarida foram vitimados por ‘excesso de generosidade’”, “Morreu o fuzileiro ferido no simulacro no rio Tejo”, “Cabo mata soldado a brincar com a arma”, “Soldado morreu com um tiro de G3”.
Se a direita e o PS optavam na altura por ignorar o debate e o PCP por defender o trabalho sindical nos quartéis (os militares não podiam integrar sindicatos), a extrema-direita era a grande defensora do SMO, ao representar os valores por si propagados: hierarquia, patriotismo, nacionalismo. E estava a ganhar um novo dinamismo desde a criação, em 1985, do Movimento de Ação Nacional (MAN).
O MAN foi a primeira organização da extrema-direita portuguesa formada no regime democrático pós-25 de Abril com o objetivo de perseguir não portugueses e não brancos e representou o evoluir das posições racialistas da extrema-direita portuguesa, que até então defendia o Portugal "pluricontinental" e "multirracial". Esta evolução foi resultado da independência das colónias e da viragem de Portugal para a Europa, inspirando-se nas extremas-direitas europeias mais violentas, no movimento skinhead internacional.
Os grupos de skinheads multiplicaram-se em Portugal, principalmente na zona metropolitana de Lisboa e no Porto, e viam no MAN a sua estrutura política. Registaram-se agressões a cidadãos de origem indiana, a negros, a punks, a homossexuais e a militantes de esquerda, e o PSR tornou-se um dos seus alvos.
Esses jovens de cabeças rapadas gostavam das mesmas músicas (apesar da contradição com as letras) que os jovens simpatizantes e militantes do PSR. Começaram a frequentar os mesmos bares com e sem concertos ao vivo: o Rock Rendez-vous, a Teia, a Usina e, mais tarde, o Bar Oceano.
O Bar das Palmeiras tornou-se o epicentro da contestação ao SMO com a realização de concertos antimilitaristas todas as sextas-feiras à noite. As bandas praticavam, os jovens passavam um bom bocado e os militantes do PSR apresentavam-lhes a sua perspetiva anticapitalista do mundo, o seu programa político. Se os influenciassem na forma de olhar para a realidade, melhor; se os recrutassem, excelente.
Não admira, portanto, que a defesa/contestação do SMO se tenha tornado uma nova clivagem entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Contestar o SMO era, no fundo, enfrentar esta nova extrema-direita. E ambas as barricadas sabiam-no. “Havia uma tensão grande, de dois mundos que se cruzavam pela música e pelos locais. Havia uma tensão latente”, recorda João Carlos Louçã.
Ao ser fundador e um dos principais dinamizadores do Tropa Não e do Bar das Palmeiras, a par com José Falcão, José Carvalho tornou-se uma referência para a extrema-direita, recebia ameaças. Semanas antes da noite em que foi assassinado, José Carvalho e João Carlos Louçã estavam num concerto no Bar Oceano, onde a presença de skinheads não era estranha, quando tiveram de fugir.
“Há uma situação de encontrões na pista de dança em que o reconhecem como o gajo das Palmeiras e nós tivemos de bater em retirada. O meu carro ainda apanhou com uns calhaus, porque a fuga foi no meu carro”, relembra-se João Carlos, na altura assistente de produção. Carvalho não queria ir-se embora, queria ficar a falar com eles, tentar mostrar-lhes outra perspetiva. “Fui eu a puxar o Zé, ‘vamos embora daqui já’.”
Não foi a única vez que Carvalho se cruzou com skinheads. Jaime Pinho, militante do PSR e seu amigo próximo, recorda-se de uma situação, poucos meses antes do homicídio, em que estavam os dois no Bairro Alto, zona muito frequentada por skinheads, quando passaram em frente a um bar. Carvalho foi mais uma vez reconhecido por cabeças rapadas e ameaçado de morte. Mandou-os dar uma curva.
As ameaças eram proferidas de tempos a tempos, mas Carvalho, conta João Correia, seu amigo de infância no bairro da Venda Nova, desvalorizava-as. Como ele as desvalorizava, porque era rijo e não se acobardava, o amigo recorda-se que acabou por também as desvalorizar. “Não tinha medo do confronto, se bem que era um tipo que fazia tudo para não andar à porrada”, acrescenta Edgar Feldman.
José Carvalho era uma pessoa que tentava sempre conversar, mas naquela madrugada de 28 de outubro de 1989 não houve como.
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