O discurso antissistema da segunda vaga do punk português depressa atraiu skinheads de extrema-direita. Os cabeças rapadas eram presença incómoda nos espaços noturnos de Lisboa e divertiam-se a descer o Bairro Alto distribuindo violência gratuita. Nos concertos de punk provocavam, ameaçavam e agrediam. Foram tolerados até à noite em que mataram José Carvalho.
[Esta é a terceira parte da série Anatomia de um Homicídio.]
O excesso alcoólico da noite anterior tardava em sair do corpo e a viagem para Lisboa significava pelo menos seis horas de martírio. O melhor era esperar pelo último autocarro, o do final do dia, e dormir no caminho. Decidiram então ficar mais um dia no Porto para recuperarem e passearem pela cidade. Ao passarem à porta de uma discoteca, Orlando Cohen, João Almendra e uma amiga avistaram mais de dez skinheads de extrema-direita. Eram os mesmos do concerto da noite anterior.
Os membros da banda Peste & Sida foram reconhecidos pelos cabeças rapadas, que depressa e em manada partiram no seu encalço para lhes bater. Cohen e Almendra tocaram em retirada e, sem conhecerem a zona, acabaram por se separar. Cohen finalmente pôde respirar fundo ao chegar a um acampamento de ciganos, mas Almendra foi apanhado e maltratado pelos skinheads. Só voltaram a encontrar-se na rodoviária, horas depois, para embarcarem para Lisboa.
A história tinha começado na noite anterior, um sábado, quando os Peste & Sida tocaram em Matosinhos. Não se pagava entrada, a banda era uma das favoritas e mais requisitadas do circuito punk português e estava em digressão para promover o seu disco mais recente, Portem-se bem. Foi um concerto com casa cheia e, no meio da plateia, estavam entre 15 a 20 skinheads a dançar aos empurrões e aos pontapés. “Abriram uma clareira, só eles é que andavam lá no meio a dançar”, recorda-nos Cohen.
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
Para os irritar, a banda mudou o alinhamento das músicas e tocou Pátria Sábia. “Quando começámos, os gajos ficaram furiosos, porque era uma música contra a tropa, contra os militares”. Os cabeças rapadas gritaram insultos, mostraram-se agressivos, mas a banda não parou de tocar nesse sábado de julho de 1989. Estavam no palco e nada lhes podiam fazer em frente de tantas pessoas. Daí que no dia seguinte, um domingo, ao reconhecerem Cohen e Almendra nas ruas do Porto, os tenham perseguido e agredido. Foi a vingança pela provocação e por terem ofendido quem servia orgulhosamente a pátria.
Naquela altura já se tinha normalizado que grupos de skinheads puxassem para si o centro das atenções em concertos e bares da cena alternativa, fosse em Lisboa ou no Porto. Os jovens rapazes de cabelo rapado e t-shirts brancas ou de padrão camuflado, botas da tropa e suspensórios a segurar as calças de ganga clara exteriorizavam o seu gosto pela música com provocações, empurrões, chapadas e pontapés. As suas brincadeiras não poucas vezes acabavam em confusão, barulho, vidros partidos e pancadaria. As salas de espetáculos e os bares com música ao vivo eram o seu recreio, onde podiam bater nos punks.
Com um nascimento prematuro no final da década de 1970, o punk português reabilitou-se e revitalizou-se nas franjas da cena musical ainda na primeira metade dos anos 1980. Inspirada sobretudo pelo que aparecia vindo de Londres e construída por uma geração com poucas memórias do fascismo e muitas promessas goradas do período revolucionário, a cena punk trouxe uma nova clientela aos antigos bares das baixas e dos centros históricos de Lisboa e Porto ao longo dessa década.
Os punks, com o seu aspeto maltratado e antiduche, não se importavam de dividir balcões com prostitutas ou mesas com os heavies. Olhados de soslaio, medravam na insalubridade e no convívio com a delinquência e a decadência, renegando as normas sociais do bom aspeto e da boa convivência, vistas como fachada de uma sociedade conservadora, hipócrita e podre. Só saíam das proximidades do Gingão, no Bairro Alto, ou das margens do rio quando havia concerto no Rock Rendez-Vous, aberto em 1982 no bairro do Rego, ao pé da Praça de Espanha.
Não eram os únicos na cena alternativa portuguesa. No Bairro Alto, ou nas suas ruas paralelas, paravam góticos, heavies, vangs, rockabillies e skinheads. Numa época em que a Europa e, especialmente, o mundo anglo-saxónico entravam à força por Portugal adentro, as juventudes dividiram-se em “tribos urbanas” segundo as influências que lhes chegavam ou que lhes faziam chegar. “Sou um animal na festa tribal”, cantavam os Mata-Ratos.
Uniam-se e separavam-se pelas referências musicais, pelo cabelo, roupa e linguagem que usavam, pelo que consumiam. Ao início, todos se misturavam, todos se conheciam dos liceus ou das vizinhanças, mas as águas não tardaram a separar-se à medida que as confusões foram subindo de tom.
Lisboa foi-se tornando pequena para tanta diversidade e no extremo de um dos espectros políticos estavam os skinheads, surgidos algures na primeira metade da década de 1980 entre a fauna juvenil. Tolerados nos bares, nas tascas e nos concertos pelo lucro em cerveja que significavam, divertiam-se a partir garrafas, a entoar cânticos obscuros pela supremacia branca, a provocar quem passava.
Depressa começaram a espancar, esfaquear e a ameaçar quem consideravam a degenerescência da sociedade: punks, heavies, homossexuais, pessoas racializadas, militantes de esquerda. Não era incomum fazerem arrastões pelas ruas do Bairro Alto abaixo, pontapeando e esbofeteando quem lhes aparecesse à frente.
A sua presença começou a ser cada vez mais notada, ainda que houvesse alguma ignorância sobre quem eram ou o que significava o cabelo rapado e a roupa militar. O desconforto era patente e os abusos cada vez mais recorrentes. Os problemas e as agressões repetiam-se sem consequências de maior. As águas teimavam em não se separar. O assassinato de José Carvalho, a 28 de outubro de 1989, traçou finalmente a linha.
A cena punk foi obrigada a encarar a verdadeira face da “skinada”. Ao virar da esquina para a década de 1990, o punk, ao se desdobrar em vertentes e subgéneros, assumiu uma nova abordagem aos palcos, às atitudes, às causas e às ruas. Descentralizaram-se os espaços e os seus intervenientes politizaram-se.
O fenómeno punk estava prestes a atingir o seu zénite, ou a rebentar de saturação, nos Estados Unidos e no Reino Unido, quando finalmente chegou a Portugal. Estava-se em 1977 e o pouco que chegava era a conta-gotas. O isolamento da ditadura, quebrado anos antes, e o conservadorismo ainda se faziam sentir e a música de intervenção ainda dominava o panorama musical nacional.
No Portugal desse ano, o disco estrangeiro mais vendido foi o Animals, dos Pink Floyd. Já o nacional, mesmo que à saída do PREC, foi a gravação de um espetáculo de Amália Rodrigues datado de 1955. À Eurovisão enviámos Portugal no Coração, de Ary dos Santos e Fernando Tordo, uma balada, interpretada por Os Amigos, sobre a dor de perder um irmão na Guerra Colonial e a extraordinária liberdade vinda da Revolução dos Cravos. Música de intervenção, fado e rock progressivo: os principais adversários dos primeiros punks portugueses.
O punk era diametralmente oposto a tudo o que já se tinha ouvido em Portugal. Dois ou três acordes, percussão seca e sem floreados, estrofe-refrão-estrofe, dois minutos a rasgar ou pouco mais que isso. Era um corte abrupto com o yé-yé e o pop-rock dos Sheiks ou de José Cid.
É comum dizer-se que a culpa foi dos Ramones, que aproveitaram toda uma vaga de gente farta de hippies e de disco-sound. O produto exportado aterrou em Londres e foi depois extraviado pelos Sex Pistols e pelos The Clash. Entre outros. Mas estes, a par do radialista português António Sérgio, são citados como as principais influências dos primeiros e segundos punks portugueses.
Os Sex Pistols tornaram-se, literalmente, a imagem de marca da atitude transgressora e niilista de uma pretensa geração que se dizia “sem sentimentos, sem divertimento e sem futuro”. Houve quem defendesse que o movimento morreu com Sid Vicious, o inábil e conflituoso baixista, que sucumbiu a uma overdose de heroína em 1978, depois de 55 dias na prisão a ressacar a frio. Tinha 21 anos. Cumpriu-se a autoprofecia do punk: a energia crua e absoluta de uma geração perdida à partida inevitavelmente desperdiçada num encadeamento de sucessos infelizes e abusos de drogas.
Os The Clash assumiram uma postura menos decadente, mais politizada e sincrética. Posicionando-se à esquerda, cantavam sem fatalismo sobre desemprego, repressão policial e racismo. Assumiram outros sons urbanos emergentes dos bairros de onde vinham, como o reggae e o dub da diáspora jamaicana, e denunciaram o crescimento da extrema-direita nas periferias das cidades britânicas. Sobreviveram aos derradeiros anos da década de 1970 e entraram nos anos 1980 a desbravar o que se quis chamar de pós-punk.
Num estúdio de rádio, rodeado de vinis e onde o fumo de consecutivos cigarros pairava denso no ar, António Sérgio espalhou a mensagem das novas vagas pelas ondas da rádio. Emitido nas madrugadas da Rádio Renascença entre 1976 e 1979, o programa Rotação era um dos maiores fenómenos entre a juventude portuguesa mais curiosa por música nova. António Sérgio deve ter sido o primeiro radialista a passar Iggy Pop ou Patti Smith numa rádio portuguesa. Era um escanção de canções das bandas e artistas que ainda ninguém conhecia. Trouxe os “sons da frente” do rock, do punk, da new wave, do pop-rock, até do jazz. Lá de fora cá para dentro. Apadrinhou o que cá se fazia e deu-lhe lugar na sua grelha, fosse pondo as cassetes a correr ou dando-lhe voz em entrevistas.
Formou o gosto e as tendências de mais de uma geração inteira de punks e ainda deu uma mãozinha na produção e distribuição dos trabalhos da primeira e da segunda vagas. Foi tão central que desempenhou um papel preponderante naquilo que se considera o momento original do punk português: a edição de uma coletânea contrafeita chamada Punk Rock ‘77 / New Wave ‘77, lançada em 1978.
Fizeram-se umas 400 cópias vendidas a 300 escudos (hoje equivalente a 23 euros, com a inflação). A compilação juntava The Jam, Motorhead e Sex Pistols a outras bandas mais efémeras que não chegaram ao virar da década. A arte era feita à mão, com colagens de cabeças, lâminas, alfinetes e outros ângulos agudos. Encarnava o espírito punk. A maioria das cópias teve de ser destruída por causa de uma disputa de direitos de autor, iniciada pela editora Phonogram, mas o mal estava feito. O contágio tinha verdadeiramente começado.
Em 1977, numa espécie de prelúdio, formaram-se três bandas que até hoje disputam o lugar de primeira banda punk portuguesa: os Faíscas, os Minas & Armadilhas e os Aqui d’El Rock - com uma menção honrosa para os Raios & Coriscos. Filhos de boas famílias, “bem colocados na hierarquia social e/ou bem integrados nas esferas artísticas”, segundo Paula Guerra, socióloga e autora de As palavras do punk, os miúdos que integraram essas bandas tinham acesso privilegiado às novidades musicais das vanguardas do mundo anglo-saxónico.
Os Aqui d’El Rock mostraram logo ao que vinham com o single Há que violentar o sistema, cuja capa tinha um aviso do distribuidor: “PUNK”. De facto, é a primeira edição de música punk portuguesa, a única da década de 1970. Isto porque nem os Minas & Armadilhas nem os Faíscas deixaram qualquer canção gravada para além das que se conseguem distinguir nas gravações amadoras de alguns concertos. Ainda assim, parecem ter sido os primeiros a assumir a atitude punk, tão importante para a taxonomia.
O punk era marginal, não era do interesse da grande imprensa ou das editoras, e as bandas assumiram a lógica do-it-yourself nas fanzines, na roupa, nos panfletos, nos concertos. Criaram as suas próprias redes de partilha.
Os Faíscas desejavam uma rutura abrupta ao introduzirem em Portugal “música verdadeiramente rítmica e alta”, convidando as pessoas “violentamente a dançar”, porque em 1978 “não havia concertos, só havia convívios com grupos de baile”, contou Pedro Ayres Magalhães (um dos Faíscas, que depois criará os Corpo Diplomático, os Heróis do Mar e os Madredeus) em entrevista à socióloga Paula Guerra. As juventudes ansiavam radicalmente pela liberdade prometida no rescaldo da queda de um regime podre e rebelaram-se quando entenderam que o corte com o passado significava resignação, normalização e conforto.
Ainda que não quisessem ficar-se só por dois acordes, uma voz e uma bateria, os Faíscas assumiram a lógica rudimentar do do-it-yourself (DIY) sem saberem que isso tinha um nome em inglês. Traduzido para “faça você mesmo”, o DIY começou na bricolage e foi mais tarde apropriado pelo punk para designar um modo-de-fazer: a sua música, os seus panfletos, os cartazes que colavam nas ruas, a roupa que usavam, tudo de acordo com aquilo que já tinham ou podiam arranjar sem grandes custos. Um favor aqui, um excedente ali, um desenrasca acolá.
O punk era marginal, não era do interesse da grande imprensa que se dizia respeitável (o jornal Blitz ocupou depois um espaço de divulgação essencial) e, por isso, as bandas tinham de divulgar as suas músicas, concertos e visão do mundo pelas suas próprias mãos. Criaram-se algumas fanzines que circulavam por redes informais e alternativas. Duas das bandas que o fizeram foram os Faíscas e os Minas & Armadilhas. Ao mesmo tempo, as bandas caprichavam na roupa: “casacos daqueles dos fatos”, “roupa americana” e “do jazz” ou “sapatos em bico dos anos cinquenta”, porque “a imagem é uma mensagem”, acrescentou ainda Pedro Ayres Magalhães.
Sem o interesse de rádios ou editoras, o espetáculo ao vivo deveria então sintetizar tudo isso, como um teatro ou um ritual: ser rudimentar, cru, irreverente, provocatório e extravagante. Fosse no Brown’s ou na Beira Alta. Desses tempos, temos as memórias de quem os viveu, como a de João Aristides Duarte, presente no mítico concerto que a banda deu no Cine-Teatro do Sabugal, cidade na raia da Guarda.
Idos de Lisboa num pequeno Fiat 127, os Faíscas chegaram à vila beirã com brincos nas orelhas e os pseudónimos Rocky Tango, Dedos Tubarão, Jorge Lee Finuras e Gato Dinamite. Atiraram os ossos dos frangos que jantaram para o meio da plateia enquanto tocava a banda de abertura, um conjunto de baile da terra chamado Stradivarius, que lhes emprestou o sistema de som. Começaram o espetáculo com duas horas de atraso, durante o qual beberam todos da mesma garrafa de bagaço.
Tirando as histórias orais dessa noite, não há mais registos, sinal do amadorismo (mesmo que houvesse vontade de profissionalizar), da falta de equipamento e de interesse dos públicos e das editoras. Foi também uma consequência da identidade punk dessa altura e da fluidez das bandas e dos seus membros. O parco registo de memórias tornou-se um hábito do movimento e muitos conjuntos desfizeram-se em três meses, foram formados apenas para concursos de “música moderna” ou nunca chegaram a gravar sequer uma maqueta.
Mas as memórias dos concertos (em garagens, bares, cafés, boates, caves, cineteatros, arraiais populares), das sociabilidades, das trocas de conhecimentos, contactos, charros e bagaço perduram nos recontos de quem viveu esses anos frenéticos e frugais. Afinal, era isso que interessava. Tudo, ao mesmo tempo, naquele momento.
Esta primeira vaga do punk português compunha-se de gente que chegou à adolescência quando desmoronavam os pilares do salazarismo. Viveram o período revolucionário nos liceus, nas faculdades, nas discotecas, pela cidade. O sistema caíra, veio outro, este desta vez democrático, consolidado, europeu: “a coisa (...) que de tanto mudar continua igual”, como disseram os Aqui D’El Rock. Era preciso violentá-lo. Só que, entretanto, veio um ar de rock.
Em 1978, o Fundo Monetário Internacional (FMI) aterrou pela primeira vez em Portugal, a Abelha Maia entrou pelas casas adentro através da televisão, 124 reclusos fugiram de uma só vez da prisão de Vale dos Judeus e o pedido de adesão à CEE foi aceite. O país acelerou e o punk, apesar do seu pulsar, tardou a ressuscitar. O rock dominava.
Os Faíscas foram a primeira grande banda punk a sair de cena. Em 1979, transformaram-se em Corpo Diplomático, assumindo uma abordagem pós-punk e uma imagem e uma sonoridade mais cuidadas. Um ano depois, em outubro, os Minas & Armadilhas anunciaram a dissolução da banda e, meses depois, chegou a vez dos Aqui D’El Rock, sem que tivessem editado um longa-duração.
O fim destas bandas levou a um interregno. “O punk está definitivamente morto e enterrado” em 1980, escreveu Afonso Cortez, um dos autores do livro duplo Corta e Cola/Punk Comix. Talvez a energia crua dessas primeiras selvajarias punk, alimentadas a comprimidos para emagrecer (recheados de metanfetaminas) e analgésicos e ansiolíticos com cerveja, não coubesse num disco.
O punk podia ter morrido temporariamente, mas deixou sementes. No final de 1978, roadie dos Faíscas, Zé Pedro, pôs um anúncio nos classificados de um jornal em que dizia estar à procura de músicos para um “grupo punk”. Tinha feito um interrail pela Europa e viu o que por lá se passava. Foi a um festival punk no sul de França e voltou com um alfinete de dama atravessado na bochecha. A ele juntaram-se Kalú, Tim e Zé Leonel. Formaram os Delirium Tremens, mudaram de nome para Beijinhos & Parabéns e, talvez achando que a ironia não transparecia, acabaram por escolher ser os Xutos & Pontapés.
Só editaram o primeiro trabalho em 1982, com o apoio à produção do radialista António Sérgio. Lançado na ressaca da saída de um dos fundadores, Zé Leonel, por mau comportamento, chamaram ao álbum 78-82. A produção e mixagem cuidadas de Rui Novais, que também trabalhou com Táxi, Mler Ife Dada, Heróis do Mar e Street Kids, afastou os Xutos dessa raiz punk (ainda que sem a deserdar). Passaram a navegar entre o rock maduro e uma new wave que entretanto inundara as rádios. Era rock moderno que podia passar na rádio a horas decentes.
Por essa altura, 1981, explodiram os quase-veteranos UHF, que nunca foram punks apesar do cabedal e do rock "à flor da pele", e caiu de estrondo no panorama nacional o Chico Fininho de Rui Veloso, com o seu álbum Ar de Rock. O álbum homónimo dos Táxi tornou-se disco de ouro e o segundo mais vendido em Portugal, só ficando atrás dos suecos ABBA. Os Grupo de Baile romperam com Patchouly e os GNR queriam ver Portugal na CEE. Na pop mais pop, também foi o ano de Ali Babá, das Doce, e Play Back, de Carlos Paião.
É o boom do rock português, outra vez: editoras, rádios, televisões e salas de espetáculos descobriram que podiam fazer bom negócio com o rock cantado em português. Ao mesmo tempo, a indústria fonográfica desenvolveu-se e a procura aumentou. Apesar da crise e da inflação, a venda de discos subiu 10% e a de cassetes 30% em relação ao ano anterior, escreveu o Diário de Lisboa de 24 de dezembro de 1981. Para isso contribuiu o facto de um disco fabricado em Portugal ser "o mais barato da Europa”.
O sucesso nas vendas fez com que 1981 fosse um ano repleto de concertos de artistas estrangeiros – como Iggy Pop, The Clash, Duran Duran e Rita Lee –, mas, garantiu o Diário de Lisboa, “a música em Portugal ainda é um mar por explorar”. Os mais atentos já sabiam que havia um grupo recém-formado com vontade de o navegar, cujo álbum de estreia fora editado em outubro. Dois dos Faíscas, após o fim dos Corpo Diplomático, recrutaram mais uns camaradas e reuniram os Heróis do Mar.
Num tempo em que só se olhava em frente, tentando romper com o passado redefinindo a portugalidade, o revivalismo das estéticas nacionalistas – começando logo pelo nome da banda, alastrado aos figurinos, aos temas das canções e à mise en scène dos espetáculos – causou desconfiança, ódio e pânico ideológico em alguns. Outros viam na encenação mais um passo em frente do vanguardismo pop-rock luso. Afinal, os portugueses também estavam prestes a conhecer António Variações, vindo de Braga via Amesterdão, que gravou o seu segundo disco, Dar & Receber, com os Heróis do Mar, em 1984.
Os Heróis do Mar não tinham apenas ido buscar as primeiras palavras ao hino nacional. Adotaram a vocação marítima, a saudade e o seu romantismo como temas para um “nacionalismo pop”, no entender do historiador Marcos Cardão, numa época de “despolitização” e “redefinição identitária”. O jornalista Rui Miguel Abreu lembra a estranheza do uso da cruz da Ordem de Cristo, “símbolo pouco usual quando nem uma década se tinha cumprido sobre o 25 de Abril”, e que figurava com todo o protagonismo nas capas das cassetes que rodavam pelos recreios dos liceus.
Desde a reabilitação do 10 de Junho a feriado nacional, em 1977, que era comum ver cada vez mais jovens em celebrações nacionalistas. As juventudes urbanas e suburbanas perdiam-se nas encruzilhadas da identidade nacional, entalada entre a queda do império e a europeização.
O aparente militarismo de alguns versos (Saudade) e a evocação dos grandes feitos históricos imperiais (A brava dança dos heróis) poderiam não ser mais que uma escolha conceptual, e/ou de bom marketing pop, mas depressa se ouviram e leram acusações de serem fascistas e salazarentos. Ainda que manifestamente exageradas, as suas músicas não deixaram de atrair um público crente e incomodativo.
Em 1982, os Heróis do Mar “estrearam-se na rádio, na Febre de Sábado de Manhã", recorda Júlio Isidro em entrevista, e “houve manifestações à porta que iam para além do mero nacionalismo”. “Imensa juventude a saudá-los de braço estendido. Tive de ir acalmar os ânimos", disse o histórico apresentador ao Público em 2011. Algo que ficou por resolver na década de 1970 tentava agora dar um ar de si, com mais fôlego. Afinal, desde a reabilitação do 10 de Junho a feriado nacional, em 1977, que era comum ver cada vez mais jovens em celebrações nacionalistas, mobilizados pelas ideias da ala juvenil do Movimento Independente para a Reconstrução Nacional (MIRN), do general ultra Kaúlza de Arriaga.
Sentirem-se representados pelas vanguardas da cultura popular, fosse na pop de inspiração folclórica ou no punk, dava ânimo às juventudes urbanas e suburbanas perdidas nas encruzilhadas da identidade nacional. Era uma crise identitária entalada entre a queda do império e a europeização. Isso tanto funcionava para os filhos dos lesados da descolonização (os retornados, por exemplo) como para os filhos niilistas das classes médias, mortos de tédio num Portugal que parecia não avançar.
Os jovens das classes médias sentiam-se abafados pelo rock modernaço, a pop não lhes dizia muito e a pátria ainda menos. Jogados pelos bancos e relvados das praças ajardinadas do terceiro anel de Lisboa, como quem vai de Marvila a Benfica por Alvalade, tinham o mundo nas mãos e queriam abaná-lo até que vomitasse as suas convenções e hipocrisias. Estavam fartos.
A crise da identidade da juventude de classe média aprofundava-se. Os anos da Revolução dos Cravos já estavam a uma distância considerável e alguns dos jovens que pegavam agora e pela primeira vez em guitarras em segunda mão tinham poucas ou nenhumas memórias do fascismo desinstalado. As poeiras políticas assentaram, já que os eufóricos ventos revolucionários depressa se acalmaram. As promessas de futuro foram ficando no passado. Antes de morrer, em 1980, o então primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro conseguiu um leve aumento do valor real dos salários, mas o preço real dos bens não deixou de aumentar, bem como o desemprego. Em termos práticas, a vida ia torta.
Em 1982, a primeira revisão constitucional extinguiu o Conselho de Revolução e o caminho para o socialismo, que já tinha ido para a gaveta, ficou-se pelo preâmbulo da Constituição. O FMI voltou a aterrar na Portela em 1983, reafirmando que Portugal poderia ser um país avançado, carregado de dívida externa. Caminhava-se para a entrada na Comunidade Económica Europeia, antecessora da União Europeia. No futebol, afirmava-se a alternância e a rivalidade entre Benfica e Porto, para vender bilhetes tanto em casa como fora.
Injetava-se cada vez mais heroína. Calcula-se que Portugal chegou ao final da década de 1980 com 1% da população viciada nessa droga e há quem diga que havia um caso em cada família. O flagelo foi agravado pela falta de informação e pela “novidade” que ainda era qualquer droga, nem dez anos depois de se abrirem as fronteiras ao mundo.
“Quase toda a gente estava agarrada àquilo”, lembra-nos Bárbara Cabral, fotógrafa e artista visual que viveu os últimos anos da década em Lisboa, dentro da cena punk. “Arranjavam dinheiro não sei como”. Nos camarins do Rock Rendez-Vous, recorda João Pedro Almendra em conversa com Paulo Antunes, polvilhavam-se cigarros com heroína e fumavam-se “chinesas”.
Ao mesmo tempo, Lisboa alargava-se. Os êxodos rurais e a viragem da balança migratória confundiam as periferias. Começaram a chegar sucessivas vagas de imigrantes das ex-colónias portuguesas em África, especialmente de Cabo Verde e Angola. Vieram trabalhar por quase nada na rápida urbanização dos subúrbios de Lisboa, dos Olivais a Benfica, de Almada ao Monte da Caparica. Viviam em bairros autoconstruídos nos confins da cidade, muitos desses expulsos da Baixa, numa primeira vaga de gentrificação. Não tardou a que se tornassem, principalmente os seus jovens, num bode expiatório às mãos da direita e da extrema-direita, que exploravam o poder mediático da pobreza e da insegurança através da xenofobia e do racismo. Viriam a abusar da palavra “gangue”.
Nesses bairros recém-urbanizados em construção vertical, e que esboroavam a linha entre o metropolitano e o rural, viviam também adolescentes sedentos de alguma coisa que os fizesse mexer. Eram permeáveis àquilo que o punk inglês gritara muitos anos antes e estavam cheios de vontade de fazer alguma coisa. Os miúdos responderam de volta, pela boca dos Ku de Judas: “Anarkia em Portugal, já!”. Não houve um atraso, era o momento certo. Mais certo foi o seu epicentro: Alvalade, bairro lisboeta de planeamento salazarista e oásis da pequena-burguesia. Tornou-se um viveiro de punks.
Os filhos pródigos das classes médias viraram-se contra os pais. Paravam nos Coruchéus, dividiam cervejas e passavam cigarros, ensaiavam em quartos (como o de João Ribas) e em garagens. Tinham algum fundo de maneio para comprar uns discos, umas revistas, talvez uma guitarra e um pedal de fuzz. “Adquiriram o direito a ser diferentes”, diz-nos Paulo Antunes, realizador dos documentários Um punk chamado Ribas e Já estou farto!. “Até aos finais dos anos 1980, a sociedade ainda estava fechada, demorou-se a perceber que se poderia viver de outra maneira, e estes jovens não estavam para viver assim”, refere o cineasta.
As duas bandas pioneiras da segunda vaga chamaram-se Ku de Judas e Mata-Ratos, ambas formadas em 1982. A primeira reuniu algumas das figuras centrais da punkada de Alvalade que depois se disseminaram para os Peste & Sida e os Censurados, como João Pedro Almendra e João Ribas. Foi um ensaio anarco-punk para o “punk mais inteligente” da segunda metade da década, disse Almendra no documentário sobre a sua vida, Já estou farto!. Até à inclusão de dez das suas canções na compilação Vozes da Raiva! Vol. 3, em 1996, a única gravação da banda é um bootleg de meia-hora de um concerto dado no Rock Rendez-Vous (RRV), em 1985.
Os Mata-Ratos, encabeçados por Miguel Newton, continuam em atividade e a subir aos palcos, apesar de não conservarem a formação inicial. Autointitulavam-se “o grupo musical mais infame de Portugal”, e com razão. Em novembro de 1989, antes de conseguirem gravar e editar o seu álbum de estreia no ano seguinte, foram afastados do concurso de música moderna do RRV quando a sua tolerância a skinheads nos concertos se tornou finalmente demasiado incómoda. Estava-se na ressaca do assassinato de José Carvalho. Foram “expulsos do bar", como cantaram em 1994.
Com efeito, nesses primeiros anos de atividade, os Mata-Ratos pareciam ter sido escolhidos pelos cabeças rapadas de extrema-direita como a sua banda-fétiche. Com o seu humor sujo, a apologia ao álcool e a brutidão politicamente incorreta com que tratavam a decadência da pobreza, da prostituição ou do consumo de drogas, eram a voz antissistema que mais agradava aos jovens de extrema-direita. “Nunca se importaram de ter skins nos concertos”, salienta-nos Paulo Antunes, pois “boa ou má publicidade, era publicidade”.
Alguns membros da banda vestiam-se à skinhead (diziam que era para escandalizar), o seu som incluía-se no género Oi!, ou streetpunk, conotado muitas vezes, e de maneira injusta e até classista, com o submundo skinhead e neonazi, especialmente até aparecer o RAC (Rock Against Comunism), e a banda nunca se posicionou firmemente contra o movimento de extrema-direita até à viragem para a década de 1990. Escusavam-se de responsabilidades em relação às ações de quaisquer “castrados mentais” nos seus concertos, como disseram numa entrevista ao suplemento Sete Ponto Sete, do Diário de Lisboa, em fevereiro de 1986. Queriam-se apolíticos.
Os Mata-Ratos eram a voz antissistema que mais agradava aos jovens de extrema-direita. “Nunca se importaram de ter skins nos concertos”, salienta-nos Paulo Antunes, pois “boa ou má publicidade, era publicidade”.
Mas os seus argumentos não vingaram e a infâmia continuou a persegui-los, levando-os a declarar que não faziam música para skinheads, que não eram "contra nem a favor" destes. Chegaram mais tarde a dizer que o Oi! “não é fascista, é diversão”. Até podia ser, mas em 1991, menos de um ano depois do lançamento do álbum Rock Radioativo pela EMI, viram o seu contrato rescindido pela editora discográfica, cujos representantes argumentaram não terem gostado das canções apresentadas para o disco seguinte.
Ainda que tivessem muitos apoiantes entre skinheads, a verdade é que o universo da banda os extrapolava em muito. A sua canção A minha sogra é um boi espalhou-se insidiosamente de mão em mão e à margem dos circuitos oficiais de distribuição, em cassetes de edição de autor, muitos anos antes do Rock Radioativo. A música era cantada em uníssono pelas plateias acotoveladas um pouco por todo o país. Foi um exemplo de como uma arte vinda de baixo se espalhava num meio pequeno, mesmo que urbano, e alcançava o resto do país, financiada a vontade de fazer e pouco mais.
Se os Mata-Ratos usufruíram sempre de uma postura ambígua, própria da sua abordagem politicamente incorreta aos sintomas de uma sociedade em que grassavam a miséria e a toxicodependência, a verdade é que o próprio movimento skinhead acabou por ter as suas próprias bandas, numa tentativa de também disputar o circuito, ainda que com pouco ou nenhum sucesso – o mercado de quem gostava de ouvir músicas neonazis era escasso. Também se ponderou que pudesse ser uma maneira de propagar os ideais supremacistas e trazer mais jovens e alguns punks suscetíveis para a causa etnonacionalista e os movimentos que a representavam, segundo Riccardo Marchi e José Pedro Zúquete, igualmente sem sucesso.
Em 1984, ainda antes das principais bandas da segunda vaga se terem formado, surgiram os Maravilhas de Portugal. A sua única produção foi uma cassete amadora intitulada Solução Final, cuja capa mostrava um cabeça rapada segurando uma bandeira com a cruz celta. A banda durou três anos, dissolvendo-se em 1987.
Ainda nesse ano formaram-se os Guarda de Ferro, cujo nome é uma homenagem ao movimento fascista romeno responsável pelo extermínio de judeus durante a II Guerra Mundial. Deu um único concerto em 1991 e dissolveu-se em 1993, dando depois origem aos LusitanOi!, banda do circuito internacional do Rock Against Communism e da rede também internacional e neonazi Blood & Honour. Um dos membros desta banda foi Miguel Temporão, um dos skinheads que atacaram a sede do PSR na noite de 28 de outubro.
Sobre o punk não neonazi, pode falar-se de um ethos e de uma praxis para tentar dar alguma coerência e quiçá elevação a uma expressão social e cultural que se queria javarda, decadente e provocatória, alicerçada no do-it-yourself e em pequenas mas enérgicas redes de partilha. Nesses primeiros anos mais verdes não seria incomum um punk aparecer com um crachá com uma suástica, sem razão mais do que causar desconforto (como fez Miguel Newton dos Mata-Ratos ou Almendra nos Ku de Judas), ao lado de um outro com um A de anarquia.
As cristas feitas com sabão-macaco, as sobrancelhas rapadas, a roupa dos avós rasgada e recondicionada, pejada de crachás e alfinetes (“medalhas da droga”, como alguns transeuntes lhes gritavam), as botas da tropa, as correntes e os brincos serviam não só como marcadores de uma diferença seminal, mas também como maneira de comunicar um desarranjo e renúncia em relação ao resto da sociedade. Estavam fartos de se portar bem e cultivavam uma estética dessa rebelião – para uns era mera estética, para outros modo de vida.
Nem toda a gente entendia. Se as velhinhas lhes chamavam drogados, também havia a polícia que se sentia à vontade para lhes bater. Os agentes pensavam que eles tinham de ser postos na ordem e eram comuns as detenções arbitrárias à porta do Rock Rendez-Vous para apaziguar os vizinhos. As críticas à discricionariedade e à violência da polícia eram comuns entre os jovens dessa altura, transformando-se num dos temas do punk, criando uma identidade geracional.
Uma das músicas que espelhou essa revolta contra a polícia foi a dos Censurados, a Tu Ó Bófia. Orlando Cohen, que começou nos Peste & Sida e se juntou depois aos Censurados, tocou-a em muitos concertos e, apesar de ser anterior à sua entrada na banda, identificava-se com ela. Sempre que a tocava recordava-se de quando um chefe de esquadra da GNR, fora de serviço, se sentiu na liberdade de lhe assentar umas quantas chapadas só por ter dado um grito na rua, levando-o a ele e a um amigo para a esquadra. “Defendes a ordem da lei fundamental, / defendes a tua pátria Portugal / e não percebes e nem queres saber / Porque é que eu sou assim”, lê-se na letra da música.
A tendência contestatária do punk não se traduziu, até aos anos 1990, numa linha coerente de intervenção social abertamente politizada. Ainda assim, as canções desses anos mostram-nos uma juventude ciente do que se passa e desiludida com o que lhes puseram no prato: “desde pequeno só me dão veneno”, como diziam os Peste & Sida.
Cantavam sobre males sociais como o consumo de drogas, a prostituição e o abuso policial. “Eu que vinha da classe baixa sentia na pele aquilo”, explica Orlando Cohen, “e queria tocar em bandas que refletissem isso”. Algumas canções eram pequenos manifestos contra a classe política ou o serviço militar obrigatório, e as bandas participavam em concertos antimilitaristas do movimento Tropa Não, na sede do PSR. Violemos o presidente (Ku de Judas), Srs. Políticos (Censurados) ou Pátria Sábia (Peste & Sida) são alguns exemplos. “Havia vontade de tocar e vontade de expressar as inquietudes de então”, explica Almendra. “Sempre contra o conservadorismo”, completa Cohen.
Ao contrário do que aconteceu no início dessa década, os Peste têm, um ano depois da sua formação, a oportunidade de lançar o seu álbum de estreia, Veneno, abrindo a porta do mainstream aos punks mais brutos e asneirentos. É nesse disco que se canta “Gingão, Gingão, és a puta da confusão”.
Todos os fins-de-semana os skinheads causavam confusão no Bairro Alto. A pancadaria era garantida. "Faziam disso a sua maneira de estar”, lembra Miguel Casanova.
Naquela altura, novos espaços de diversão e lazer noturnos abriam uns atrás dos outros, cada um tentando diferenciar-se do anterior na novidade, na exclusividade e na excentricidade. O Bairro Alto estava ainda a tornar-se naquilo que seria o Bairro Alto e chamava a si quem lá quisesse parar. Os jovens eram os mais assíduos.
Um dos bares mais conhecidos era o Gingão (que o ficou ainda mais após a canção dos Peste), onde os punks e os heavies paravam, bebendo e fumando ao lado de marginais e prostitutas. Era sabido que todas as quintas, sextas e sábados à noite havia confusão. Os skinheads que paravam no Marão ou no Danúbio, os seus poisos prediletos, apareciam no Gingão e a pancadaria era garantida. A polícia demorava 45 minutos a responder à chamada e chegava quando a confusão já tinha terminado – havia na altura uma esquadra no Bairro Alto. Talvez fosse chato escrever autos de notícia todas as semanas, dias seguidos. “[Os skinheads] faziam disso a sua maneira de estar”, lembra Miguel Casanova.
Os cabeças rapadas tornaram-se depois presença assídua nos concertos e bares, pois não tinham naquela altura estabelecimentos próprios e os espaços para os fãs de música alternativa não abundavam pela cidade. Além do Rock Rendez-Vous, havia a Teia, a Usina e, mais tarde, o bar Oceano. No final da década, apareceu o bar das Palmeiras, primeira casa de ensaios e de concertos de muitas bandas punk e pós-punk.
A música abafava a voz de quem se tentava fazer ouvir nas conversas possíveis, a cerveja não parava de jorrar e, por entre o nevoeiro cerrado da cigarrada, dançava-se como e onde se conseguia. Ouviam-se os acordes do rockabilly gingão dos Capitão Fantasma e, mais tarde, dos Tequilla Mal.
Na pista, um grupo de skinheads fazia gala em brincar. Começaram aos empurrões, aos pontapés, fizeram saudações nazis, ameaçaram e deram estaladas a quem os interpelava. Quem dançava cedeu e deixou que uma clareira se abrisse para que se pudessem divertir com a violência de bando que os caracterizava. Acabaram a noite ameaçando uma repórter fotográfica com uma navalha. A situação já se tinha tornado usual no Rock Rendez-Vous, no bairro do Rego, em Lisboa.
Mas essa noite acabou na imprensa. “Skinheads estão a espalhar o terror pela cidade”, lê-se numa reportagem do Tal & Qual, de 27 de outubro de 1989. O aviso do jornal chegou às bancas menos de 24 horas antes do assassinato de José Carvalho. Numa das fotografias tiradas nessa noite e publicada no jornal surgiram dois skinheads conhecidos de Almada, dois dos principais atacantes da sede do PSR: Américo da Silva e Melchior dos Santos. Apareceram a fazer a saudação nazi de tronco nu, como se de um sinal de força e masculinidade se tratasse. Foi essa fotografia que permitiu identificá-los à Polícia Judiciária, logo naquela manhã de sábado, 28 de outubro de 1989.
Dias antes, e sabendo como os skinheads atuavam na noite, o jornal Blitz de 21 de outubro de 1989 interrogava-se: “Haverá alguma coisa capaz de conciliar os nostálgicos dos anos 50, os motociclistas, os punks, os skinheads, os inocentes e as pessoas supostamente normais?”. Sim, havia: o regresso aos palcos da banda rockabilly Capitão Fantasma. Mas era impossível conviver no mesmo espaço que os cabeças rapadas. A história era sempre a mesma e repetia-se noite após noite: pancadaria gratuita.
Chegada há menos de um ano de França, onde frequentava o circuito artístico e anarquista de Paris, a fotojornalista amadora Bárbara Cabral dedicava-se a cobrir os eventos do circuito rock e punk de Lisboa e, como antifascista, não perdia uma oportunidade de fotografar os skinheads nos concertos em que apareciam. Queria saber quem eles eram. As fotografias poderiam vir a dar jeito um dia, pensava. E vieram a dar, ainda que não fossem da sua autoria.
Foi num dos concertos no Rock Rendez-Vous que Bárbara Cabral se viu encurralada por cabeças rapadas na casa de banho. Aperceberam-se que estavam a ser fotografados. “Entraram e roubaram-me os rolos”, recorda. Aconteceu pelo menos duas vezes, em concertos diferentes, e ela até lhes dava os rolos para as mãos, tentando que não lhe roubassem ou partissem a câmara, que era boa e cara.
“Estavam muito presentes nos bares, no Oceano e no Gingão, mas [as pessoas] não ligavam, não davam importância, fazia-me muita confusão ver que eram todos amigos”, relembra Bárbara Cabral, que na altura tinha 21 anos. “Eu vinha de Paris, onde se tinha tratado desse assunto, e claro que um skinhead nunca entrava num concerto.” Mas, em Portugal, os dois mundos cruzavam-se e coabitavam.
Sem terem os seus próprios espaços para socializar, os skinheads tentavam controlar os que já existiam, ou como João Carlos Louçã via as coisas: tentavam-nos “colonizar”. “Faziam mau ambiente, mesmo quando iam só para se divertir. Mas a maneira daquelas pessoas se divertirem era sempre com exercício de agressividade, violência, numa perspetiva também de afastamento das outras pessoas, de afirmação própria, de grupo”, disse-nos João Carlos Louçã, na altura jovem frequentador de bares e concertos. “Não era uma coisa agradável para os proprietários e gerentes desses sítios”, mas eram tolerados.
Os bares com música ao vivo e de índole alternativa, ao serem poucos, eram frequentados pelos skinheads que existiam em Lisboa. Podiam facilmente aparecer em espetáculos de bandas cujas ideias eram diametralmente opostas às suas, levados ao engano pela aparente irmandade dos ideais “antissistema”. O Bairro Alto era o epicentro da atividade noturna dos cabeças rapadas e quem não se enquadrava na sociedade por eles idealizada sabia que tinha de estar sempre de sobreaviso. Os bares Oceano, Usina e Teia eram outras das suas paragens correntes.
Orlando Cohen recorda-se de uma situação de agressões que o marcou no Bairro Alto. “Estavam uns putos todos punks numa esquina, perto do Gingão, quando apareceram seis ou sete skins a gritar ‘vocês estão fodidos’ e coisas assim. Foram para o Marão, o bar da skinada, e quando voltaram já eram 20 ou mais a correr, ao pontapé e ao estalo a toda a gente, com sangue a correr”.
Os skinheads semeavam o terror, queriam controlar aquelas ruas. Sempre em grupo. Mandavam batedores à procura de determinadas pessoas, marcavam-nas. Partiam dentes e narizes, intimidavam toda a gente. “Um gajo andava na rua em sobressalto”, lembra Cohen. E, ao final da noite, já de dia, era no Cais do Sodré que os espancamentos aconteciam, uma vez que tanto skins como punks viviam no Feijó, no Laranjeiro, no Monte da Caparica ou na Cova da Piedade, em Almada. “O pessoal apanhava enxertos de porrada de skins que iam apanhar o mesmo barco. Viam um gajo qualquer de cabelo comprido ou punk e pronto, estava fodido”, conta o antigo membro dos Censurados.
Os skinheads semeavam o terror, queriam controlar o Bairro. Mandavam batedores à procura de determinadas pessoas, marcavam-nas. Partiam dentes e narizes, intimidavam toda a gente. “Um gajo andava na rua em sobressalto”, lembra Orlando Cohen.
Os alvos mais frequentes eram negros, homossexuais, punks e militantes de esquerda. Miguel Casanova entrava em duas categorias, punk e militante de esquerda, e por isso era um alvo constante dos cabeças rapadas. “Cheguei a vê-los com um machado pequenino”, recorda. “Depois do [assassinato de] José Carvalho, ali ao pé dos bombeiros, como quem sobe para o Bairro Alto, deram-me nos cornos e apontaram-me uma arma”. Era quase hábito. Noutra ocasião, ainda em 1989, Casanova foi espancado por skinheads por ele e a sua banda, os Fart, terem uma canção chamada "Skins para a forca". Havia resistência. Os punks não queriam deixar de ir onde sempre foram, mas acabavam a levar porrada, ainda que houvesse uns quantos rijos que não se ficavam. Os relatos de violência de extrema-direita aumentavam, mas pouco era feito.
Na madrugada de 20 de maio de 1989, à porta do bar Oceano, na Avenida 24 de julho, em Lisboa, o ator e encenador João Grosso foi violentamente agredido depois de tentar travar um grupo de skinheads que espancava um jovem alegadamente indiano. Foi das poucas agressões de skinheads a chegar à comunicação social, tendo ampla cobertura. Poucos anos antes, Grosso tinha-se tornado num alvo dos skinheads por a justiça portuguesa o ter acusado de profanação do hino nacional. O ator tinha tocado num espetáculo A Portuguesa em versão rock.
Em junho, por altura do Santo António, um punk alemão apareceu morto, caído junto ao Largo de Camões. Não se sabe quem o matou. Há quem diga que foram populares que o espancaram, depois de uma brincadeira que correu mal e que teria envolvido o furto de uma grelha de sardinhas, mas também há quem suspeite que tenha sido um grupo de cabeças rapadas a acabar com ele.
Umas semanas antes de ser assassinado, o próprio José Carvalho teve de fugir do bar Oceano debaixo de uma saraivada de pedras atiradas por skinheads. Não foi por acaso que, naquela noite de 27 para 28 de outubro, Miguel Casanova decidiu ficar atento às movimentações na Rua da Palma. Bárbara Cabral também ficou alerta. Não eram só miúdos de cabelo rapado e com falta de amor paterno ou demasiados problemas em casa. Estavam organizados e queriam causar problemas. A morte podia ter sido evitada, dizem, mas ninguém esperava aquele desfecho.
O assassinato de José Carvalho no beco da sede do PSR pôs um fim definitivo à tolerância dos skinheads no circuito alternativo de Lisboa e Porto. A cena punk foi obrigada a encarar a verdadeira face da “skinada”. A linha vermelha nunca traçada contra a presença de jovens violentos de extrema-direita foi desenhada a sangue.
Na manhã imediatamente após o homicídio, Miguel Newton, dos Mata-Ratos, apareceu na sede do PSR e ajudou a identificar alguns dos skinheads. Passaram-lhe a reportagem do Tal & Qual para as mãos e ele reconheceu os skinheads que lá apareciam a fazer orgulhosamente a saudação nazi. Poder-se-ia dizer que o nazismo os traiu. Foi um elemento essencial para a Polícia Judiciária os poder ir buscar a casa para os interrogar.
O campo da esquerda radical e o mundo da música há muito que sabiam o que se passava na vida noturna lisboeta e portuense, mas não deixaram de receber a notícia do assassinato de José Carvalho com estupefação e, sobretudo, grande preocupação. A pequena delinquência tinha-se transformado em algo mais. Não foi, portanto, de estranhar que diversas partes da sociedade civil se tenham juntado em luta e indignação pela morte do militante do PSR. As bandas responderam prontamente ao apelo de solidariedade e denúncia contra a extrema-direita.
Logo no dia 17 de novembro, no pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, aconteceu o concerto “Viva a vida!”, em resposta ao “Viva a morte!” dos neonazis. Organizado pelo PSR, juntou os Rádio Macau, os Afonsinhos do Condado, Sérgio Godinho e Jorge Palma, os cabo-verdianos Dany Silva e Safabe, e teve poesia recitada por Maria do Céu Guerra e Luís Miguel Cintra. Uma segunda data, na semana seguinte, no Pavilhão da SFUAP, na Cova de Piedade, em Almada, contou também com os Rádio Macau e os Afonsinhos do Condado, a quem se juntaram os Xutos & Pontapés, os Capitão Fantasma, os Censurados, os Sitiados, os Clandestinos e os João Peste e Acidoxi Bordel. Ambos os concertos foram um enorme sucesso.
Com a repercussão nacional que o assassinato teve, qualquer ligação aos skinheads tornou-se radioativa. Vanda Gonçalves, namorada do skinhead João Paulo Fontinha e vocalista dos Dogue Dócil, sentiu-o na pele. Ao substituir João Pedro Almendra nos Peste & e Sida, Vanda faltou ao concerto dos Dogue Dócil na sede do PSR para gravar com os punks do Veneno, mas a relação com a sua nova banda não durou muito.
Nos interrogatórios da Polícia Judiciária, Vanda Gonçalves disse que, “embora use o cabelo rapado, não é skinhead”, ao “contrário do seu namorado”. O início do fim da sua incipiente carreira começou com as ondas de choque do desfecho trágico daquela noite.
Depois de 28 de outubro, os restantes Peste & Sida ter-lhe-ão pedido que mudasse o seu nome de palco, que pusesse uma peruca ou deixasse crescer o cabelo. Queriam aplacar os boatos e afastar as acusações de simpatia pela supremacia branca. Gestão de imagem. Vanda, não gostando das exigências, decidiu afastar-se. Os Dogue Dócil ainda deram alguns concertos em 1990, até entrarem num hiato que só terminou em 1997 com a gravação de um single.
O dilema com que Vanda Gonçalves se confrontou foi semelhante ao de muitos skinheads. Muitos dos cabeças rapadas optaram depois daquela noite por abandonar, nem que fosse temporariamente, o estilo que ostentavam com orgulho e desafio e passaram a vestir-se casualmente. Não queriam ser reconhecidos. Mas houve uma fação deles que se recusou a ceder: iriam continuar a vestir-se como sempre se tinham vestido e a atuar violentamente como sempre tinham feito. Desafiaram a liderança do Movimento de Ação Nacional, associação que era o pilar político do movimento skinhead.
Menos de um mês depois do assassinato de José Carvalho, houve pelo menos mais um ataque de skinheads. A 18 de novembro de 1989, Francisco Faustino, de origem angolana, foi deixado inconsciente numa linha férrea da estação da Avenida de França, no Porto, para ser colhido. A sua sorte foi haver uma greve da CP e várias pessoas por perto que o foram de lá tirar, salvando-lhe a vida.
Essa fação de skinheads acabou por ‘controlar’ uma parte do Bairro Alto nos anos seguintes, até 1995, quando Alcindo Monteiro foi barbaramente assassinado, mas afastaram-se dos bares com música ao vivo e das casas de espetáculos. Encontraram o seu espaço em claques de futebol e criaram também os seus próprios bares, em caves e garagens em Odivelas e Loures.
Menos de um mês depois do assassinato de José Carvalho, a 18 de novembro de 1989, Francisco Faustino, de origem angolana, foi espancado por skinheads e deixado inconsciente numa linha férrea da estação da Avenida de França, no Porto.
Entretanto, houve, pelo menos, mais uma suspeita de um homicídio pela extrema-direita. Na madrugada de 15 para 16 de abril de 1990, Ricardo Clemente foi assassinado no Campo Pequeno, em Lisboa, junto a umas rulotes de comida rápida. Ele e Teresa Milheiro, sua companheira, foram espancados com socos, pontapés e garrafas por um grupo de quatro homens que ninguém reconheceu.
Teresa ficou inconsciente e acabou por recuperar no hospital. Ricardo foi esfaqueado e morreu no local. Os assassinos nunca foram encontrados. Ricardo Clemente, mais conhecido por Tenro, era amigo de juventude de João Ribas e membro dos NAM (Núcleo de Atrasados Mentais, nome que satirizava o Movimento de Ação Nacional), conhecido por se opor, inclusive com o uso de violência, aos skinheads nas ruas de Lisboa – foi ele quem espancou três cabeças rapadas em frente à sede do PSR, meses antes do assassinato de José Carvalho.
A passagem para a década de 1990 trouxe, no entanto, muitas mudanças. O punk foi deixando de lado a faceta niilista decadente para se politizar cada vez mais. Surgiram novas bandas, mais comprometidas com a causa antirracista, com o combate ao consumo de drogas e até à tauromaquia. A epidemia de droga também fez com que estivessem ligadas ao movimento straight edge (contra o consumo de álcool e drogas). As bandas estenderam-se pela Linha de Sintra, Algés, Oeiras, Linda-a-Velha, sem nunca soçobrar o circuito da Margem Sul.
Em 1990, os Mata-Ratos lançaram o disco Rock Radioactivo e na capa pode ver-se um skinhead esmagado por uma bomba gigante, daquelas dos desenhos animados, o símbolo oficioso da banda. Foi um importante posicionamento político da banda, mas nem por isso os militantes de extrema-direita deixaram de assistir aos seus concertos – numa reportagem do Público, de agosto deste ano, destaca-se o fã acérrimo João Pais do Amaral, vice-presidente do Ergue-te! (ex-PNR).
Os Censurados, por sua vez, entraram num pequeno hiato, já que um deles, apesar do antimilitarismo vincado da banda, teve mesmo de cumprir o serviço militar obrigatório. E, pouco depois, em julho de 1990, desapareceu a catedral do rock, segunda casa de muitas das bandas punk que marcaram para sempre a história dos anos 1980 em Portugal. Confrontado com dificuldades financeiras, o Rock Rendez-Vous fechou portas ao fim de dez anos. De mais do que uma maneira, encerrou-se um ciclo.
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