A Polícia Judiciária concluiu ter encontrado o homicida de José Carvalho em pouco mais de 24 horas. Que pistas seguiu? Que provas reuniu? Como chegou tão depressa a um culpado?
[Esta é a quarta parte da série Anatomia de um Homicídio.]
Quase todos os inspetores da secção de Homicídios da Polícia Judiciária estavam de folga naquele fim de semana, mas foram chamados ao serviço logo na manhã de sábado, 28 de outubro de 1989. Eram 11 ou 12, talvez mais, quase a secção inteira, o que era raro. O caso de homicídio era complicado, tinha vários envolvidos, podia ter repercussão política nacional e havia urgência na investigação. A situação assim o exigia, explicou recentemente Carlos Ademar, um dos inspetores envolvido na investigação. O caso era “especial”. Ainda que fosse considerado homicídio, as suas motivações políticas eram claras.
Chegados à Rua Gomes Freire, as informações recolhidas pelo piquete da PJ foram passadas aos inspetores e fez-se um pequeno balanço da informação em mãos e sobre por onde começar. Distribuíram-se as tarefas pelos vários agentes. Sabiam que estavam a agir contra o tempo: nos homicídios em que a arma do crime é uma faca, o responsável tem tendência a livrar-se dela o mais rapidamente possível. Sabiam-no por experiência. Identificar testemunhas e interrogá-las, para se chegar o mais depressa possível aos skinheads envolvidos, era a grande prioridade.
Uma das primeiras dificuldades dos investigadores foi perceber o que era o movimento skinhead, como funcionava, que ideologia propagava, que ligações políticas tinha. Importado do Reino Unido e de França, o movimento era relativamente recente em Portugal e não havia muitas informações sobre ele, nem mesmo nos jornais. A violência cometida pelos cabeças rapadas era encarada como pequena delinquência, não entrando na mira da Unidade de Combate ao Banditismo (hoje Unidade Nacional de Contraterrorismo). Nunca tinha havido um homicídio cometido por skinheads. Era uma estreia da secção de Homicídios da PJ.
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
Daí que os inspetores se tenham visto na obrigação de começar do zero, e isso nota-se nos interrogatórios daquele sábado: as perguntas sobre o que é ser skinhead são uma constante e o nome do movimento aparece escrito de diferentes maneiras nos autos de interrogatório. “Tínhamos muito poucos ou nenhuns conhecimentos. Eu tinha uma noção muito básica através dos jornais que ia lendo, dando conta de movimentos completamente marginais, até numericamente”, recorda Carlos Ademar. “Em Portugal, o movimento neonazi também se estava a tentar afirmar, mas era muito residual.”
Havia três pontas soltas por onde a PJ podia começar naquela manhã, e assim fizeram: bater à porta de João Paulo Fontinha, um dos líderes do grupo e que ficou de fora do ataque por agredir a namorada, identificado pelo militante do Partido Socialista Revolucionário (PSR) José Falcão ao piquete da PJ; ir buscar João Correia a casa, amigo de José Carvalho que se disponibilizou para dizer como chegar aos cabeças rapadas envolvidos, e interrogá-lo; e analisar o local do crime, ainda que estivesse completamente contaminado – passaram por lá tantas pessoas que qualquer análise forense não seria fiável.
Poucos foram os militantes do PSR que conseguiram dormir naquela noite. Os telefones não pararam de tocar, espalhando-se a palavra sobre o que tinha acontecido. Decidiram convocar uma reunião alargada e posterior conferência de imprensa para a manhã de sábado. Com dois objetivos: reunir todas as pessoas numa sala, inclusive algumas que não tinham estado nessa noite, para ajudarem na identificação dos atacantes e tomar uma posição perante a imprensa.
A sala estava cheia de militantes e de antifascistas quando chegaram alguns membros da banda Mata-Ratos. A banda punk era uma das favoritas dos skinheads que, em 1989, procuravam ainda estabelecer os seus espaços de convivência e as suas referências musicais. Eram atraídos pelo som sujo e violento do streetpunk dos Mata-Ratos, pela sua atitude chocante, combativa e alarve, e pelas letras superficiais contra “o sistema” e a decadência social. Nos seus concertos, talvez ignorando as canções antimilitaristas e as sátiras à cegueira ideológica, a presença de cabeças rapadas era assídua e causava problemas.
Nunca tinha havido um homicídio cometido por skinheads. Era uma estreia da secção de Homicídios da PJ.
Daí que Miguel Casanova, um dos atacados naquela noite, se tenha irritado quando os membros da banda entraram na sede do PSR. Barafustou contra a sua presença, os ânimos exaltaram-se por momentos. Eles vieram cá dar nomes, disseram-lhe. Participaram na reunião, viram fotografias de uma reportagem do Tal & Qual, publicada um dia antes, sobre skinheads no circuito punk e reconheceram os atacantes daquela noite. Se não fossem eles, ainda hoje não se saberia quem tinha sido, disse-nos recentemente uma outra das pessoas presentes na reunião.
Os inspetores receberam as informações das identidades dos envolvidos das mãos do PSR e, a partir daí, a investigação deu um salto de gigante. Testemunhas do partido (ou próximas dele) foram encaminhadas para a Rua Gomes Freire para prestarem declarações e as novas informações foram comunicadas aos restantes investigadores, que se dividiram para ir buscar os skinheads ao início da tarde desse sábado. Os cabeças rapadas já sabiam que o seu ataque tinha causado uma morte, mas não esperavam ser interrogados pelas autoridades de forma tão rápida.
Estava há mais de uma hora à espera para ser ouvido. Pedro Grilo não tinha muito com que se distrair enquanto aguardava no austero corredor principal da sede da Polícia Judiciária. Era local de passagem e não deveria inspirar conforto, deveria até impor respeito a quem se sentava no banco de madeira. Finalmente chamaram-no, caminhou nervoso ao entrar na porta que ligava o corredor principal à secção de Homicídios. O jovem alto, magro e de cabelo loiro deparou-se com o gabinete do coordenador da secção, um espaço no centro da sala rodeado por paredes de vidro: era uma espécie de aquário que tudo via, como lhe chamavam na Polícia Judiciária. Olhou lá para dentro de soslaio.
Entrou noutra sala que albergava as secretárias de dois, três inspetores, metade do número de agentes que cada brigada costumava ter. Em cima da secretária estava uma máquina de escrever, nas paredes um quadro de cortiça, com ordens de serviço, recados e retratos robô, e um calendário do ano. Havia folhas de papel em cima das secretárias.
Disseram ao jovem para se sentar em frente ao inspetor, ao seu lado tinha um funcionário da mesma instituição. Era o suposto advogado de Grilo. O inspetor preparou o bloco de notas e o interrogatório começou pouco depois. Os interrogatórios podiam durar horas e horas ou serem curtos, os mais raros, em que era tudo a despachar, dependia da disposição de quem era interrogado. Menos de uma hora não durou.
O inspetor da PJ pediu-lhe os dados pessoais, preencheu o cabeçalho do auto de inquirição de arguido com a data e hora do interrogatório: 28 de outubro de 1989, 17 horas. As perguntas sobre os acontecimentos da noite do homicídio passaram a dominar a conversa. O homem sentado em frente a Grilo já tinha uma noção do que se passara nessa noite, ainda que baseado nas versões dos militantes. De manhã, testemunhas do PSR tinham estado naquela mesma sala a prestar declarações.
O objetivo do interrogatório era claro: obter respostas para as cinco perguntas essenciais, ser-se capaz de fazer a radiografia daquela noite. Como? O quê? Quem? Quando? Onde? Seriam essas respostas que orientariam a investigação criminal. Por exemplo, o que eram os skinheads? Foi um ataque planeado ou anárquico? Além disso, eram vários os cabeças rapadas envolvidos, oito, e por isso era necessário ir-se isolando o grupo de suspeitos até finalmente se chegar ao culpado. Naquela altura, os inspetores já sabiam que os principais suspeitos eram os quatro skinheads que avançaram para dentro do beco. Mas qual deles era o homicida?
Pedro Grilo começou a contar a sua versão dos acontecimentos. Admitiu que tinha em sua posse uma navalha com a ponta partida, dada por um outro skinhead para o que “desse e viesse”. O inspetor ouviu, estava atento a contradições, a lacunas na narrativa, foi tirando apontamentos e disparou perguntas. O jovem com uma cruz celta tatuada no ombro esquerdo disse que pertencia a um grupo de cabeças rapadas desde março de 1988, que lutavam “pela pátria e pela Europa dos brancos”, que o nacional-socialismo era “a violência como forma de mostrarem o seu descontentamento e de reduzirem os grupos que se lhes opõem”.
Ao ser dos mais jovens do grupo, admitiu ter um comportamento “explosivo”, daí ser agressivo sempre que bebia “um copo a mais”, como foi o caso naquela noite. A violência era o escape para as suas “ideias agressivas”. Foi um dos quatro que entrou no beco da sede do PSR e, munido da navalha, puxou a mão que a empunhava para “trás, para dar balanço”, apontando-a ao abdómen de uma pessoa que não identificou. Não sabia se “furou ou não”, mas garantiu “tudo ter feito para isso”. Terminado esse pequeno confronto, envolveu-se com um outro militante do PSR, “recordando-se que desta feita sentiu dor”, voltando a espetar uma segunda vez essa pessoa. Houve uma única facada nessa noite e nenhum dos outros feridos ou militantes do PSR ficaram com vestígios de golpes de arma branca.
Entretanto, continuou a recordar, viu os outros cabeças rapadas lutarem enquanto olhou à sua volta no beco, mas a relação de forças mudou. Os militantes de esquerda saíam da sede, e Grilo e o seu grupo fugiram do beco na Rua da Palma. No interrogatório, disse ainda ao inspetor ter pensado não ter tido êxito e que pudesse não ter “produzido ferimentos graves” em alguém, até porque “nem sequer viu sangue na navalha que utilizou”. Não pôs de lado a hipótese de ser o autor do homicídio, mas não estava “em condições de o confessar”. “Se tivesse ideia clara disso, afirmá-lo-ia e assumiria tal facto de forma inequívoca”, escreveu-se no auto de interrogatório.
O inspetor pegou nos seus apontamentos e redigiu o auto de depoimento numa das máquinas de escrever da secção de Homicídios. A maioria das máquinas nas instalações da PJ fora produzida na Messa, a mesma fábrica onde José Carvalho trabalhou por mais de dez anos. Deu o documento ao jovem para que o lesse, para ver se concordava com o que se escreveu. Sim, concordava. E assinou.
Apesar de ser encarado como arguido, Pedro Grilo não conhecia os seus direitos nem se apercebeu de que estava a ser tratado como arguido. Além disso, não teve um defensor legal por si escolhido para o conduzir no interrogatório: os inspetores escolheram um funcionário da PJ para acompanhar o jovem, uma prática corrente naqueles tempos e com origens na ditadura militar.
É que os inspetores, explica Carlos Ademar, eram da velha guarda e ainda se regiam pelo Código Penal de 1929, quando não era necessário ter-se um advogado nos interrogatórios. “Toda esta gente, inclusive o inspetor que o interrogou, vem do antigo [código] e ainda não tinham feito a atualização”, refere. “Íamos buscar o nosso escriturário, éramos nós próprios quem nomeava o defensor oficioso.” Por causa deste género de situações, “o próprio Ministério Público sentiu necessidade de fazer uma inspeção à PJ”.
De qualquer forma, Grilo foi transportado para uma outra sala e lá aguardou até ser levado para os calabouços da Rua Gomes Freire, por ordem do Ministério Público. Ficou detido até segunda-feira, quando um juiz o ouviu, desta vez acompanhado por um advogado nomeado pela sua família. Foi o único detido dos oito skinheads e nem imaginava que ficaria em prisão preventiva por decisão do juiz.
Grilo não confessou o crime, mas o seu interrogatório foi encarado como tal pelos inspetores. “O princípio é este: tentarmos obter a confissão, não pela confissão em si, que não tem grande peso em julgamento, mas pelo que conseguimos retirar dela em termos de prova material ou de novas testemunhas que confirmem o que foi dito”, explica o antigo inspetor Carlos Ademar, que saiu da PJ em 2006.
Pedro Grilo ficou conhecido como o homicida confesso logo a partir da segunda-feira. A Lusa disparou o telex da notícia às 20h03 de domingo e todas as redações ficaram a sabê-lo.
Independentemente disso, Pedro Grilo ficou conhecido no país como o homicida confesso logo a partir da segunda-feira que se seguiu à madrugada do homicídio. Houve uma fuga de informação no domingo e a Agência Lusa publicou uma notícia a dizer que a “PJ prendeu [o] presumível autor [da] morte de dirigente do PSR”. O então líder do PSR, Francisco Louçã, disse à agência de notícias que o suspeito tinha confessado e que seria presente ao juiz na segunda-feira.
A Lusa disparou o telex da notícia às 20h03 de domingo e todas as redações ficaram a sabê-lo. No dia seguinte, as capas eram claras: “PSR pede justiça – Pedro já confessou crime da Rua da Palma”, lê-se na capa do jornal Diário Popular; “Detido suspeito da morte de líder do PSR”, lê-se no Diário de Notícias, referindo que “terá admitido ser o autor da morte”.
A opinião pública foi rapidamente moldada e o caso dado como encerrado pela PJ, sem se abrirem outras linhas de investigação. Os inspetores encontraram o culpado em pouco mais de 24 horas, mesmo sem haver arma do crime confirmada e sem alguém que tivesse identificado o skinhead que desferiu o golpe fatal. A maioria cabeças rapadas apontou o dedo a Grilo, reforçando a suspeita.
Eram quase duas horas da manhã da noite do crime. Na Ponte 25 de Abril havia pouca circulação, como era natural a essa hora, e o táxi preto e verde avançava pelo tabuleiro. Seguiu pela saída para Almada e, chegado às proximidades do Jardim da Cova da Piedade, despejou os seus passageiros e recebeu em troca o valor que lhe era devido.
José Ramalho despediu-se do grupo e foi para casa, onde os pais o aguardavam. Américo da Silva, Melchior dos Santos e Filipe Temporão caminharam para o jardim e lá ficaram à espera de João Vargas. Não se sabe quanto tempo lá permaneceram e se por lá ficaram, nenhum o referiu nos interrogatórios nem nos autos de perguntas da fase de instrução do julgamento. Disseram apenas que o seu destino final foi a casa de Melchior, onde a sua mãe os esperava à varanda quando chegaram.
Lá chegados, Melchior disse que ia dormir, já que no dia seguinte tinha de se apresentar na tropa, enquanto Américo deu a entender que ficaram à conversa noite adentro, até ouvirem num noticiário da rádio, por volta das 5 horas da manhã, que os confrontos na sede do PSR tinham causado uma vítima mortal. A partir daí, segundo os autos de perguntas da fase de instrução de maio de 1990, os encontros dos dias seguintes entre os elementos do grupo, excluindo Ramalho e Grilo, sucederam-se com Américo à cabeça, até os inspetores da Polícia Judiciária os irem buscar a casa.
Américo não conseguiu pregar olho depois de saber das notícias e, por volta das “7 horas”, saiu de casa de Melchior (que tinha ido para Tancos) para se encontrar com Fontinha na casa deste. Conversaram sobre os acontecimentos da noite anterior, como ficou a relação de Fontinha com a sua namorada e, principalmente, sobre a morte, facto incontornável de qualquer conversa naquela manhã. “Américo apenas referiu confrontos, nunca uma morte”, disse Fontinha a 28 de outubro, que soube logo da morte no Hospital de São José. O ex-fuzileiro mentiria mais vezes até o acórdão ser lido em 1991: quando foi novamente interrogado, por exemplo, negou que ele e Américo fossem skinheads.
Depois dessa conversa matinal, Américo dirigiu-se sozinho a casa de Francisco Santos, chegando por volta das 10h30. Contou-lhe da morte e, de seguida, pegou no telefone fixo para ligar para casa de Gabriel Pereira, pedindo-lhe que fosse ter consigo onde estava. Assim aconteceu. Falaram “sobre os incidentes da noite anterior, tendo a todos ocorrido a ideia de que o mais provável era ter sido o Grilo”. Foi então que Francisco lhes relatou que Grilo lhe tinha confessado, fazendo gestos, ter “andado com uma faca na mão e [que] a tinha espetado em alguém”, quando ficaram sozinhos em Cacilhas, depois de saírem do barco.
Ainda que os grupos de skinheads não fossem estruturados com códigos de conduta e de honra, processos de recrutamento, rituais e afins, como viriam a sê-lo a partir do final da década de 1990, os cabeças rapadas envolvidos naquela noite funcionavam de acordo com uma hierarquia baseada na idade, na experiência militar e na força das amizades. Era a seguinte: Fontinha, Américo, Melchior, Francisco, Gabriel, Miguel Temporão, Filipe Temporão, Grilo e José Ramalho.
Enquanto os skinheads conversavam na casa de um deles, Pedro Grilo ainda dormia. Ao regressar das compras, a sua mãe recebeu uma chamada da sua irmã, antiga simpatizante da Liga Comunista Internacionalista (LCI), perguntando-lhe se o filho estava em casa e se tinha ido para Lisboa na noite anterior. Sim, está em casa, mas deixa-me falar com o Pedro, respondeu Natalina do Carmo. Foi ao quarto do filho e acordou-o, confrontando-o, ao que ele respondeu: sim, estive, porquê? Houve desacatos na sede do PSR em Lisboa, um homem foi morto, informou a mãe.
Enquanto os inspetores tentavam que Pedro Grilo lhes abrisse a porta, um deles, Carlos Ademar, viu pela janela que Grilo tinha metido uma faca numa das mangas da camisola.
Ele ficou surpreendido, mas disse-lhe para não se preocupar, que não tinha nada a ver com isso. Ela tranquilizou-se um pouco, mas a preocupação não desapareceu, sabia as companhias com que o filho andava. Natalina convidou-o para almoçar em casa de uma amiga dela e ele recusou, disse que preferia ficar em casa a acompanhar as notícias. Natalina seguiu para casa da amiga acompanhada pela filha mais nova, mas continuou preocupada com o filho. Decidiu então ligar-lhe para saber como estava.
Foi então que ele, nervoso, lhe disse que estavam dois homens que diziam ser da polícia a bater-lhe à porta. Enquanto recusava os pedidos de um deles para abrir, o outro inspetor da PJ, Carlos Ademar, deu uns passos para o lado e viu pela janela que Grilo tinha metido uma faca numa das mangas da camisola. A mãe, entretanto, chegou e obrigou-o a abrir a porta. “Claro que foi logo algemado e que continuámos a conversa na polícia”, conta o antigo inspetor. O seu interrogatório começou horas depois, às 17 horas.
Ao mesmo tempo, também em Almada, Américo continuava a fazer chamadas. Ligava para casa dos irmãos Temporão, Miguel e Filipe, para se encontrarem na rua. O antigo paraquedista contou novamente a notícia da morte de José Carvalho e depois separaram-se, sem nenhum dos três dar mais pormenores nos interrogatórios sobre o que mais disseram uns aos outros.
Horas depois, todos os skinheads envolvidos naquela noite tinham inspetores da PJ a bater-lhes à porta no sábado à tarde para os levarem para a Rua Gomes Freire. Foram todas encaminhados para o mesmo corredor desconfortável, sentaram-se nos compridos bancos de madeira e esperaram pela sua vez de ficarem frente a frente com os inspetores.
À vez, os inspetores chamaram os cabeças rapadas pelo nome: João Paulo Fontinha, José Ramalho, Américo da Silva, Miguel Temporão, Filipe Temporão, Francisco Santos, Melchior dos Santos – os inspetores foram buscar este último a Tancos, onde tinha acabado de assentar como praça. Dois dias depois, na segunda-feira, foi a vez de Gabriel Pereira. Todos acabaram interrogados com o folheto “auto de inquirição de arguido” no topo, exceto Fontinha e Ramalho, que receberam o “de inquirição”.
Num primeiro interrogatório, nem todos os skinheads apontaram Pedro Grilo como homicida. Américo concentrou-se em argumentar que o seu grupo foi a verdadeira vítima, que estava a passar pela sede do PSR quando, subitamente e sem provocação, se viu atacado, salientando não ter visto qualquer membro do seu grupo com facas. Miguel Temporão e Filipe Temporão reforçaram a narrativa de que ninguém no grupo tinha por hábito andar com facas. Gabriel Pereira nada viu da facada, alegando já ter abandonado o local nessa altura.
Foram as declarações de Fontinha e Ramalho que despontaram o interesse inicial da PJ por Pedro Grilo. Com base no depoimento de Fontinha, o primeiro a ser interrogado, a polícia escreveu que este “já por duas vezes viu o Grilo com uma faca de cozinha no bolso. Nunca viu nem tem conhecimento que outro skinhead ande com facas ou navalhas no bolso”.
Questionado por largas horas pelo inspetor Carlos Ademar, José Ramalho, de 15 anos, começou por se fazer de forte: não ia ceder, não ia falar, mas acabou por conversar abertamente. Estava a ser interrogado ao mesmo tempo que Grilo, e os inspetores iam entrando e saindo da sala, cruzando as informações obtidas nos dois interrogatórios. Ramalho relatou a forma como a noite começou, quando deu a sua navalha com ponta partida a Pedro Grilo e, no final, questionado especificamente sobre o jovem loiro, depois das declarações de Grilo, apontou-lhe o dedo. “[Ramalho] Conhece o Grilo e sabe que ele em situação de conflito não olha a meios para se vingar ao ponto mesmo de espetar uma navalha, não para matar, mas para marcar. Mesmo quando ele bebe mais uns copos fica implicativo e agressivo, mesmo para os próprios colegas”, lê-se no auto de inquirição.
O inspetor Carlos Ademar, hoje reformado e que se dedica a escrever romances, lembra-se muito bem desse interrogatório a Ramalho, pois foi-lhe “confessado o autor, não propriamente com a certeza absoluta de que tinha sido ele”. “Fiquei firmemente convencido com as declarações do Ramalho. Aquilo que confessa teve um peso muito significativo, tornou-se muito credível. Não tinha nada a perder, como a cúpula do grupo”, recorda. É que os membros do grupo, disse Ramalho, não se inibiam de usar a violência, “como bastas vezes” acontecia. Andavam normalmente armados, principalmente com bastões de ferro, e chegavam até a usar facas ou navalhas, acrescentou no mesmo interrogatório.
Com base no depoimento de Fontinha, a polícia escreveu que o skinhead "por duas vezes viu o Grilo com uma faca de cozinha no bolso. Nunca viu nem tem conhecimento que outro skinhead ande com facas ou navalhas no bolso”.
Depois dos testemunhos de Fontinha e Ramalho, a suposta confissão de Grilo de ter esfaqueado alguém naquela noite fez com que toda a atenção dos inspetores ficasse concentrada em si. Mas não se ia ficar por aí. Seguiram-se mais interrogatórios e as suspeitas em torno de Grilo ainda se fortaleceram mais com as declarações de Melchior dos Santos e de Francisco Santos.
Melchior afirmou que o único do grupo com uma arma branca era Grilo, pois “momentos antes o tinha visto ameaçar alguém” com ela, e que nos confrontos com o PSR a tinha empunhado e “espetado a navalha na vítima”. E, depois de nada de incriminatório dizer num primeiro auto, Francisco Santos quebrou o silêncio e contou a suposta confissão de Grilo. “Este disse-lhe que tinha espetado a faca num ‘gajo qualquer que lá estava”, lê-se no auto, no qual Santos também refere que “Grilo estava todo maluco”. Não houve uma terceira pessoa nessa conversa. Seria sempre palavra contra palavra.
Se nenhum dos skinheads viu Grilo desferir o golpe fatal, como chegaram então os inspetores tão rapidamente ao culpado? “Por exclusão de partes”, responde Carlos Ademar. “A única pessoa que pode ter sido é o Grilo. [Ramalho] Disse isto com uma certa mágoa, porque era amigo dele. Porém, limita-se a constatar factos, porque era o único que tinha arma branca.”
Os skinheads eram conhecidos por usarem armas brancas nos confrontos com punks e militantes de esquerda e não se pode descartar que mais algum além de Grilo carregasse uma consigo. A verdade, no entanto, é que a navalha com 8,1 centímetros de lâmina que Ramalho deu a Grilo no caminho para o jantar em casa de Melchior dos Santos foi depois encontrada em cima da secretária do quarto do principal suspeito, onde o próprio disse que estaria, acompanhada por propaganda do Movimento de Ação Nacional (MAN), associação de extrema-direita. A arma foi sujeita a perícias forenses e, num relatório de 6 de novembro de 1989, concluiu-se: “na navalha enviada para exame não se detetaram vestígios hemáticos”, ou seja, não foi detetado sangue.
Numa fase inicial, pensou-se que a navalha de ponta e mola encontrada no beco na madrugada daquele sábado fosse a arma do crime, ao conter vestígios de sangue e da camisola de José Carvalho. Mas, uma semana depois do crime, José Painho e Tiago Sousa vieram a público dizer que a arma branca pertencia ao segundo e que tinha sido usada para cortar a camisola, para se perceber onde é que o militante do PSR tinha sido esfaqueado. Demoraram uma semana a assumi-lo por ambos pensarem que a faca deixada no beco estava com o outro amigo. E assim tinha deixado de haver arma do crime, pensando-se depois que poderia ser a navalha encontrada em casa de Grilo. Também não era a arma do crime.
Portanto, se nem a faca encontrada no local do crime nem a que Grilo diz ter empunhado naquela noite foram as armas do crime, então qual foi? Nunca foi encontrada, suspeitando-se que um dos skinheads se desfez dela ainda em Lisboa, a caminho de Almada ou mesmo já do outro lado da margem.
Independentemente de haver arma do crime ou não, pois naquela altura os skinheads não o sabiam, várias atitudes são claras nos interrogatórios que se seguiram àquele sábado: todos se tentaram distanciar do acontecimento (quando o crime foi recriado, uma semana depois da noite do crime, nenhum ultrapassou a linha da porta da sede), entraram em contradições sobre factos basilares, garantiram não ter combinado o que dizer às autoridades, enfatizaram não ter o hábito de andar com armas brancas e a maioria reforçou ainda o clima de suspeição em torno de Grilo, apontando-lhe o dedo, como foi o caso de Américo. Nenhum soube explicar o porquê de Grilo ter sido deixado de fora dos vários encontros, inclusive Américo, o “responsável” por todos eles.
Mais tarde, em janeiro de 1990 e em declarações às autoridades, Américo reforçou a propensão para a violência de Grilo. Américo admitiu ter tentado arrancar um crachá do casaco de Miguel Casanova e disse que Grilo ameaçou agredir o jovem comunista, deixando cair o tubo metálico, prontamente agarrado por Américo. Grilo, disse Américo à PJ, pediu-lhe o “tubo com insistência”, mas o skinhead recusou para “evitar” que “se metesse em problemas”. Américo não refere qualquer agressão a Casanova, mas aconteceu. E quem provocou e agrediu Casanova naquele início de noite foi Américo e não Grilo, disse-nos perentoriamente o comunista. “Foi o Américo, eu estava virado para umas montras e ele estava de lado. Não houve nenhum deles a tentar acalmar nada”, conta-nos Casanova.
A enfatização da agressividade de Grilo não se ficou por aqui. Américo contou depois que Grilo se envolveu em desordem com uma outra pessoa, puxando uma “arma branca” e ameaçando-a com ela. Quando Grilo guardou a faca, por recomendação dos outros skinheads, o indivíduo esticou um braço e foi aí que Américo interveio, dando “duas estaladas na cara do Grilo” por “andar sempre a causar problemas”.
Esta história é completamente omissa nos relatos de todos os skinheads. Nenhum refere estaladas a Grilo, o que seria marcante na vida interna do grupo. A única referência a uma situação vem da parte de Ramalho ao dizer que um indivíduo passou pelo grupo de skinheads, quando estavam próximos de uma cervejaria antes do ataque ao PSR, e que Grilo levantou a camisola para mostrar a navalha que recebeu no início da noite, dizendo ‘olha aqui’, não se passando mais nada.
“A ideia com que fiquei do que eles me foram dizendo era ser o tipo mais atrevido, mais tresloucado, que ia sempre mais à frente do que os outros queriam ir”, recorda Carlos Ademar. “Lavam todos as mãos, claro. Agora, não podemos é subentender que o facto de eles estarem a empurrar Grilo era porque também tinham as mãos sujas.”
Os inspetores construíram nessas primeiras horas de investigação uma tese, tentaram reforçá-la com prova testemunhal e não equacionaram mais nenhuma linha de investigação.
As fragilidades da investigação começaram a surgir logo nessa vaga de interrogatórios. As atenções ficaram completamente viradas para Grilo, notando-se que os outros skinheads falaram sobre ele por iniciativa dos seus interrogadores. Os inspetores construíram nessas primeiras horas de investigação uma tese, tentaram reforçá-la com prova testemunhal e não equacionaram mais nenhuma linha de investigação.
“O que interessa ali não é andar à procura de linhas, é encontrar a linha certa. O ponto de vista da PJ é que encontrou a linha certa e, se a encontrou, não há razão para continuar à procura de outras”, garante o antigo inspetor.
A aposta da PJ na prova testemunhal é suscetível de levantar dúvidas por ter sido recolhida antes e depois de os cabeças rapadas se terem reunido e falado sobre a noite do crime. Além disso, ao saberem que uma pessoa do grupo era de especial interesse, mesmo considerada arguido principal, bastava reforçar as suspeitas para que as responsabilidades não recaíssem sobre eles.
Mas não só. As provas materiais foram praticamente inexistentes: autópsia, análise às roupas de Carvalho e às duas armas brancas que acabaram por não ser a arma do crime. “Mesmo depois da confissão [de Grilo], não se chegou a fazer nada disso, não se foi à procura de nada. Numa situação destas, é normal pensar que temos o que precisamos, não precisamos de mais nada”, disse Carlos Ademar. “Podíamos ter pensado em ir buscar a roupa, sim, mas quantas vezes isso não se faz…”
Uma das lacunas da investigação foi, por exemplo, a falta de análise forense às roupas dos skinheads envolvidos. Quem desferiu a facada teve de fugir a correr do local do crime com a arma branca e, portanto, é plausível que lhe tivesse ficado sangue nas roupas. Mas a PJ não recolheu as roupas dos cabeças rapadas envolvidos e, diz Carlos Ademar, é bem possível que na ida a casa de Pedro Grilo lhe tenha conferido as roupas e não ter encontrado vestígios de sangue.
Ainda que naquela altura não houvesse testes de ADN forenses, poderia ter-se procedido a análise de vestígios hemáticos, que deteta o tipo de sangue, e a partir daí explorar essa pista em interrogatórios. Não foi feito. Questionado sobre o que faria de forma diferente mais de 30 anos depois, Carlos Ademar responde que o recolher da roupa seria “uma questão que ponderaria, pelo menos vê-la”, salientando que ficar-se contaminado com sangue “não faz de nós criminosos”. Mas seria uma pista.
Depois de terem fornecido as identidades dos oito skinheads à Polícia Judiciária, os militantes do PSR sabiam que era uma questão de tempo até eles serem detidos. Só lhes restava aguardar e pensar no presente mais imediato: como reagir ao homicídio? Não apenas junto da opinião pública, mas também entre a esquerda radical. Quais os próximos passos a dar naquela reunião que fervilhava de ânimos exaltados?
A tensão fazia-se sentir no ar e, apesar de ser uma reunião partidária, institucional, houve um pequeno grupo de presentes que avançou com uma proposta: criarem-se grupos de autodefesa. Há meses, se não anos, que os skinheads espancavam impunemente negros, punks, homossexuais e militantes de esquerda e era uma questão de tempo até alguém ser morto. José Carvalho foi assassinado e nada garantia que os cabeças rapadas não voltassem a matar. Era preciso defenderem-se, argumentou Miguel Casanova, na altura militante da Juventude Comunista Portuguesa e uma das vítimas do ataque na sede do PSR.
A proposta foi, não obstante, liminarmente recusada. Vamos deixar a PJ agir, não vamos fazer justiça pelas nossas próprias mãos, disse a grande maioria dos presentes no encontro. Casanova saiu derrotado e por isso juntou mais oito antifascistas algumas semanas depois para, a bordo de uma carrinha branca, andarem por Almada e Lisboa à caça de skinheads. A arma preferida eram os ferros dos carrinhos dos supermercados, pois “escorregavam muito bem de dentro dos casacos”, contra os tacos de basebol e armas brancas dos cabeças rapadas.
“Tivemos aí umas quatro ou cinco cenas que eles levaram a sério. Daquelas em que tirámos a barriguinha de misérias. Não podia ser só apanhar”, conta Casanova. Skalgés, um dos fundadores em Portugal dos Skinheads Against Racial Prejudice (SHARP) na década de 1990, grupo que enfrentava a extrema-direita nas ruas, foi convidado a participar, mas nunca chegou a fazê-lo, disse-nos.
Se a proposta de Casanova foi derrotada, a verdade é que o seu sentimento e análise política extravasavam as paredes do local da reunião, ainda que fosse muito minoritária. Fora das andanças políticas, no bairro da Venda Nova, onde José Carvalho vivia e de onde era natural, os seus amigos também se tentaram organizar uma semana depois para se vingarem. “Tentou-se fazer uma milícia para ir à procura do culpado. Olho por olho, dente por dente”, recorda João Correia. Passada a indignação inicial, a intenção desapareceu e a ideia nunca passou à prática.
Nos dias seguintes ao assassinato, o PSR recebeu, através de cartas e telegramas, a solidariedade de muitas organizações políticas nacionais: PS, PCP, MDP-CDE, Os Verdes, Intervenção Democrática, União Democrática Popular (UDP), Juventude Socialista, Juventude Comunista Portuguesa (JCP), Frente de Esquerda Revolucionária (FER) e Partido Popular Monárquico. Até a Assembleia da República aprovou, a 31 de outubro, um voto a condenar o assassinato, demonstrando a repercussão e conotação política que o caso estava a receber.
“Teremos que organizar todo o país e aonde existir um só nazista, deve ser atacado e denunciado publicamente. Aí devem usar meios idênticos aos que fizeram tombar para sempre o camarada, não lhes perdoem", lê-se numa carta endereçada a Francisco Louçã.
A FER foi uma das organizações que assumiu um posicionamento mais radical ao defender a “sistemática organização da autodefesa armada”, à semelhança de Casanova. “A conclusão que é necessário tirar deste bárbaro atentado aponta para a sistemática organização da autodefesa armada de todas as manifestações, comícios, greves ou ações de massas”, escreveu a organização num comunicado de imprensa emitido a 28 de outubro de 1989 e enviado ao PSR.
“Teremos que organizar todo o país e aonde existir um só nazista, deve ser atacado e denunciado publicamente. Aí devem usar meios idênticos aos que fizeram tombar para sempre o camarada, não lhes perdoem. Se for preciso, avisem que eu vou ajudar, não hesitem, que é isso mesmo que eles pretendem, poi sabem-se acobertados pelos donos do país”, lê-se numa carta de autoria individual endereçada a Francisco Louçã.
Independentemente das posições, o sentimento geral foi ter-se tratado de um crime contra a democracia portuguesa e de um alerta dramático da reorganização da extrema-direita no país. O homicídio não era um caso isolado, mas o ápice da escalada de uma violência há muito sentida das ruas sem que as autoridades atuassem. Essa comoção sentida, ainda que não expressada formalmente na reunião daquela manhã, reforçou mais tarde a convicção entre a cúpula do PSR de que o confronto que se seguia deveria ser sobretudo político, através de um movimento pacífico alargado. A música seria, mais uma vez, a sua arma.
Assim sendo, foi com naturalidade que a principal decisão dessa reunião tenha sido alertar para o perigo da extrema-direita nas ruas com a realização de dois grandes concertos. O maior aconteceu no Pavilhão dos Desportos, na Cova da Piedade, em Almada. O mote foi “Rock contra a violência da extrema-direita” e a localização não foi feita ao acaso: era o grande epicentro do movimento skinhead e onde o Movimento de Ação Nacional tinha a sua sede.
O objetivo era juntar o maior número de bandas para se construir um movimento alargado. Conseguiram-no: o cartaz, com uma fotografia de José Carvalho, apresentava 19 bandas, entre as quais Xutos e Pontapés, Clandestinos, Censurados, Rádio Macau e Sitiados.
Mas também houve divergências, ainda que muito minoritárias: três bandas (João Peste e os Acidoxbordel, Mão Morta e Santa Maria Gasolina em Teu Ventre) acusaram o PSR de ser “autoritário” e de “utilização abusiva do nome das bandas” para “fins de propaganda partidária sem autorização dos mesmos”. É que a designação inicial do concerto, criticaram, foi mais tarde alterada para se transformar numa homenagem a José Carvalho.
“A intenção inicial não era homenagear ninguém, mas realizar concertos onde as bandas e os artistas manifestassem o seu repúdio pela atividade de grupos direitistas, como os skinheads, e contra a violência que provocou a morte de José Carvalho”, disse João Peste à revista Blitz de 21 de novembro de 1989. “Não pretendemos criar ou ajudar a criar nenhum mártir político.”
O primeiro passo para a realização do grande concerto foi a conferência de imprensa, no final da reunião da sede naquela manhã, dada por Francisco Louçã, líder do partido. Considerou que o assassinato era um crime político, que não foi por acaso ter sido José Carvalho, uma vez que já era conhecido dos cabeças rapadas, de acordo com A Capital de 28 de outubro de 1989. “Já foram feitas ameaças a dirigentes do PSR pelos skinheads e anteriormente já se registaram confrontos, embora sem proporções de maior”, disse Louçã.
Em abril de 1991, o jornalista do Público Luís Pedro Nunes, escreveu que, da investigação ao julgamento, “a carga política de que se revestiu o caso terá obrigado à apresentação imediata de um culpado, tratando-se ou não de um bode expiatório”.
Nos dias seguintes, conta atualmente Louçã, a pressão mediática “provocou uma resposta das autoridades”. O então ministro da Justiça, Fernando Nogueira, recebeu a cúpula do PSR para uma reunião e nela garantiu ter posto “tudo à disposição para produzir as investigações todas”. Louçã, por sua vez, argumentou, citado pelo Expresso de 4 de novembro de 1989, que o assassinato foi “um crime político que exige uma profunda investigação, com vista a determinar redes de influências em que os bandos [de cabeças rapadas] se movimentam”. O alvo era o Movimento de Ação Nacional.
O presidente Mário Soares, recorda o então líder do PSR, também pressionou as autoridades, “mexeu-se muito, foi logo falar com a família, com a mãe dele [de José Carvalho], o que causou uma pressão muito grande”.
No telegrama enviado aos pais de Carvalho, Soares indignou-se pela “bárbara agressão” de que José Carvalho foi vítima, expressou as suas condolências e manifestou confiança de que “os tribunais portugueses saberão fazer justiça”, de acordo com o jornal Diário de Notícias de 31 de outubro de 1989.
Um dos momentos em que essa pressão se fez sentir foi no enterro de José Carvalho, no domingo, 29 de outubro de 1989. O corpo esteve em câmara ardente na capela das Furnas, em São Domingos de Benfica, e, ao final da manhã foi depositado no Cemitério de Benfica. Centenas de pessoas despediram-se de José Carvalho. Estiveram presentes representantes de várias forças políticas: Vasco Lourenço, capitão de Abril e membro da Associação 25 de Abril, António Andrés, dirigente do PCP, Lopes Cardoso, da direção do PS, e uma delegação da JCP, composta pela deputada Paula Coelho e Rogério Moreira.
“O nosso camarada foi morto pelos fascistas, mas nós estamos aqui para provar que ainda existem antifascistas”, disse Francisco Louçã, pouco antes de a urna, coberta por uma bandeira do PSR, ser depositada num gavetão. Atiraram-se cravos vermelhos e gritou-se “a luta continua!”.
Mais tarde, a 9 de novembro, o Presidente da República concedeu uma audiência ao PSR no Palácio de Belém e a comitiva do partido, encabeçada por Francisco Louçã, aproveitou para convidar Soares para o primeiro grande concerto contra a extrema-direita.
“Informámos o Presidente da República das circunstâncias em que ocorreu o crime”, disse Louçã, tendo também sido entregue um dossier com “elementos sobre a atividade de grupos neonazis em Portugal, de acordo com o jornal A Capital de 10 de novembro de 1989. “O concerto de dia 17, no Pavilhão dos Desportos, vai ser um primeiro momento de mobilização da opinião pública democrática contra os perigos do ressurgimento de grupos neonazis em Portugal.” A pressão política sobre as autoridades era, assim, significativa.
Em abril de 1991, o jornalista do Público Luís Pedro Nunes, um dos que mais acompanharam todo o caso, escrevia que, da investigação ao julgamento, “as pressões fizeram-se sentir de várias formas, inclusive por parte do então ministro da Justiça, Fernando Nogueira, que se interessou logo pelo caso e que telefonou várias vezes ao Diretor-geral da PJ, [José] Marques Vidal, para se inteirar do decorrer das operações”. “A carga política de que se revestiu o caso terá obrigado à apresentação imediata de um culpado, tratando-se ou não de um bode expiatório”, continua a notícia, baseada em fontes bem posicionadas dentro da PJ. Contactado, Luís Pedro Nunes confirmou o que escreveu e acrescentou que, tendo em conta a sensibilidade do que era relatado, a notícia passou pelas mãos de três editores.
Sobre se sentiu ou assistiu a pressões políticas durante a investigação, porventura para o caso ser resolvido o mais rapidamente possível, Carlos Ademar garante que não. “Não sei nada das pressões do diretor, mas não tenho conhecimento de nenhuma divergência. Pressões do ministro para o diretor-geral não me admiro, nem é bem pressões, é querer saber coisas. Mas nos homicídios normalmente não há pressões”, disse.
Nessa mesma notícia, inspetores da PJ disseram sem dar a cara “que as investigações ‘foram mal conduzidas desde o primeiro momento’, tendo-se cometido ‘erros crassos’”. Chegaram mesmo a afirmar que Pedro Grilo estava “inocente”. “Quem sabe se as coisas foram bem ou mal feitas é quem está e segue a investigação”, contrapõe Carlos Ademar.
O antigo inspetor ainda hoje reitera, sem hesitação, a qualidade da investigação e o tempo recorde em que o crime foi atribuído a uma pessoa. “Tendo em conta os resultados e o tempo que se demorou, correu muito bem. Nós trabalhámos o fim de semana todo, mobilizámos a secção toda. Foi uma investigação dentro do normal para aqueles tempos”, disse Carlos Ademar.
Há meses em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Caxias e sentindo-se traído pelos amigos que julgava camaradas, Pedro Grilo apontou o dedo a Américo e a Melchior já na fase de instrução, em maio de 1990. Argumentou ter começado a “juntar as peças do puzzle” e reclamou inocência.
Disse que foram os dois que avançaram mais fundo no beco, o que se confirmou nos dois casos ao cruzarem-se os depoimentos de todos os presentes: Américo ao lutar com José Carvalho e Melchior ao acompanhá-lo. Garantiu que os dois carregavam consigo muitas vezes navalhas de ponta e mola, que já os tinha visto a empunhá-las noutras lutas. Acusou a confissão de Francisco Santos de ser uma “encomenda de Américo, já que este conhecia bem o Chico e eram bastante amigos”. Concluiu afirmando crer “ter sido o ‘escolhido’ para bode expiatório do crime por as circunstâncias ajudarem nesse aspeto”.
No seu primeiro interrogatório, Américo admite ter-se envolvido numa luta com José Carvalho depois de ambos terem deixado cair a ripa de madeira e a barra de ferro. Foi o único cujas testemunhas viram a tocar no militante de esquerda. Segundos depois, Carvalho apareceu no chão do beco da Rua da Palma. Como é que Américo, o mais forte e atlético de todos os skinheads por ser ex-paraquedista, se largou do militante de esquerda? O cabeça rapada limitou-se a dizer que o seu oponente era fraco e que não sabia lutar.
Uma das justificações para não poder ter sido Américo foi ele estar em frente à porta da sede do PSR, do lado mais próximo ao fundo do beco, quando José Falcão saiu da sede com uma barra de metal, desferindo-lhe um golpe no ombro. "O Américo garante que não foi, porque estava à porta da sede quando eu saí", disse-nos Falcão. Mas, nessa altura, segundo se conclui da leitura dos depoimentos das testemunhas do PSR, Carvalho já estaria no chão. O beco é relativamente pequeno e o skinhead facilmente se reposicionaria em frente à porta.
Foi precisamente essa dúvida que surgiu em maio de 1990, em fase de instrução, quando a investigação estava já encerrada. Dois inspetores da PJ envolvidos na investigação foram interrogados por outros inspetores da mesma equipa que investigou o homicídio, entre os quais Carlos Ademar, sobre o porquê de terem concluído não ter sido Américo.
Nos seus relatos, um dos inspetores diz basear-se no depoimento de uma testemunha, José Oliveira, militante do PSR entretanto falecido, para afastar a hipótese de ter sido Américo. Oliveira, afirmou o inspetor, disse-lhe que tinha sido um “skinhead, novo, alto e magro empunhando um objeto cortante, lâmina a luzir, tentando picar a vítima, que foi recuando para evitar ser espetado, até chegar quase à esquina do prédio que fica defronte daquele onde funciona o PSR, local onde deu um grito “ai”, recuando mais dois ou três passos e caiu no chão”.
A descrição encaixa em Grilo que nem uma luva, mas há um problema. Se Oliveira o disse, estas declarações não constam no seu auto de inquirição, assinado a 28 de outubro de 1989. Seria um testemunho essencial. O que consta nos autos é que o militante do PSR “não viu a agressão”, nem quem desferiu o golpe mortal, e que “não fixou qualquer pormenor que possa levar à identificação dos dois skinheads que tinham os dois referidos instrumentos”, referindo-se ao da barra de metal e ao da arma branca. Sobre a arma branca, deixou claro não ter conseguido fixar as suas dimensões, “nem mesmo se apercebeu que fosse faca de cozinha ou navalha de ponta e mola”. “Conhece perfeitamente estes instrumentos e por isso refere não os ter distinguido”, lê-se no auto.
Em maio de 1990, dois inspetores envolvidos na investigação foram interrogados por outros inspetores da mesma equipa que investigou o homicídio sobre o porquê de terem concluído não ter sido Américo.
O outro inspetor defendeu a tese de não poder ter sido Américo apoiando-se nas próprias declarações do skinhead, pois este admitiu ter-se envolvido numa luta corpo a corpo com a vítima, mas afastou-se dela quando ainda respirava para ajudar Melchior, que Américo garantiu estar em frente à porta da sede.
Um outro cabeça rapada de potencial interesse era Melchior, por ser um dos que mais avançou pelo beco. As declarações do primeiro inspetor terão tido impacto na fase de instrução, uma vez que uma parte significativa do processo se debruçou depois sobre quais as roupas que cada cabeça rapada usava naquela noite, assim como a sua composição física.
Melchior e Grilo tinham a mesma idade e eram ambos altos, magros e loiros, com o cabelo rapado. Grilo disse mais tarde, em fase de instrução, que Melchior quis trocar de roupa consigo no Campo Mártires da Pátria, sendo esse pedido confirmado por Miguel Temporão em auto de perguntas (Gabriel também o confirmou, mas depois corrigiu a declaração) e negado por Melchior. Os outros skinheads afastaram-se da questão dizendo não ter ouvido o pedido. Esta falha permitiu à defesa de Grilo criar dúvidas sobre quem terá desferido o golpe.
Uma das grandes lacunas da investigação, influenciando-a profundamente, foi a fuga de informação que apresentou Pedro Grilo como homicida confesso ao país. Este facto limitou a margem de manobra da PJ, caso o quisesse, para explorar outras linhas de investigação. Perdeu-se a possibilidade de explorar as fragilidades (e contradições) do grupo, por se quererem salvar individualmente, reunindo-se mais provas.
“[A investigação] estava encerrada na noite de sábado e aqueles fulanos que estavam lá nessa noite ficaram a saber que Pedro Grilo estava em maus lençóis”, diz Carlos Ademar.
Ao contrário de Grilo, todos os outros skinheads ficaram em liberdade depois do primeiro interrogatório e, segundo Gabriel Pereira e Miguel Temporão, voltaram a encontrar-se à noite em casa de Américo no “domingo ou na segunda-feira imediatamente seguinte aos acontecimentos”.
Estiveram presentes Américo, Francisco Santos, Gabriel e Miguel Temporão. Francisco voltou a contar a história da confissão e “conversou-se igualmente sobre as declarações que cada um havia prestado perante a PJ”, disse Gabriel em auto de perguntas. A partir daí, Américo disse não ter dúvidas de que foi Pedro Grilo o culpado: “Além do Grilo não conhece qualquer outro seu companheiro que ande com facas, só aquele é que tem a mania e que já tem causado problemas aos outros, que não concordam que ele use armas brancas”, disse num segundo interrogatório a 7 de novembro de 1989.
Ao contrário de Grilo, todos os outros skinheads ficaram em liberdade depois do primeiro interrogatório e voltaram a encontrar-se no “domingo ou na segunda-feira imediatamente seguinte aos acontecimentos”
Depois daquele sábado de 28 de outubro novos factos foram surgindo a conta-gotas, como o das análises forenses às duas armas do crime. As supostas provas materiais do crime evaporaram-se e só restaram as provas testemunhais, o que levantou dúvidas. Resumindo, no final da investigação não havia quem tivesse visto quem desferiu o golpe fatal, não havia arma do crime, o local do crime estava contaminado e as provas testemunhais para condenar Grilo vieram dos restantes skinheads. Ou seja: chegou-se a Grilo por exclusão de partes, e muito por causa do seu interrogatório.
Daí que a investigação tenha sido posta em causa e criticada em páginas de jornais. Esta situação levou o inspetor-chefe dos Homicídios, Eduardo Dias Costa, a vir a público assegurar a integridade da investigação, garantindo que foi Grilo quem desferiu o golpe fatal, algo incomum para um responsável policial. “Não temos dúvidas de que foi o Pedro Grilo quem esfaqueou o dirigente do PSR”, afirmou ao jornal Independente na sua edição de 12 de dezembro de 1989. A partir daí, a PJ, arriscava-se a perder credibilidade se quisesse no futuro enveredar por outro caminho.
Pedro Grilo foi condenado pela Justiça portuguesa pelo homicídio de José Carvalho, mas a investigação mostra ter inúmeras lacunas. O interrogatório sem advogado nomeado, a fuga de informação, a falta de provas materiais, a aposta na prova testemunhal e o facto de não se ter considerado outras linhas de investigação fragilizaram o apuramento total dos factos. Acabou por ser um dos julgamentos mais mediáticos da década.
Um agradecimento especial à jornalista Cláudia Marques Santos pelo apoio que deu durante a investigação.
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