José da Conceição Carvalho foi assassinado há 33 anos. Skinheads de extrema-direita atacaram a sede do Partido Socialista Revolucionário (PSR) na madrugada de 28 de outubro de 1989 e um deles matou a sangue frio. Esta é a história daquela noite.
[Esta é a primeira parte da série Anatomia de um homicídio.]
Saiu de novo do escuro do beco para espreitar quem descia a Rua da Palma. Conhecia bem o modo de agir dos skinheads de extrema-direita e sabia que não iriam deixar a noite passar sem se vingarem. Acendendo mais um entre tantos cigarros fumados naquela noite de sexta-feira, viu de soslaio mais de dez cabeças rapadas a correr pela rua lisboeta abaixo. Gritavam: “Ao ataque! Morte ao comunismo!”.
Miguel Casanova berrou para dentro da sede do Partido Socialista Revolucionário (PSR) alertando para o ataque iminente, mas viu-se abafado pela música da banda Censurados. Dois skinheads, os mais próximos do grupo da sede, lideravam a carga e, segundos depois, pedras começaram a cair. Quatro cabeças rapadas já estavam no beco que dava acesso à porta da sede quando José Falcão tentou entrar à procura de algo com que se defender, mas foi agredido, caiu, e ficou com mazelas na mão esquerda e na barriga. A porta fechou-se atrás de si. Para se protegerem, Casanova e os seus camaradas recuaram para o beco. Estavam encurralados. Quatro skinheads atiravam pedras enquanto outros quatro avançavam pelo beco, como se de uma tática militar previamente acordada se tratasse. Eram oito atacantes para seis defensores.
A confusão instalou-se. A sede tornou-se inacessível, o beco era escuro e os cabeças rapadas estavam cada vez mais perto. Para lhes travar o avanço, dois militantes de esquerda no primeiro andar da sede atiraram um caixote do lixo e uma cadeira de madeira pela janela. Sem sucesso: a cadeira partiu-se ao embater no chão e o grupo continuou a avançar. Um dos defensores foi de imediato atingido por uma pedra na cabeça, outro levou com um objeto de madeira na cara, sem que se apercebesse de onde veio, deixando-o desnorteado
Ao mesmo tempo, a meio do beco, um outro defensor e Casanova, empunhando ambos ripas de madeira, recuavam perante o avanço de dois skinheads. Casanova atirou a sua ripa de madeira, mas falhou o alvo. Vendo que já não podia impedir a entrada dos cabeças rapadas, o jovem comunista procurou refúgio onde outros militantes do PSR já estavam: no topo de umas escadas ao fundo do beco. O defensor que estava ao seu lado viu-se sozinho a enfrentar os dois skinheads, acompanhados por outros dois, um deles com uma arma branca, que a esgrimia para a frente e para trás, enquanto o outro se dedicava a dar murros e pontapés a quem lhe barrava o caminho.
Um dos dois skinheads que lideravam o ataque, munido com uma barra de ferro, avançou sobre o defensor com a ripa na mão, mas, ao tentar desferir um golpe, foi atingido no pulso. As armas caíram ao chão, o militante do PSR agarrou-se ao seu adversário pela cintura, envolveram-se numa disputa. Largaram-se. Poucos segundos depois o defensor, de cabelo comprido encaracolado, gritou um “ai”, deu três passos para o lado e tombou no chão. Ali ficou o corpo de José da Conceição Carvalho.
Ouvindo-o, Casanova desceu as escadas em seu auxílio, mas acabou atingido nas canelas por uma perna da cadeira partida, caindo também ao chão, mesmo ao lado do corpo sem reação de José Carvalho. A poucos metros, o skinhead que empunhava o ferro já estava em frente da porta da sede quando se confrontou com José Falcão, que ao sair lhe desferiu um golpe no ombro com uma outra barra de ferro, normalmente usada para trancar as janelas da sede. Ao sair, os restantes cabeças rapadas já estavam em fuga, não conseguindo ver o que empunhavam nas mãos.
O elemento surpresa estava perdido, a relação de forças mudou e, percebendo-o, os skinheads não tiveram outra alternativa que não fugir em direção à praça do Martim Moniz. Casanova e um outro militante do PSR saído da sede ainda correram atrás deles, mas desistiram depois de lhes perderem o rasto. Regressaram ao beco.
A música do concerto antimilitarista nunca parou enquanto tudo isto acontecia cá fora. Com o nariz a sangrar e a camisola toda manchada, Paulo Carraca entrou e pediu para a banda parar de tocar a quarta, quinta música daquela noite. Só então o concerto parou: era impossível ignorar o seu ar ofegante e ensanguentado, algo grave tinha acontecido. Cá fora, os militantes do PSR pouco tempo tiveram para respirar fundo, olhar em volta e perguntar uns aos outros se estavam bem. Perceberam que no chão jazia um deles: José Carvalho, conhecido entre os amigos por Zé da Messa.
Jaime Pinho foi dos primeiros a dirigir-se ao camarada caído. Abanou-o, chamou por ele, mas não obteve resposta. “Eu pensei: ‘este gajo levou uma patada’. Só depois é que despertei e percebi o que aconteceu”, conta-nos o militante do PSR, enquanto faz um esforço para se recordar de uma noite que tentou esquecer. A palavra de que José Carvalho estava no chão sem reação espalhou-se e de imediato se chamou o 115 (antigo 112). Um carro patrulha da PSP não tardou a chegar ao local, mas a ambulância só chegaria meia hora depois.
As pessoas saíam da sede e algumas delas aproximavam-se, criando um círculo à volta do corpo caído. Foram afastadas: se era só para ver, o melhor era que saíssem. José Painho e Tiago Sousa agiram quase de imediato. O primeiro tentou estancar-lhe a hemorragia, mas como o beco era escuro, não conseguia perceber de onde vinha o sangue. Pediu um objeto cortante e recebeu da mão de Tiago uma ponta e mola de cabo preto. Cortou a camisola esverdeada, viu uma ferida no lado esquerdo do peito, mesmo por baixo do sovaco e ao lado do mamilo, e a navalha acabou no chão, sem que ninguém se lembrasse mais dela.
Uma fotografia, tirada por um fotógrafo que assistia ao concerto e publicada num jornal do dia seguinte, eternizaria o momento de entrada na ambulância: José Carvalho a ser carregado numa maca, a sua camisola rasgada e ensopada de sangue, o seu rosto sem expressão. Falcão subiu a bordo da ambulância e acompanhou o camarada e amigo ao Hospital de São José.
O óbito de José Carvalho viria a ser declarado à 1h55 de 28 de outubro de 1989, madrugada de sábado. O médico legista escreveria nesse dia, por volta das 14 horas, que a causa da morte fora uma “perfuração traumática do coração”, causada por um “instrumento perfurante, manejado com violência”, com “intenção de matar”.
O ataque dos skinheads durou entre 50 segundos a um minuto, mas foi cirúrgico e causou um morto e dois feridos. Um recebeu quatro pontos na cabeça e um no pescoço e outro ficou internado por vários dias por causa de fraturas no nariz. Não foi encontrada a arma do crime e ninguém viu quem desferiu o golpe mortal. Um dos atacantes foi condenado pelo homicídio de José Carvalho, depois de ser apontado como homicida confesso junto da comunicação social e de os seus próprios camaradas lhe apontarem o dedo. A investigação criminal ficou concluída em menos de dois dias.
Foi o primeiro assassinato com repercussão nacional a envolver skinheads e o tiro de partida para a extinção do Movimento de Ação Nacional (MAN). Esta é a história de como dois mundos completamente opostos se cruzavam e coabitavam até chocarem com um desfecho trágico. Uma noite que é, também, uma radiografia das margens políticas e culturais da época.
Naquela sexta-feira, as temperaturas rondavam os 20 graus e não havia qualquer sinal de que fosse chover. O céu límpido deixava ver a lua minguante. Tudo sugeria que fosse um final de dia agradável num outubro chuvoso, prometia ser mais uma noite de casa cheia no Bar das Palmeiras, no rés-do-chão da sede do PSR.
Há alguns anos que o rés-do-chão acolhia todas as sextas-feiras concertos antimilitaristas e a rotina estava bem oleada. Por volta das 19 horas, abastecia-se o bar de cervejas, preparava-se o jantar para 20 a 25 pessoas, discutia-se política e música, fumavam-se cigarros. Os membros das bandas iam testando o sistema de som e preparavam o palco improvisado, sustentado por dois tijolos. O cartaz dessa noite atraía quem era presença assídua: Dogue Dócil e Censurados.
Em cima, no primeiro andar da sede, desenrolava-se a reunião habitual do Movimento Tropa Não. Acontecia todas as sextas-feiras à noite e servia para afinar a linha política do movimento contra o serviço militar obrigatório, pensar-se como chegar aos jovens forçados a servir entre 18 a 24 meses nas Forças Armadas e preparar as próximas ações. Os concertos dessas noites eram precisamente uma das formas de o conseguirem: centenas de jovens, homens e mulheres, deslocavam-se ao bar e entravam em contacto com o partido de esquerda, com as suas ideias revolucionárias. O sucesso era significativo e o rés-do-chão da sede pequeno para as duas centenas de pessoas que acolhia todas as semanas. No final da década de 1980, o Bar das Palmeiras, assim chamado por o seu pequeno quintal ter duas palmeiras, era um dos principais bares de concertos de música punk.
Terminados os preparativos e a reunião antimilitarista, de se beber café para espevitar, era hora de abrir as portas e se venderem os bilhetes de entrada. Serviam para reembolsar o dinheiro do jantar e as bandas poderem ir de táxi para casa. O esquema estava bem montado, as funções bem definidas, e José Carvalho era um dos rostos dessas noites. As primeiras pessoas começaram a chegar a partir das 21 horas e o primeiro concerto, o dos Dogue Dócil, estava agendado para as 22 horas. Não chegaria a acontecer.
A pouco mais de seis quilómetros, na outra margem do rio, em Almada, dois jovens skinheads, um de 18 anos e outro de 15, caminhavam juntos em direção à casa de um amigo deles, Melchior dos Santos, de 18 anos e também skinhead. Tinham sido convidados para celebrar a sua partida para a recruta dos paraquedistas em Tancos. No caminho, José Ramalho, o mais novo, pegara num canivete com a ponta partida e cabo preto, onde tinha gravado rudemente no plástico uma suástica e uma cruz celta, e deu-lho para o resto da noite. Não venha a ser necessário, nunca se sabe, argumentou Ramalho. Com o cabelo loiro a despontar da cabeça rapada a máquina zero, Pedro Grilo agradeceu e guardou-a num dos bolsos de trás das calças.
Foram dos primeiros a chegar ao jantar e não tardou a que a mesa ficasse completa: mais de 20 pessoas, das quais 14 eram skinheads, juntaram-se para comer e beber em homenagem ao sacrifício de Melchior em abandonar os estudos para servir orgulhosamente a pátria numa unidade de elite – recebeu o Brevet de paraquedista em fevereiro de 1990. Comeu-se, bebeu-se cerveja e vinho, rematados com café. O que iriam fazer a seguir?
Ninguém tinha planos, mas João Paulo Fontinha, antigo fuzileiro de 29 anos e considerado um dos tenentes dos skinheads de Almada, fez uma sugestão. E se fossem ao Bar das Palmeiras assistir ao concerto da sua namorada, Vanda Gonçalves, vocalista dos Dogue Dócil? Oito dos skinheads já tinham o que fazer, os restantes jovens no jantar optaram por outros planos ou simplesmente não lhes apeteceu sair à noite. Despediram-se da família de Melchior, dividiram-se e uns quantos foram para os bancos do Jardim da Cova da Piedade, em Almada.
Fumaram uns cigarros, beberam mais umas cervejas, conversaram. Era apenas mais uma noite com os amigos, mas já se fazia tarde e havia que embarcar no cacilheiro para Lisboa. É que o caminho ainda demorava: tinham de apanhar uma camioneta da Rodoviária Nacional e depois o cacilheiro, desembarcar no Cais do Sodré e seguir a pé até ao Martim Moniz. Assim fizeram, apesar de saberem que não seriam bem vindos para onde iam. Ninguém os travaria. O desafio e a contestação eram a cola que unia o grupo de extrema-direita. A camaradagem deveria ser outro elo, mas não sobreviveu a essa noite.
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
O grupo não partiu todo junto para o concerto. Cerca de meia hora antes de se fazerem à estrada, outros três cabeças rapadas – João Paulo Fontinha, Américo da Silva e João Vargas - já seguiam de autocarro para o Martim Moniz. Queriam ver como estava o ambiente. Sondar. Lá chegados, juntaram-se à fila para a bilheteira composta por uma caixa de dinheiro em cima de uma cadeira, mas, resolutos, José Falcão e José Carvalho não os deixaram entrar. Skinheads não são bem-vindos aqui, ponham-se a andar, disseram-lhes. Mas vimos ver o concerto da minha namorada, ela está lá dentro, contra-argumentou Fontinha. Não, não está. Esqueçam, não vão entrar, respondeu rispidamente Falcão. José Carvalho manteve-se firme na porta e João Correia, amigo deste último, juntou-se para reforçar a mensagem: conhecia Fontinha e as suas palavras carregavam outra força.
Não era a primeira vez que skinheads andavam pelas redondezas ou que tentavam entrar na sede. Já antes tinha havido relatos de um ou outro skinhead nos concertos do Palmeiras, ainda que nunca fosse claro se eram de extrema-direita ou não, pois a confusão entre quem era skinhead ou redskin imperava. Para a maioria das pessoas, era tudo a mesma coisa: tinham o mesmo corte de cabelo, usavam as mesmas botas, os mesmos blusões. Os símbolos políticos divergiam e as ideias eram totalmente opostas - uns eram neonazis, outros comunistas ou anarquistas. Mas as ideias não eram identificáveis a olho nu.
As confusões passadas, em ataques de extrema-direita a punks nas ruas do Bairro Alto e até uma agressão à porta da sede, na qual três cabeças rapadas foram espancados com uma ripa de madeira por um só militante de esquerda, obrigavam à cautela. “Nós já tínhamos discutido [antes daquela noite] que quando os gajos viessem, nós íamos lá para dentro. E o Zé dizia: ‘meu, isso é bonito, mas o problema é que os gajos não atacam à manada, atacam um a um”, recorda hoje Falcão. “Ou seja, para quem quiser sair [da sede], os gajos estão lá do outro lado à espera. Era o modus operandi de grandes que eles são.”
Então, o que fazer? Chamar a polícia? Não era opção, pois tinha fama de alinhar muitas vezes com os skinheads, de os deixar seguir impunes, bastava que lhes mostrassem a cédula militar, e muitos dos cabeças rapadas tinham sido ou eram militares. O respeitinho era muito bonito. A solução encontrada foi haver sempre alguém de vigilância, fosse durante o concerto ou quando estivessem a arrumar a sede antes de irem para casa. Ninguém podia estar sozinho, muito menos a regressar a casa sem companhia, e a porta da sede jamais poderia ficar fechada, não fosse preciso correr para dentro ao mínimo sinal de perigo.
Pelo sim, pelo não, e depois de terem tentado entrar, havia que se estar preparado para qualquer eventualidade. José Carvalho não esteve para meias medidas: pegou numa ripa de madeira e deu-a a Jaime Pinho. “Tomei aquilo como uma cena simbólica. Dizem-te que há gajos que estão dispostos a te matar e dão-te um pau para as mãos”, conta-nos. Pinho não chegou a usar a ripa, nem sequer a desferir qualquer golpe nos atacantes.
José Carvalho e Casanova não foram os únicos a compreender o que poderia resultar dali. Chegada há menos de um ano de França, onde frequentava o circuito punk de Paris, Bárbara Cabral sabia que o número reduzido de pessoas à porta da sede não era suficiente para dissuadir um ataque dos skinheads. “Éramos muito poucos à porta, onde estava o Zé e outro pessoal do PSR, mais velho. Lembro-me de ir e vir da porta para o concerto e dizer ao Ribas [vocalista dos Censurados], que na altura era meu namorado, para parar de tocar, que se fôssemos todos para a porta, que os skins se punham a andar”, conta-nos. “E o João [Ribas] disse: ‘lá estás tu com as tuas histórias de skinheads!’. Não pararam de tocar, não fizeram nada.”
Os valores que os militantes de esquerda apregoavam não podiam estar mais distantes dos deste grupo de oito jovens que diziam defender a pátria e combater as drogas, que viam no nacional-socialismo um modelo para a sociedade.
A poucos metros do início do beco, Fontinha, Américo e Vargas aguardavam, olhavam, comentavam com desdém aqueles comunistas. Fontinha tecia insultos à namorada, tinham-se chateado no dia anterior e ela não dava sinais de vida. Ninguém sabia dela e ele ouviu dizer que andava com outro, e isso deixava-o louco. Nesses minutos de espera, os restantes skinheads juntaram-se ao grupo e ficaram a saber que tinham sido barrados. Estavam cheios de energia, as expectativas eram altas, a curiosidade ainda maior. A maioria nunca tinha entrado na sede, e ficaram ali a pairar, sem arredar pé. A sua presença desafiava e essa atitude fazia parte da sua identidade de grupo.
Vindo do Bairro Alto com um grupo de amigos, onde esteve a beber, Miguel Casanova viu os skinheads ali concentrados e decidiu avançar para a porta da sede. Não se deixaria intimidar. “Os gajos metem-se logo à minha volta, já nos conhecíamos e um quis tirar-me um pin, uma estrela vermelha, e dei-lhe uma chapada na mão”, recorda o hoje funcionário do Partido Comunista Português (PCP). Foi a resistência suficiente, continua, para Américo pegar na barra de ferro de 70 centímetros, envolta em fita de papel, que levava consigo e lhe desferir um golpe na cabeça.
Casanova recuou um pouco atordoado e, a uns metros de distância, já em relativa segurança, escolheu o desafio: “Venham para o beco um a um”. Não foram, afastaram-se para o outro lado da rua ao verem que o número de militantes do PSR aumentava, dissuadindo-os. Mas o jovem redskin sabia que não se ficariam por ali. E por isso abdicou do concerto para ajudar na segurança, vigiando-os à distância.
No outro lado da rua, o sangue de Fontinha não parava de lhe fervilhar nas veias. Continuava sem saber onde andava a namorada. Vanda Gonçalves estava a ensaiar com os Peste & Sida, substituindo por uns tempos João Pedro Almendra, e por isso até a sua banda desconhecia o seu paradeiro. Atrasou-se tanto que o concerto dessa noite dos Dogue Dócil, o de abertura, acabou por não acontecer por falta de vocalista. Depois dessa noite, fontes do PSR disseram à imprensa que a banda não foi autorizada a tocar e que a sua atuação tinha sido cancelada três dias antes por ligações aos skinheads, mas não foi o caso.
Ao chegar à sede do PSR, Vanda limitou-se a acenar um adeus a Fontinha enquanto se dirigia para a porta. O ex-fuzileiro não o tolerou, foi no seu encalço, apanhou-a e, sem a deixar proferir uma palavra, disparou-lhe dois estalos. Primeiro com a palma da mão, depois com as costas. Ela caiu no chão, bateu com as costas na calçada e começou a sangrar do nariz. A força foi tanta que Fontinha partiu um dedo, uma antiga fratura que não resistiu ao impacto e voltou a abrir. Toda a gente viu, ninguém interveio.
Discutiram, ela meteu-se num táxi com um amigo, mas Fontinha não a deixou ir embora sem si, enfiando-se também no carro. Seguiram os três para o Hospital de São José, onde os dois namorados encontrarão Falcão horas depois. Américo e Melchior apanharam outro táxi e seguiram-nos, regressando passada meia hora para se juntarem aos restantes skinheads. Entretanto, os que ficaram perto da sede subiram a Rua da Palma para beberem umas cervejas. Por lá ficariam até à carga que deu início ao ataque daquela noite.
José Carvalho jazia no chão sem reação quando as botas Doc Martens dos skinheads batiam a galope na calçada da Rua da Palma. Os cabeças rapadas olhavam para trás sem desacelerar o passo, não viam ninguém, quem os perseguia ficou para trás. Não podiam parar, ainda estavam demasiado próximos de onde tudo acontecera. Olhavam em êxtase uns para os outros, confirmavam entre si se ninguém ficara para trás. O esforço da subida da Rua de São Lázaro obrigou-os a parar por breves momentos numa esquina. Respiraram fundo.
Recuperados em poucos segundos, voltaram a dar corda às botas até chegarem ao Campo dos Mártires da Pátria, no topo da Rua de São Lázaro. Com a respiração novamente pesada, foi necessário um novo esforço para recuperar o fôlego e, tal era a excitação, que os pulmões exigiram um cigarro. Sentaram-se numa escadaria de pedra e os fósforos passaram de mão em mão.
Cigarro puxava conversa, conversa puxava cigarro, e a adrenalina levou-os a recordar o que se tinha passado, a vangloriar-se das suas façanhas no embate com os seus adversários ideológicos: comunistas mal vestidos, sem banho tomado e que fumavam erva, toda a degenerescência da sociedade representada naquele grupo de pessoas. Os valores que os militantes de esquerda apregoavam não podiam estar mais distantes dos deste grupo de oito jovens que diziam defender a pátria e combater as drogas, que viam no nacional-socialismo um modelo para a sociedade.
Enquanto fumavam e falavam, mantinham-se vigilantes, não fossem os seus perseguidores aparecer vindos sabe-se lá de onde. Suspeitavam que estariam à procura deles, pelo menos era a sua grande suspeita, era o racional. E se os apanhassem? Quem sabe o que lhes poderia acontecer? Um dos skinheads queixava-se de ter o braço dorido, consequência de uma pancada ali dada, mas fez-se de forte, desvalorizou.
As loas de coragem, de dominância de grupo, podiam não ser suficientes se houvesse um próximo choque, daí que o melhor fosse saírem da zona o mais depressa possível. Assim, quatro dos skinheads decidiram abandonar de táxi em direção a Almada, uma viagem que custava à época mil escudos (hoje equivalente a 13 euros, com a inflação). Argumentaram que um deles ia no dia seguinte para a tropa, outro tinha um exame escolar logo de manhãzinha e um terceiro, o mais novo, com 15 anos, tinha de chegar cedo a casa. Um quarto elemento não deu justificação, apenas queria ir embora, já passava da uma da manhã.
Como o táxi só dava para quatro passageiros, os restantes ficaram em Lisboa, esperaram até ser hora de apanhar o primeiro cacilheiro no Cais do Sodré. Era só mais uma noite. Desceram a Calçada do Lavra, cruzaram a Avenida da Liberdade e subiram até ao Bairro Alto. Beberam mais umas cervejas, conversaram, trocaram impressões sobre o desfecho daquela noite. Para eles, a ameaça de serem encontrados tinha praticamente deixado de existir. Sê-lo-iam horas depois. Os oito.
A poucos quilómetros dali, na sede do PSR, a consternação e o pânico dominavam. José Carvalho partira há minutos para o Hospital de São José, a pouco mais de dez minutos a pé, e os militantes do partido de esquerda revolucionária desdobravam-se em contactos: houve um ataque, o Zé foi esfaqueado. A notícia da Agência Lusa a dar conta do homicídio foi disparada para as redações às três horas e três minutos dessa madrugada.
Quando a ambulância chegou ao Hospital de São José, os enfermeiros retiraram o homem de 37 anos que não reagia. Transportaram-no para uma sala das Urgências e cinco minutos depois um médico declarou o óbito. José Falcão foi o primeiro a saber da notícia. Consternado e em choque, dirigiu-se para a porta das Urgências para falar com os membros do partido que iam aparecendo. Depois de lhes dar a notícia viu ao longe um dos skinheads dessa noite, gritando-lhe: “Então tu não querias provocar desordem e foste para ali com matracas e facas?”. Com um braço ao peito, por causa de um dedo partido, Fontinha limitou-se a dizer que não foi o responsável.
Horas antes, nada dava a entender que o resultado daquele confronto pudesse ser uma vítima mortal e dois feridos. Os dois mundos já haviam chocado várias vezes, mas nunca com aquele desfecho. Chegou a haver esfaqueamentos, cabeças rachadas, carros apedrejados, ameaças… mas nunca uma morte. E, na maior parte das vezes, os skinheads seguiam impunes. Não seria o caso daquela noite.
Já se sabia da morte de José Carvalho e a consternação, a estupefação e o pânico dominavam na sede do partido de esquerda. Mas não era possível ficar-se parado. A emoção tinha de ser relegada para uma pequena gaveta interior, pelo menos por algumas horas. Ainda não era o momento de digerir os acontecimentos, de se começar a fazer o luto pelo camarada caído. A prioridade era apanhar e identificar os skinheads.
Uns quantos militantes e simpatizantes do PSR espalharam-se pelo centro de Lisboa divididos em grupos: uns foram até ao Martim Moniz e Rossio, outros até ao Cais do Sodré, à discoteca Tokyo, à procura dos responsáveis pela facada. Não os encontraram. Outros, entre os quais Jaime Pinho, de Setúbal e militante do PSR, permaneceu na sede, encontrando outra forma de contribuir. Como se fosse um pequeno detetive, conta, dedicou-se a recolher testemunhos, nomes, moradas e números de telefone de quem ainda estava presente, avisando que não se fossem embora antes de ele os poder registar na sua folha de papel.
“Montámos ali um grupo baseado nos gajos que estavam cá fora e beneficiámos dos testemunhos de pessoal que estava lá dentro. E alguns deles conheciam os gajos, iam dizendo nomes e onde é que eles moravam e paravam, em que cafés, em que bares”, recorda Pinho.
Sabendo que os skinheads podiam escapar naquela noite, a prioridade passou a ser outra: identificar os agressores, recolher qualquer pista que pudesse ajudar as autoridades a encontrá-los o mais depressa possível. Fontinha era uma ligação óbvia, facilmente identificado por Falcão, mas era preciso ir mais além. Não se podia contar com a colaboração de um dos skinheads, e o grupo era grande. Recolhida a informação, faltava saber a quem de confiança poderiam entregar os dados.
Às 4h15, a PSP informaria o piquete dessa noite da Polícia Judiciária de que houvera um homicídio e, 15 minutos depois, inspetores chegaram ao local e receberam uma lista com os dados pessoais de várias testemunhas. “Transmitimos os dados à inspetora da PJ, foi um momento de lucidez”, relembra Pinho. Foi uma lista essencial para os inspetores saberem que testemunhas interrogar nos dias seguintes e fazerem uma radiografia o mais detalhada possível da noite do homicídio.
Entretanto, João Correia, amigo de infância de José Carvalho e presença assídua nos concertos antimilitaristas, circulava pelo centro de Lisboa à procura dos skinheads. Não os conseguiu encontrar e, frustrado, entrou na esquadra da PSP do Martim Moniz, a 350 metros da sede do PSR, para apresentar queixa. Disse a um dos agentes: “eu chibo-me todo, foderam o Zé, mas têm de me safar o coiro”. A informação de serviço do piquete da PJ refere precisamente a disponibilidade de Correia e de como podia ser contactado pelos inspetores.
A sua preocupação não eram eventuais retaliações de extrema-direita. Estava a cumprir o serviço militar obrigatório e tinha saído da sua base em Coimbra, onde era especialista em comunicações, para assistir ao concerto antimilitarista. Fê-lo sem autorização e, ao dar a cara, ver-se-ia obrigado a explicar a sua ausência, arriscando-se a uma reprimenda dos seus superiores, talvez até a um castigo mais severo.
“Quando lá fui, já lá estava a tal faca com sangue”, recorda Correia, que na altura tinha 21 anos. A faca manchada de sangue estava dentro de um saco de plástico e pousada em cima da mesa do polícia. Foi a que José Painho e Tiago Sousa usaram para cortar a camisola de José Carvalho. Pouco passava da uma hora quando um porteiro que trabalhava e vivia numa garagem com entrada para o beco encontrou a faca ao regressar do trabalho e de imediato a deu a um dos agentes da PSP no local.
A faca com sangue foi, por uma semana, apresentada como arma do crime pela comunicação social. A PJ submeteu-a a perícias forenses e a conclusão foi que tinha servido para cortar a camisola, uma vez que havia fibras de algodão. No final de contas, a faca pertencia a Tiago Sousa e tinha sido usada por José Painho, contaram mais tarde os dois aos inspetores da Rua Gomes Freire. Tinham-se esquecido dela, pensando que estava com o outro. O dono comprovou a pertença com um pormenor importante: na semana anterior ao homicídio tinha-a levado para a praia e quando se mexia na faca era possível ver-se pequenos grãos de areia saírem do cabo. Voltava a não haver arma do crime.
As horas foram passando e havia ainda algo por fazer: a notícia da morte de José Carvalho tinha de ser comunicada aos seus pais, Custódio Carvalho e Isabel da Conceição, ambos vendedores de fruta e legumes num mercado na Avenida das Forças Armadas. Era filho único e o centro da vida deles. “Volto para a Venda Nova [onde vivia, no mesmo bairro que Zé Carvalho] e começamos a decidir quem ia contar aos pais do Zé. Foi lá o pai de um amigo nosso ao mercado, deviam ser 7 horas da manhã”, diz-nos Correia. “Assim que viram o senhor Francisco, disseram logo ‘o que é que aconteceu?’. Não era hábito as pessoas irem lá ao mercado, aparece uma e vai direita a eles, perceberam logo.” Ficaram em choque.
Não havia muito mais que o jovem soldado pudesse fazer, apenas lhe restava ir para casa, mas antes parou num café no bairro. “A minha mãe apareceu logo a dizer que estava lá a PJ para me ir buscar.” Acompanhou os inspetores até à Rua Gomes Freire e lá contou-lhes tudo o que tinha visto e sabia, de se ter ausentado da tropa sem autorização. “Disse a um dos inspetores que deviam ter mais atenção a este grupo [o movimento skinhead] que está a começar a aparecer e a ter cenas violentas. O gajo disse que estavam em cima daquilo e que não se passava nada”, relembra. “Os gajos lá me safaram da ausência da tropa, porque quando cheguei à tropa na segunda-feira já tinha uma dispensa. A PJ Militar tratou de tudo.”
Correia saiu da sede da Polícia Judiciária, próxima da Praça do Saldanha, apanhou o metro em Picoas e saiu na estação do Colégio Militar, sempre a ser seguido por alguém que nunca antes tinha visto. Ignorou-o e fechou-se em casa, saindo apenas para ir ao funeral, no domingo. Quando ia à janela fumar, via ao fundo da rua, apoiado numa esquina, a pessoa que o tinha seguido. No dia do enterro, voltou a ver a mesma pessoa. A partir daí, nunca mais pôs a vista no suposto inspetor da PJ. Ainda hoje acredita que estava a ser protegido por ter avançado com nomes. “A polícia disse-me para esquecer o Bairro Alto durante uns tempos, porque não conseguiam garantir a segurança de ninguém.”
Foi precisamente no Bairro Alto que os quatro skinheads ficaram naquela noite em Lisboa a beber cervejas, numas roulottes próximas da discoteca Frágil, na Rua da Atalaia. Continuaram a deambular pela capital e acabaram as últimas bebidas noutras roulottes, desta vez numa rua que dava acesso à discoteca Plateau, em Santos. Depois embarcaram no cacilheiro das 5h30, ainda de noite, em direção a Cacilhas.
Pisado o solo da outra margem do rio Tejo, os skinheads Miguel Temporão e Gabriel Pereira seguiram para casa de autocarro. Deixaram para trás Francisco Santos e Pedro Grilo, que ficaram à conversa enquanto o sol nascia. As palavras alegadamente trocadas mudaram a vida de Pedro Grilo, que chegou a casa sem saber o que tinha acontecido naquela noite e o que viria a seguir: que uma pessoa tinha sido assassinada e que em pouco mais de 24 horas seria apresentado ao país como homicida confesso.
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