polish prayers

Hanka Nobis: cinco anos a filmar a desradicalização de um jovem polaco de extrema-direita

No primeiro filme da documentarista polaca, somos levados numa jornada de crescimento e desradicalização que nos abre uma janela para o que se passa no seio da juventude polaca, marcada pela polarização política. Polish Prayers estreia em Portugal no dia 25, no Queer Lisboa.

Entrevista
21 Setembro 2023

Antek tem 22 anos e lidera a oração de um rosário, no meio da floresta, junto com uma dúzia de companheiros. O próprio talhou uma cruz no tronco de um pinheiro, com uma machada, para sacralizar o momento. Os seus olhos brilham, pingas de suor caem-lhe das sobrancelhas para as bochechas rosadas do esforço. É a primeira cena de Polish Prayers, documentário cujo título original em polaco parece ser uma expressão idiomática semelhante a “bom rapaz”.

Foi nesse momento que Hanka Nobis, encenadora e documentarista polaca, encontrou o protagonista do seu primeiro filme. Há um ano que filmava esta Irmandade, um grupo de menos de 20 jovens polacos, todos homens, unidos no patriotismo, no catolicismo e na homofobia. Encontrou-os online, quando procurava grupos de extrema-direita para documentar.
 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
 

Ao contrário da maioria dos movimentos que descobria, este não era violento. Focava-se em combater uma suposta “crise de masculinidade” e em preservar os papéis de género enraizados na ideia da “família tradicional”, ameaçada pela homossexualidade. Os seus membros também se propunham a descobrir como falar com mulheres. No primeiro contacto com um deles, num café, Hanka recebeu uma rosa. “Foi aí que pensei: ‘merda, isto dá um filme’.”

Antek era um recruta prestável e dedicado. Usava a bandeira da União Europeia como tapete e o cabelo cortado rente. Vestia camisas engomadas pela mãe e um chapéu borsalino que lhe dava um ar de gangster missionário. Inventava cânticos para as contra-manifestações à margem da marcha do orgulho LGBTQ+, onde carregava tarjas que alegavam que “80% dos pedófilos são homossexuais” — uma clara mentira. E, no final, rezava por eles.

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hanka nobis
Hanka Nobis nasceu em Bialystok, Polónia, em 1990. Atriz e encenadora, estreou-se na realização de longas-metragens com Polish Prayers, que começou a filmar em 2017.

Testes de sobrevivência no mato, discussões com a mãe, serões com o pai e o seu amigo conspiracionista que acredita que os homens contemporâneos foram castrados pelo feminismo, bailes formais onde Antek tentava flertar com raparigas de “beleza pré-revolucionária”. Hanka Nobis filmou tudo: acompanhou a jornada do jovem radicalizado durante cinco anos. “E fi-lo com boas intenções, não estava a tentar lixar ninguém”, afirma a realizadora.

A meio, algo muda: Antek apaixona-se. A sua crise de identidade torna-se uma crise de fé. Começa por questionar a imoralidade do sexo fora do matrimónio e acaba por questionar a própria existência do seu Deus. Inicia-se um processo de desradicalização.

Para Hanka, o seu filme retrata através de Antek um fenómeno maior: a radicalização generalizada da juventude masculina polaca, em reação a um vazio social e espiritual, e à ameaça do progresso na igualdade de género e na tolerância pelas diversas identidades de género e orientações sexuais.

A viragem para o ultraconservadorismo, católico e de extrema-direita, é, para a documentarista polaca, uma forma de “escapar para uma realidade alternativa qualquer” ou para “um espaço que lhes permita crescer mais lentamente, em negação”.

Mas a realidade alternativa pode não estar assim tão longe de se materializar. A Polónia vai a eleições legislativas a 15 de outubro e as sondagens dão uma maioria parlamentar à extrema-direita, que já se mostrou disponível para uma coligação pós-eleitoral. Entre os homens dos 18 aos 30 anos, o favorito é o partido Konfederacja, que quer banir os impostos sobre o rendimentos e tornar opcionais as contribuições para a Segurança Social, reintroduzir a pena de morte e banir a interrupção voluntária da gravidez. Um dos seus dirigentes prometeu criar um registo nacional de pessoas LGBTQ+.

Polish Prayers integra a competição de documentários do Queer Lisboa e tem a sua estreia em Portugal no dia 25 de setembro, às 21h30, no Cinema São Jorge. 

Este filme começa com Antek, o protagonista, a entalhar uma cruz num pinheiro, no meio do mato, para que ele e os seus companheiros possam rezar um rosário. Passou quase sete anos a filmar estes jovens, um grupo de ultra-católicos de extrema-direita, que entretanto se tornaram homens. Como chegou até eles?

Queria fazer um filme dentro de um ambiente de extrema-direita e andava focada em observar grupos mais extremistas e violentos. Estava a ter problemas em encontrar o protagonista que procurava. Um dia, encontrei o blogue da Irmandade. Escreviam sobre estarmos no meio de uma crise de masculinidade e propunham-se a ensinar uns aos outros como falar e agir com mulheres, e a prepararem-se espiritual, intelectual e militarmente para o futuro.

Ao o ler, percebi que este era o grupo onde me queria meter. Acredito naquilo que eles escreveram. Há algo que está a mudar no que diz respeito às fórmulas que ditam o que é a masculinidade ou a feminilidade — e eles estavam a reagir a isso. Queria perceber como. Marquei uma reunião com um deles e ele chegou com uma rosa para me oferecer. Foi aí que pensei: "merda, isto dá um filme". Senti que tinha mesmo de estar com eles e com uma câmara na mão. Têm uma linguagem diferente, pensam o mundo de forma diferente. Estão presos ao passado. Carregam um sentido de dever que não tem que ver apenas com o seu fervor católico.

Então, propus-me a filmá-los. No início não se importaram muito. Quando comecei a querer fazer perguntas, a escolher um protagonista, começou a haver alguma desconfiança. Discutiram entre eles, pesquisaram o meu nome no Google, houve alguns dias de silêncio. Viram que trabalhava com um teatro que encenou uma peça sobre o aborto e recebi algumas mensagem que diziam que estavam a rezar por mim.

Decidi ser honesta. Disse-lhes que ninguém do meu campo tinha interesse em conhecê-los. Há uma posição generalizada de não dar plataforma a grupos assim, com a qual não concordo. Estes homens merecem ser observados enquanto seres humanos. Há quem faça filmes sobre condenados à morte que mataram os filhos à facada. Eu posso fazer um filme sobre homens da minha idade, do meu país, que têm uma ideia diferente do mundo. Normalmente eram homens de esquerda a dizer-me que não lhes deveria dar uma plataforma. Que tipo de plataforma? É um filme.

E fi-lo com boas intenções, não estava a tentar lixar ninguém. E eles, não sei bem como, acabaram por confiar em mim, aos poucos. Debatíamos muito. Perguntavam: "e se o resultado nos ofender?". Levava essas preocupações a sério, ainda que os relembrasse que, além da existência de Deus, eles também não conseguiam concordar unanimemente em quase nada. Sempre os respeitei, nunca tentei ser mais esperta que eles. Diziam-me que não podia filmar isto ou aquilo, e levava isso a sério. Depois foi uma questão de tempo. Houve dias de filmagem com o Antek em que não tive qualquer influência no que se passava.

"Achava os membros da Irmandade uns sonhadores. E, de repente, vivo no país onde esse sonho pode ser realidade e já não há como lutar contra o governo de extrema-direita."

A câmara, em grande parte do filme, está desconfortavelmente perto das pessoas ou voyeuristicamente presente em momentos íntimos. Como conseguiu isso?

Depende. Na cena em que o Antek fuma o seu primeiro charro, com a namorada, recorremos a zooms. Estávamos na mesma sala, um pouco afastados. E eles estavam pedrados, então não houve resistência às câmaras. Era importante estar tão perto. Esticar o limite da paciência. Registar a expressão dele quando dizia coisas que eu não podia aceitar, não podendo dizer uma palavra. Sentia que ele estava a mudar, lentamente, então tinha de me distanciar. Mas a câmara pode ser mais sorrateira, ultrapassar uma linha que a nós não é permitido.

É provável que tenha sido desconfortável e constrangedor para eles em muitos momentos. Por vezes, o Antek fechava a porta e não nos deixava filmar. Ficávamos sentados à espera três, quatro horas. Respeitávamos esses limites. Depois acabámos por ser mais do que pessoas a fazer um filme, apesar das câmaras. Fazíamos tudo com eles, com cuidado para não sermos o centro das atenções e sabermos ficar em silêncio. E passámos muitas horas com eles ao longo de vários anos. Este tipo de cinema só se consegue fazer com uma quantidade gigante de horas de filmagem.

Alguma vez duvidou do seu papel como observadora? 

Todos os dias. E nem conseguia escapar a isso, porque ora era julgada pelo pai do Antek ou pelos membros da Irmandade, ou era confrontada pela sua mãe, sobre isto e aquilo. Quanto mais acontecia, mais cuidado tinha em tentar não influenciar o que se passava. Mas é treta, há sempre uma influência. Há um processo mútuo, que tem de ser consensual. A vida é mais importante que um filme. Além disso, há que escolher de entre esse material algo que dê para fazer um filme.

No final de um dos dias de filmagens, depois de quase um ano com o Antek, ele disse-me: "estou curioso sobre o resultado final das tuas filmagens, vai ser como uma crónica da nossa jornada". Estávamos numa festa, em casa dele, e não estávamos a discutir o filme. Deixou-se ser vulnerável e mostrou que estava interessado em nós como pessoas, não como cineastas. Ele ligou-me este fim-de-semana para me contar que teve de adiar o seu casamento por causa de dinheiro. Estava um bocadinho bêbado. No dia anterior, o filme tinha estreado na HBO Max da Polónia e nem falámos disso. Acho que se esqueceu.

Passou cinco anos a filmar Antek e, antes disso, um ano a filmar a Irmandade. Este filme é um estudo de caso sobre o fenómeno da radicalização política dos jovens polacos?

Sim, com certeza. Quando comecei a filmar, a extrema-direita conseguia o apoio de menos de 10% do eleitorado. Hoje chega aos 14%. Quase todos os membros da Irmandade votam no Konfederacja, de extrema-direita e cujo apoio continua a crescer. São ultra-católicos, são contra o aborto e o casamento entre pessoas homossexuais, mas também têm um plano económico liberal bastante apelativo para os jovens.

Aqueles que se preocupam com a democracia já conseguem ver que nos estamos a aproximar da Hungria. O partido no poder, o Lei e Justiça, vê o Konfederacja como possível aliado na sua próxima "regência", enquanto representante da juventude católica de direita. Respeitam-nos, até porque têm medo deles e da sua influência.

No filme, Antek confessa que se sente fraco e impreparado para os desafios da vida adulta. Há pouco falou-se sobre uma suposta crise de masculinidade a que estes jovens estão a reagir. Há um vazio social ou espiritual a levá-los à radicalização?

Sim, até eu me debato com os mesmos problemas, ainda que de um ângulo diferente. É difícil hoje em dia criar uma relação — de união e cooperação — com um homem. Vejo isso não só nos homens que retratei no filme, como nas minhas próprias relações passadas: é-lhes difícil sentirem-se naturalmente bons, ou suficientes. Ou então estão a tentar escapar para uma realidade alternativa qualquer ou à procura de um espaço que lhes permita crescer mais lentamente, em negação.

Por outro lado, temos jovens mulheres a crescer mais rápido, a garantirem a sua independência. As mulheres mais jovens estão a conseguir ocupar mais lugares. Vejo isso quando vou a festivais e há os convívios ou jantares com realizadores e realizadoras. Talvez seja uma simplificação, mas esse vazio, essa descompensação que eles sentem, existe. E acaba por ser benéfico para mim, por exemplo.

"Pode parecer estranho querer chegar a um compromisso quando os meus protagonistas não estão interessados nisso. Só quando consegui deixar de querer discutir política se tornou mais confortável fazer o meu trabalho: contar uma história sobre seres humanos."

Há seis anos, grupos como a Irmandade ainda eram uma novidade?

O Lei e Justiça já estava no poder há uns três anos quando comecei a filmar. Não era uma novidade, mas escolhi a Irmandade pela particularidade de ser um grupo pequeno. Não tinha regras nem hierarquias bem definidas, como outros grupos do género que têm 200, 300 membros. Nem chegava a ter 20. Achava-os uns sonhadores. E, de repente, vivo no país onde esse sonho pode ser realidade e já não há como lutar contra o governo de extrema-direita.

Contaram-me algo curioso: sentem algumas saudades dos anos em que o governo era de centro-esquerda. Segundo eles, nessa altura os movimentos de direita eram mais fortes, mesmo que fossem mais secretos, e sentiam mais motivação para participar e recrutar novos membros. Portanto, talvez haja alguma esperança para a esquerda e para a construção de movimentos fortes de oposição.

Antek, no início do filme, é radicalmente contra o aborto. Um companheiro seu elogia numa festa a beleza "pré-revolucionária" das mulheres presentes e, depois, vemos uma celebração em que há quatro mulheres, parceiras de membros da Irmandade, grávidas. Como mulher, como foi estar tanto tempo inserida neste ambiente?

Sendo que o esperado daquelas mulheres é engravidar, fazer bolos, cozinhar e limpar tudo no final, eu era como um alien para eles. Até estava numa posição confortável. Podia ir e vir, ficar a observá-los, a filmá-los. Era quase como fazer turismo num país exótico. Tudo era novo e interessante.

Lembro-me de me sentar a falar com algumas delas. Disseram-me que liam Jane Austen. Perguntei-lhes porquê. E elas não entendiam porque é que eu não entendia. Foi muito difícil para mim — e isto foi o que me deixou mais desconfortável —, encontrar uma só rapariga que não parecesse feliz ali. Estavam felizes, era aquilo que queriam, era a sua escolha.

Obviamente, nessa altura ainda não tinham filhos, não tinham obrigações, não estavam completamente dependentes dos seus maridos, então foi-me difícil aceitar essa felicidade. Naquele momento não eram vítimas. Aprendiam umas com as outras como lidar com os homens e, de alguma forma, conseguir o que queriam.

Pode parecer estranho eu querer chegar a um compromisso quando os meus protagonistas não estão interessados nisso, mas só quando consegui deixar de querer discutir política e as nossas diferentes visões do mundo, quando consegui aceitar aquelas realidades, se tornou mais confortável fazer o meu trabalho: contar uma história sobre seres humanos.

É aparente, ao longo do filme, uma profunda clivagem entre uma parte secular e progressista da sociedade polaca e a parte mais conservadora, profundamente católica. Sente-se esse choque?

Não sou porta-voz da sociedade polaca, mesmo que quisesse. Mas posso falar por mim: é contraproducente. Sistemicamente não é bom para ninguém. Temos de escolher politicamente entre posições extremas. Mesmo se a esquerda ganhasse as próximas eleições, não deixaríamos de ter problemas com a polarização da nossa sociedade.

Algo curioso aconteceu no último ano e meio, por causa da invasão da Ucrânia. Agora toda a gente tem uma bandeira ucraniana na janela ou na varanda. Mas antes ou se via um crucifixo ou um arco-íris. A bandeira arco-íris tornou-se um símbolo de solidariedade contra as várias opressões nas grandes cidades, pela repressão particular das pessoas LGBT na Polónia. Então já se sabia que lado é que essa pessoa tinha escolhido.

O nosso governo tem uma relação estreita com a Igreja Católica. A repressão ao direito ao aborto está muito ligada a isso. É difícil acreditar que alguém de esquerda queira ouvir um crente. Já não é possível pensar que alguém professa a religião católica somente por vontade espiritual, porque se tornou algo necessariamente político. Não é saudável.

Uma sondagem recente afirma que a maioria dos homens entre os 18 e os 30 anos votará num partido de extrema-direita nas próximas eleições legislativas polacas, em outubro. Uma tendência que contrasta com uma grande percentagem de jovens mulheres, segundo a mesma sondagem, que afirmam ir votar em partidos de esquerda.

"Não quero seguir as palavras de um homem conservador de 70 anos que tem o mesmo discurso e os maneirismos dos tios que odeio."

Isso seria óptimo, mas as sondagens também dizem que a maior parte das mulheres não vai sequer votar. Estão cansadas, perderam o interesse na discussão política. Cresceram num país com acesso livre à Internet, passaportes europeus e possibilidades de futuro. Nas últimas décadas desenvolveram-se muitas coisas: universidades, hospitais. Houve avanços tremendos na ginecologia, por exemplo.

De repente, o aspeto religioso tornou-se central para quem está no poder. O acesso ao aborto está praticamente bloqueado. Os profissionais de Saúde são vigiados, têm que registar todas as gravidezes. Mesmo que a gravidez seja fruto de uma violação, a mulher não pode escolher abortar. Tudo isto está longe da sociedade em que crescemos. As mulheres de 30 anos lembram-se de quando se sentiam seguras.

E não há qualquer representação feminina na política. Os assuntos das mulheres não são uma preocupação política, nem há quaisquer figuras políticas femininas a falar para as mulheres. Eu não quero seguir as palavras de um homem conservador de 70 anos que tem o mesmo discurso e os maneirismos dos tios que odeio.