Espaços digitais como o Telegram são hoje a principal forma da extrema-direita violenta se organizar para desencadear ações e ganhar novos adeptos, inclusive crianças e jovens. Há portugueses envolvidos em pelo menos duas redes internacionais neonazis inorgânicas.
Era mais um sábado como outro qualquer. Celebrava-se o Shabbat numa sinagoga em Pittsburgh, nos Estados Unidos, quando um homem entrou e começou a disparar indiscriminadamente com uma espingarda semiautomática. Fê-lo enquanto proferia insultos antissemitas. Onze pessoas morreram e outras seis ficaram feridas a 27 de outubro de 2018.
O ataque terrorista de extrema-direita abalou a comunidade local, considerada até então segura e pacífica, e os vizinhos do terrorista descreveram-no como homem solitário e tranquilo, não reconhecendo qualquer sinal de alerta. O atirador foi baleado várias vezes pela polícia até ser detido, sendo depois acusado de várias dezenas de crimes, entre os quais homicídio e tentativa de homicídio.
Se o dia-a-dia do terrorista parecia ser o de uma pessoa não radicalizada e sem propensão para a violência, nas redes sociais não era bem assim. Em janeiro daquele ano, o homem de 46 anos criou um perfil na rede social Gab, onde se viu um rasto digital da evolução da sua radicalização em poucos meses – passou do conservadorismo para defensor do supremacismo branco. Partilhou insultos racistas, teorias da conspiração antissemitas e ameaças de violência. Foi nesta rede social que o terrorista encontrou uma comunidade com um pensamento semelhante ao seu.
O Gab foi criado em 2017 por Andrew Torba, conservador cristão e apoiante de Donald Trump, como resposta a uma alegada influência crescente da esquerda nas principais redes sociais. Torba apresentou a nova rede social como espaço tendencialmente livre de moderação e acolheu de braços abertos indivíduos ligados ao supremacismo branco banidos das outras plataformas.
No Gab proliferam livremente mensagens de ódio, fake news e teorias da conspiração, espelhadas em páginas e conteúdos que o algoritmo sugere aos utilizadores ad infinitum.
E não foi por acaso que a rede social atraiu e se transformou num espaço seguro para a extrema-direita. O seu logótipo é um sapo, clara referência ao meme Pepe, o sapo, cartoon popular em subculturas online que nos últimos anos foi apropriado pela extrema-direita. O meme permite dissimular mensagens de ódio sob a fachada de um pretenso humor sarcástico e é reconhecido pela ONG norte-americana Anti-Defamation League como símbolo de ódio.
Mas o GAB não é caso único, faz antes parte de um meio que inclui redes sociais abertas e encriptadas que, ao abrigo de uma falsa narrativa da liberdade de expressão, promove o discurso de ódio, além de permitir aos seus utilizadores organizarem-se para agirem no mundo real. É um ecossistema que tem alimentado e dado novas ferramentas à extrema-direita internacional, e às suas tendências mais violentas.
A extrema-direita sempre foi internacional, apesar do seu nacionalismo, e as redes sociais eram as ferramentas que faltavam para poder aprofundar, ainda mais livremente, os seus contactos, trocar aprendizagens e conteúdos e criar uma nova tipologia de organizações internacionais: as inorgânicas.
Ao mesmo tempo, este campo político passou, nas últimas décadas, por um processo de transformação discursiva, de estética e de modus operandi, conjugando o espaço digital com o físico num novo patamar. Ainda que recicladas, as suas ideias racistas, LGBT fóbicas, misóginas e anti-esquerda mantêm-se as mesmas, houve apenas uma evolução qualitativa.
Nos Estados Unidos, este processo culminou na já conhecida e muitas vezes referida alt-right (direita alternativa), um ecossistema composto por uma série de indivíduos, grupos, fações, tendências e personalidades mediáticas que cooperam (e divergem) entre si online e offline. E este processo não deixou de contaminar o resto do mundo, principalmente a Europa, onde circula a propaganda digital da alt-right – os memes do Pepe, o sapo são o exemplo mais claro deste contágio.
“Enquanto as maiores redes sociais permitem que comunidades de ódio mais amplas cresçam, as plataformas marginais são agora onde assistimos à maior parte das conversas particularmente flagrantes e perigosas”, disse Jacob Davey
Há anos que Facebook, YouTube e Twitter são acusados de os seus algoritmos e regras de comunidade promoverem a propagação de discursos de ódio nas suas plataformas. Têm-se esquivado como podem a endurecer as suas políticas contra o discurso de ódio, argumentando com a defesa da liberdade de expressão e aludindo ao seu estatuto de empresas privadas. Porém, são obrigadas a fazê-lo quando há um evento de grande impacto na sociedade, normalmente um atentado terrorista.
“O padrão que vimos nos últimos anos é que as pessoas precisam de morrer antes que essas plataformas entrem em ação. Falamos muito sobre essa atividade extremista e só depois de Charlottesville [2017], de Christchurch [2019] ou do ataque ao Capitólio [2021] é que esses indivíduos são finalmente tirados das plataformas”, disse ao Setenta e Quatro Jacob Davey, diretor de Investigação e Política de Movimentos de Ódio e de Extrema-direita do Institute for Strategic Dialogue.
Em consequência, publicações foram apagadas, grupos bloqueados e contas eliminadas e a extrema-direita, principalmente as suas figuras mais mediáticas, sentiu o golpe. Muitos dos seus partidários viram-se então obrigados a migrar para plataformas “mais livres” e menos conhecidas, perdendo audiência.
Mas os utilizadores anónimos mantiveram mesmo assim um pé nas principais plataformas, onde tendem a usar um discurso mais “suave” para evitar bloqueios de contas, focando-se na tese da ameaça para a identidade branca. E, aos poucos, vão migrando para as novas plataformas.
“Quando as redes sociais bloqueiam estas pessoas, o que acontece é que as ideias não morrem e, portanto, estas pessoas vão procurar canais cada vez mais escondidos, tornando mais difícil às forças e serviços de segurança fazerem o seu trabalho”, explicou ao Setenta e Quatro Cátia Moreira de Carvalho, doutoranda e investigadora em fenómenos de radicalização e extremismo da Universidade do Porto.
Opinião partilhada por Davey, ao afirmar que “as novas plataformas são realmente essenciais para a mobilização do extremismo”. “Enquanto as maiores redes sociais permitem que comunidades de ódio mais amplas cresçam, as plataformas marginais são agora onde assistimos à maior parte das conversas particularmente flagrantes e perigosas”, garantiu o investigador.
O Telegram é uma dessas plataformas novas e marginais, apesar de ter 500 milhões de utilizadores por todo o mundo. Em janeiro, a rede social ganhou mais de 25 milhões de usuários em apenas 72 horas, depois de o WhatsApp ter mudado a sua política de privacidade, e por elementos de grupos ligados ao ataque ao Capitólio, como os Proud Boys ou o universo conspirativo QAnon, terem começado a ser banidos das principais plataformas de forma mais veemente – um dos fundadores do Telegram, Pavel Durov, descreveu-o como o “maior êxodo digital da história”.
À primeira vista, o Telegram parece ser idêntico ao WhatsApp, mas um dos elementos que o distingue é a existência de grupos e canais públicos facilmente encontrados por qualquer utilizador e que conseguem acolher um número ilimitado de subscritores.
E a ausência de moderação possibilita a proliferação dos mais diversos canais, de saudosistas do nazismo a negacionistas da pandemia de covid-19. A criação de narrativas conspiratórias, mergulhando indivíduos numa realidade alternativa, isolando-os socialmente, é fundamental para a radicalização no caminho do terrorismo. O Telegram torna-se, assim, o buraco negro do extremismo.
A inexistência de moderação, associada à funcionalidade de reencaminhamento instantâneo de uma mensagem para um máximo de cem utilizadores e à existência de canais sem limite de subscritores, resulta num fluxo de desinformação e de mensagens de ódio tendencialmente impossível de monitorizar. Uma partilha de uma fake news que só poderia chegar a 625 pessoas no WhatsApp, tem então um potencial alcance manifestamente superior no Telegram.
Muitas das vezes, conteúdos que surgem pela primeira vez no Telegram depressa são exportados para outras redes sociais, onde acabam por circular até serem eliminados, o que nem sempre acontece.
O Institute for Strategic Dialogue diz ter encontrado quase mil de extrema-direita violenta apenas no Telegram
E a verdade é que o Telegram não mostra ter sequer o intuito nem os recursos para moderar o conteúdo extremista. Contudo, para todos os efeitos, os canais e grupos públicos serão apenas a ponta do icebergue, pois é impossível descobrir aquilo que permanece oculto nos chats secretos, onde só se entra por convite, o que dificulta a sua monitorização pelas forças e serviços de segurança.
As autoridades deparam-se ainda com outro obstáculo. “É a dificuldade em determinar o que é sério, o que é apenas uma coisa online… O que é apenas conversa, o que é que as pessoas realmente tencionam fazer. É incrivelmente complicado”, explicou ao Setenta e Quatro Patrik Hermansson, investigador da britânica Hope not hate.
Além disso, a aplicação oferece uma funcionalidade de conversação secreta com um temporizador que, quando ativado, apaga permanentemente as mensagens dos dispositivos de ambos os utilizadores. Esta função faz com que seja impossível às forças policiais ou aos próprios colaboradores da empresa acederem a estas conversas, mesmo apreendendo os aparelhos de suspeitos.
“A natureza destas conversas é horrenda, particularmente no Telegram. Há indivíduos a partilhar instruções sobre como imprimir armas em impressoras 3D, sobre como esfaquear alguém, sobre como emboscar uma escolta policial”, disse Davey. “A natureza deste conteúdo é inequívoca – racismo desumanizador, explícito e generalizado, é a regra, não a exceção.”
Nos últimos anos, continuou o investigador, o Institute for Strategic Dialogue já encontrou “quase mil destes espaços apenas no Telegram”, garantindo que “há alguns anos que a lista de canais explicitamente violentos de supremacismo branco tem vindo a crescer”. E estes espaços não se limitam a um espaço nacional, são antes internacionais, onde extremistas de todo o mundo podem estabelecer contacto e aprender uns com os outros.
Daí que seja um passo até a rede social ser usada por organizações de extrema-direita, ou ligadas a planos e a atos de terrorismo. E há precedentes, ainda que no lado oposto: o jihadismo.
Quando o Facebook e o Twitter apertaram o cerco à presença de terroristas do Daesh nas suas redes sociais, os jihadistas encontraram no Telegram um porto seguro para se organizar, difundir propaganda, recrutar e planear atentados.
Um dos fundadores do Telegram, o russo Pavel Durov, recusou-se a bloquear contas do Daesh, mas, na sequência do atentado no Bataclan, em Paris, que matou 130 pessoas em 2015, acabou por recuar e bloqueou 78 contas ligadas à organização terrorista. No entanto, pouco terá sido feito desde aí, e a rede social encriptada continua a ser um paraíso para terroristas.
Os canais de extrema-direita no Telegram têm aumentado desde 2019, seja na sequência de atentados terroristas ou de contextos de tensão social. Por exemplo, na sequência dos protestos antirracistas pela morte do afro-americano George Floyd às mãos de um polícia de Minneapolis, várias fações da extrema-direita, ambicionando uma guerra racial, aumentaram a propaganda e a organização na rede social encriptada.
Uma das tendências da extrema-direita norte-americana que o fez foi o movimento boogaloo, considerados milicianos de terceira geração e conhecidos por usarem camisas havaianas e por serem bastante violentos contra as forças policiais e o Estado federal. Desejam uma guerra civil para criarem uma nova sociedade sob os escombros da antiga, com muitos a adotarem posições etnonacionalistas.
Criaram grupos onde difundiram informações sobre táticas e equipamento militar para combater os manifestantes antirracistas, entre as quais instruções para a construção de armas Do-It-Yourself e estratégias de guerrilha urbana, e elevaram manifestantes, entre os quais um miliciano morto pela polícia, ao nível de mártires.
No meio destas publicações, os subscritores boogaloo eram ainda incentivados a ler ficheiros PDF do Mein Kampf, de Adolf Hitler, do Siege, de James Mason, e do Turner’s Diaries, de William Pierce. Este último livro terá inspirado o maior ataque de sempre da história da extrema-direita norte-americana realizado por um miliciano: o atentado terrorista em Oklahoma, em 1995, que matou 168 pessoas e feriu várias centenas.
Um dos canais do Telegram do movimento boogaloo depressa se tornou um dos maiores faróis digitais de propaganda da direita norte-americana mais extremada. Ultrapassou as fronteiras da alt-right e integrou-se na corrente do aceleracionismo, uma nova variante ideológica da extrema-direita originária entre as fileiras do movimento neonazi norte-americano.
O aceleracionismo funda-se no pressuposto de a degenerescência (racial, cultural, económica, política, social) das sociedades ocidentais ser incorrigível e, como tal, o seu colapso deverá ser apressado pelo semear do caos e da tensão. O colapso das sociedades, acreditam os aceleracionistas, resultará numa guerra racial ou numa catástrofe de tal magnitude que será possível construir uma nova sociedade racialmente pura a partir dos escombros da antiga.
Por exemplo, há aceleracionistas que, ao contrário da maioria da extrema-direita, acreditam nas alterações climáticas e que ainda as defendem, alegando que a eliminação da população não-branca é a solução para se evitar a sobrepopulação e a destruição do planeta. Ou seja, as alterações climáticas podem ser o ponto de partida para a criação de Estados etnonacionalistas.
O aceleracionismo tem vindo a ganhar crescente destaque entre a extrema-direita internacional mais violenta – o Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações alertou, em 2020, para a “entrada” das ideias “aceleracionistas” na extrema-direita portuguesa. O terrorista norueguês Anders Breivik tornou-se o ator solitário aceleracionista mais conhecido e o manifesto que escreveu e partilhou na Internet, horas antes do atentado que matou 77 pessoas e feriu outras 51, transformou-se numa bíblia entre os aceleracionistas.
As autoridades tentaram eliminá-lo dos espaços virtuais, mas não conseguiram. Não tardou até outros terroristas, como o de El Paso, nos Estados Unidos, ou o de Hanau, na Alemanha, replicarem o modus operandi, escrevendo os seus próprios manifestos e divulgando-os momentos antes dos atentados. E cada um destes documentos ajudou a cultivar subculturas online favoráveis à violência, encorajando ataques semelhantes.
As forças e serviços de segurança ocidentais focaram-se na ameaça do terrorismo jihadista. Já o extremismo de direita acabou largamente ignorado.
Um deles foi precisamente o terrorista responsável pelo massacre de Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019, ao elogiar no manifesto que publicou em vários fóruns, como o 4Chan e o 8Chan, outros terroristas de extrema-direita responsáveis por outros massacres. E enquanto o fez tentou justificar o seu ódio racialmente motivado com o colapso ecológico.
Mas este terrorista elevou esta forma de operar a um nível ainda mais preocupante: apelou aos seus seguidores que fizessem memes de guerra, que em horas responderam com centenas de imagens a glorificar a violência, e transmitiu o massacre em livestream, vendo-se a arma, como se fosse um videojogo das sagas Call of Duty ou Battlefield.
A transmissão online não foi, até ao momento, replicada por terroristas de extrema-direita, mas inspirou outros a cometerem atentados semelhantes. Basta olhar para os números: o vídeo foi publicado no Facebook 2,7 milhões de vezes (nas primeiras 24 horas foram 1,5 milhões de publicações), segundo uma pesquisa feita pela rede social.
“Com estas ações performativas online, os perpetradores dirigem-se conscientemente a um público transnacional, formulando os seus posicionamentos ideológicos de uma forma que transcende as fronteiras e as línguas nacionais e que pode ser compreendida por um público de extrema-direita ‘informado’”, escreveu Maik Fielitz, investigador do Instituto para a Democracia e Sociedade Civil, sediado em Jena, na Alemanha, no site Centre for Analysis of the Radical Right.
Não foi a única consequência digital do massacre na Nova Zelândia. Segundo a rede anti-extremismo norte-americana SITE, 80% de uma amostra de 374 canais de extrema-direita no Telegram foram criados nos sete meses que se seguiram. E os utilizadores nestes canais aumentaram de 65 mil para 142 mil.
Desde o 11 de Setembro de 2001 que as forças e serviços de segurança ocidentais apontaram baterias, reformando e reforçando os seus aparelhos securitários, contra a ameaça do terrorismo jihadista. O extremismo de direita acabou largamente ignorado, porém, hoje, é uma das principais preocupações, como os casos da Alemanha e dos Estados Unidos tão bem ilustram.
De acordo com o relatório Global Terrorism Index 2020, do Instituto para a Economia e Paz, o terrorismo de extrema-direita é uma das tendências terroristas mais preocupantes dos últimos anos. Desde 2014 que os atentados terroristas deste campo político aumentaram na ordem dos 250% na América do Norte, Europa Ocidental e Oceânia, com as vítimas mortais a aumentarem 709% no mesmo período. Só em 2019 morreram 89 pessoas às mãos destes terroristas.
O terrorismo de extrema-direita evoluiu nas últimas décadas. Nos anos 1960 e 1970 a violência terrorista era levada a cabo por organizações paramilitares estruturadas e hierárquicas, como foi o caso do Exército Libertação de Portugal e do MDLP no período revolucionário, e na década de 1980 e 1990 foram substituídas por redes internacionais neonazis, como os Combat18, afetos aos Blood & Honour.
Ao mesmo tempo, e do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, a par e passo com pequenos grupos terroristas, o movimento miliciano ganhou consistência e expandiu-se pelo país contra um alegado governo federal cada vez mais totalitário e ameaçador das liberdades dos norte-americanos, principalmente no que ao uso e porte de arma dizia respeito.
Foi então que o militar veterano, em conjunto com outros dois coconspiradores, detonou uma bomba de fertilizantes em Oklahoma. Em consequência, o governo federal cercou os passos ao movimento miliciano, retirando-lhe fôlego.
Além disso, o movimento ficou com a imagem associada a terroristas, perdendo capacidade de atração e recrutamento, até ressurgir com renovada força na sequência da eleição de Barack Obama para a Casa Branca, em 2008, como explica o jornalista David Neiwert no livro Alt-America: The Rise of the Radical Right in the Age of Trump, de 2017.
Os milicianos foram inspirados por uma nova teoria terrorista, a da resistência sem liderança (leaderness resistance, em inglês), que desde a década de 1980 se tornou hegemónica entre os terroristas de extrema-direita, transformou-se quase em senso comum. É a inspiração para pequenas células terroristas, atores solitários (que não o são) e, agora, para as redes inorgânicas neonazis.
Na década de 1980, Louis Beam Jr., antigo membro do Ku Klux Klan e da Nação Ariana, contactou com a célula terrorista The Order, responsável por vários assaltos à mão armada e homicídios até ser travada pelo FBI. O governo federal acusou 14 pessoas por conspiração e 13 acabaram absolvidas – uma delas viu as acusações serem retiradas. Foi um enorme falhanço para as autoridades e abriu a porta a uma nova teoria.
Beam apreendeu os ensinamentos da célula terrorista e, depois, fundou uma revista racista que usou para publicitar a nova estratégia terrorista. Ainda que a estratégia já circulasse na altura entre a extrema-direita norte-americana, o extremista articulou-a num ensaio que se tornou peça fundamental no estudo do terrorismo – os jihadistas também se basearam nela, chamando-lhe leaderness jihad.
A estratégia argumenta que as organizações supremacistas brancas estruturadas hierarquicamente se tornaram demasiado vulneráveis a infiltrações e acusações judiciais pelas autoridades, esmagando qualquer ímpeto de resistência. E, por isso, os extremistas devem levar a cabo ações individuais, ou no máximo com pequenas células, de forma descentralizada e independente uns dos outros.
Mas, para isso, continua Beam, os extremistas devem partilhar um mesmo ecossistema onde possam analisar o contexto político-social, trocar ideias e ensinamentos e afinar a estratégia mais lata a seguir, quais as tipologias de ações que fazem sentido em dado momento e espaço. E isto sem aceitarem ordens uns dos outros, devendo ao invés agir sempre de forma independente – isto é, inspirarem-se mutuamente.
Este ecossistema, argumentou o extremista, seria composto por tantos indivíduos em comunicação entre si que as autoridades deixariam de ter meios suficientes para os monitorizar e investigar a todos. Além disso, esta estratégia foi articulada antes da Internet ser o que hoje é e, portanto, jornais, panfletos e revistas seriam os principais canais de comunicação.
Os anos passaram, surgiram os fóruns na Internet e, no início do século XXI, chegaram as redes sociais. E surgiu um novo fenómeno: os atores solitários, como o norueguês Anders Breivik.
O termo não é totalmente correto para os caraterizar, uma vez que, sim, podem atuar individualmente, mas todos estão de alguma forma integrados neste ecossistema, seja no espaço virtual ou mesmo em contato físico com membros de organizações da extrema-direita mais violenta. Partilham mundividências muito semelhantes, quando não iguais.
Os fóruns e as redes sociais encriptadas vieram permitir um novo fenómeno de terrorismo de extrema-direita: as redes neonazis inorgânicas aceleracionistas. Atomwaffen Division, Feukerkrieg Division, Sonnenkrieg Division, The Base, The British Hand e National Partisan Movement. São algumas das detetadas nos últimos anos, não se descartando a possibilidade de haver outras desconhecidas.
“O crescimento exponencial da Internet, das notícias 24 horas por dia e plataformas de mensagens encriptadas mudaram completamente a forma como a extrema-direita se organiza”, avisa a Hope not hate no relatório State of Hate 2021 – Backlash, Conspiracies & Confrontation. “Acabaram-se as organizações políticas tradicionais, com as suas sedes, cartões de sócio e atividade offline semanal e, em vez disso, temos redes ágeis, de curta duração onde as pessoas vão e vêm, mas que partilham uma perspetiva – odiosa – comum.”
As redes neonazis inorgânicas aceleracionistas são tendencialmente internacionais, os seus membros organizam-se em redes sociais encriptadas, com muitos a nunca terem partilhado o mesmo espaço físico, e podem atuar coordenada ou independente uns dos outros. E recrutam pessoas cada vez mais jovens, até crianças.
A The Base foi uma das primeiras e mais conhecidas redes inorgânicas a surgirem nas redes sociais encriptadas. O seu objetivo é fundar etnoestados brancos através do terrorismo e do colapso violento de governos por todo o globo e, inicialmente, focou-se na difusão de propaganda online e no recrutamento de jovens oriundos de situações socioeconómicas vulneráveis e facilmente manipuláveis.
Em 2019, um adolescente que se associara ao The Base pela Internet tornou-se na pessoa mais jovem de sempre no Reino Unido a ser condenada por planear um atentado terrorista, tendo para tal recebido instruções de outros militantes que nunca conhecera fora do espaço digital.
As redes neonazis inorgânicas aceleracionistas são tendencialmente internacionais, os seus membros organizam-se em redes sociais encriptadas, com muitos a nunca terem partilhado o mesmo espaço físico. Recrutam pessoas cada vez mais jovens, até crianças.
As plataformas encriptadas foram utilizadas para o recrutamento de novos militantes. Este processo levou à organização de campos de treino paramilitar financiados pelo líder, Rinaldo Nazzaro, nos quais foram gravados vídeos de propaganda visíveis nos seus canais digitais, e culminaram no planeamento de uma série de ataques desvendados por um infiltrado, incluindo o assassinato de uma família de antifascistas, como noticiou a BBC.
O FBI acabou por deter vários membros do grupo ao longo do ano passado sob acusações de conspiração para cometer homicídios e participação num gangue.
O líder, o norte-americano Rinaldo Nazzaro, terá trabalhado como especialista em segurança interna e contraterrorismo. Em 2017, obteve a nacionalidade russa e passou a residir em Moscovo, aparentando ser apoiante do presidente russo, Vladimir Putin.
Nazzaro esteve também na lista de convidados para um evento organizado pelo Kremlin e num programa da televisão estatal russa. Recentemente reemergiu numa série de vídeos partilhados no Telegram em que procura revitalizar a organização e reconhece estar disponível para financiar o treino de militantes em solo norte-americano. São desconhecidas as origens do seu financiamento.
No entanto, era também objetivo do The Base, à semelhança da Atomwaffen Division, estabelecer laços com o ucraniano neonazi Movimento Azov, que fez parte do exército de combatentes voluntários contra os separatistas pró-Rússia no Leste da Ucrânia, acabando por integrar a Guarda Nacional ucraniana a partir de 2014.
Pelo menos um membro do The Base ter-se-á deslocado à Ucrânia para este fim, noticiou a Vice. De acordo com o Público, este país é hoje para a extrema-direita internacional o mesmo que a Síria foi para os jihadistas. O propósito é a obtenção de formação política e de treino e experiência em combate para melhor servir os seus objetivos no regresso a casa.
Contudo, o The Base não é a única rede neonazi inorgânica focada na população mais jovem. Se as condições tecnológicas já antes o permitiam, a verdade é que o isolamento social causado pela pandemia da covid-19 veio potenciar um clima propício à radicalização online de jovens, a par e passo com a normalização do discurso de ódio nas sociedades.
“Recrutar jovens torna-se ainda mais fácil em contexto de caos social, incerteza e ócio forçado” como a causada pela pandemia, explicou Moreira de Carvalho, co-autora do livro Da Radicalização Ideológica ao Terrorismo: Uma Digressão, de 2020. “O ser humano gosta de ter a sua mundivisão muito bem organizada. O que acontece é as pessoas irem procurar nestas alturas respostas e soluções que resolvam estes conflitos internos que surgem”, continuou, ressalvando que as “narrativas extremistas exploram esta incerteza e caos e dão respostas simplistas e até de identidade das pessoas".
Esta é precisamente uma nova caraterística destas redes inorgânicas, ao privilegiarem no recrutamento adolescentes da Geração Z, nascidos na década entre 2000 e 2010. Esta geração mostra uma tendência mais profunda para a socialização através da Internet e das redes sociais, sem esquecer os videojogos.
“A ideia é que quanto mais cedo se chegar aos jovens, mais profunda é a influência que se pode fazer e criar assim ativistas mais dedicados e duradouros”, disse Hermansson. “Por outro lado, os adolescentes passam muito tempo na Internet e têm mais disponibilidade para consumir podcasts, vídeos do YouTube e outros conteúdos propagandísticos”, sendo muito mais influenciáveis e vulneráveis.”
Mas, ressalva o investigador que passou um ano infiltrado num grupo da extrema-direita britânica com ligações aos Estados Unidos, essa não é a única razão. “Também tem muito a haver com jovens irem atrás de outros jovens. Trata-se de criar comunidade, de deixar uma marca, e de fazer frente às pessoas mais velhas. O National Partisan Movement, por exemplo, é um caso de ativistas mais jovens que tentam enfrentar os mais velhos, afirmando que estes já não podem falar por eles”, explicou.
O National Partisan Movement (NPM) nasceu em novembro do ano passado, durante a segunda vaga da pandemia, no Instagram e no Telegram – o primeiro servia para recrutar (a conta foi entretanto banida pelo Instagram) e o segundo para se organizar. Aceitava inicialmente apenas recrutas com idades entre os 14 e os 19 anos, mas acabou por incluir membros com 12 anos, a par e passo com a presença de outros com cerca de 30 anos e que atuam como ideólogos.
Um dos ideólogos é um português de 26 anos residente na República Checa e era conhecido pela alcunha “Hatred” (Ódio, em português). O português disse ter-se juntado ao primeiro grupo bonehead (skinheads de extrema-direita) aos 12 anos e, aos 15, já ser líder de um.
Nas mensagens do Telegram a que o Setenta e Quatro teve acesso, o elemento natural de Lisboa fazia um bullying muito duro aos restantes membros, numa lógica de afirmação, e aconselhou-os a lerem o Mein Kampf e o Siege. “Rapazes, não sigam cegamente o Siege. O próprio James Manson nunca fez NADA. Tomem notas e aprendam com ele, mas lembrem-se que o JM não é Hitler”, escreveu o português. “Falem com o Panther [outro membro do grupo], fui seu mentor”.
“Posso-te ensinar a ser homem ou podes continuar a ser uma criança. [Posso ensinar-te] A não te incriminares. O grupo ficaria comprometido”, continuou. “O FBI tem me numa lista engraçada, tal como o SIS, o FBI português. Eu próprio sou meio terrorista”, vangloriou-se.
Os membros do grupo estavam organizados em “esquadrões”, cada um com chat próprio, mas a maioria das conversas acontecia no chat principal. O líder do NPM era um jovem norte-americano de 15 anos, com a maioria dos seus restantes 70 membros a residirem na Europa, dos quais 15 na Suécia.
Um dos suecos chama-se Thomas e era um dos três mais importantes do NPM. Apesar de o grupo afirmar querer distância de uma outra rede neonazi e responsável por vários assassinatos, a Atomwaffen Division, o jovem sueco era membro de um dos seus chats ligado à digressão de elementos pela Europa com o objetivo de recrutarem.
“Somos um grupo que se especializa na identidade branca para o futuro, pelo futuro. Não somos geridos por velhos que não têm o vosso melhor interesse em mente, por isso, se procuras isso, não adiras a este grupo. É para membros da Geração Z”, lê-se numa publicação da organização no Instagram, citada pela Hope Not Hate.
Hermansson levou a cabo uma infiltração digital durante alguns meses e descobriu a frequência com que a apologia ao terrorismo, misturada com discurso de ódio antissemita, homofóbico, transfóbico e racista, era frequente no chat de Telegram do NPM. O seu telemóvel e computador recebiam centenas de mensagens por dia, por os seus membros estarem espalhados entre a América do Norte e a Europa de Leste, passando pela Europa Ocidental. Estavam distribuídos por nove fusos horários.
“No mundo offline também são bastante conflituosos com as suas famílias sobre ideias de extrema-direita e muitas vezes começam a falar sobre estas com colegas de turma ou até com professores. Podem não dizer exatamente alt-right, mas podem fazer perguntas, podem tentar agitar e ofender, e acho que essas coisas devem ser levadas a sério”, continuou o investigador da Hope Not Hate. “O problema é que as pessoas podem não entender realmente o que são e não saber necessariamente como soa a linguagem da extrema-direita moderna.”
Alguns membros deram conselhos sobre como obter armas de fogo, entre os quais um adolescente do estado norte-americano de Kentucky, onde não existe limite mínimo de idade para a posse de arma. Este indivíduo tinha no seu perfil uma imagem do terrorista de Christchurch, tendo ainda previamente partilhado no grupo o vídeo do ataque. Têm ainda sido partilhados no chat ficheiros com designs para a impressão de armas 3D.
Os elementos do NPM não praticaram até hoje ataques graves para além do mero vandalismo (grafitar suásticas em centros de acolhimento de refugiados, por exemplo), mas Hermansson alertou para os riscos dessa possibilidade. Ainda assim, nem por isso deixaram de levar a cabo ações no espaço digital chamadas zoombombing.
O zoombombing é a prática de invasão organizada de um espaço digital na aplicação de videochamadas Zoom para perturbar, com palavras de ordem e imagens de ódio, uma reunião/evento. Com a pandemia, a grande maioria dos eventos e reuniões passaram a ser virtuais e, uma vez que também estavam fechados em casa, elementos de extrema-direita começaram a invadi-los. Esta prática de ação direta serve para criar identidade de grupo e mostrar compromisso para com a causa.
O NPM não é, no entanto, a única rede neonazi inorgânica com ligações a Portugal. No início de junho, as autoridades italianas revelaram ter desmantelado uma rede cujos 12 membros, entre os 26 e os 62 anos, que já estavam a dar os primeiros passos no planeamento de um atentado terrorista contra uma infraestrutura da NATO, sem especificarem qual seria. Um dos suspeitos é membro dos Carabinieiri, a polícia militarizada italiana.
Esta operação aconteceu depois de uma outra, apelidada “Sombras Negras”, que desmantelou em novembro de 2019 uma outra rede neonazi que se preparava para fundar um partido e dar treino militar aos seus militantes. Ambas as redes organizavam-se no WhatsApp.
“Precisamos de construir uma Internet que não promova ou incentive conteúdo que seja extremo, racista ou que estimule teorias da conspiração e conteúdo emocionalmente intenso”, refletiu Patrik Hermansson.
Um dos pontos de ligação entre as duas redes é Francesca Rizzi, vencedora em 2019 do concurso Miss Hitler, organizado na rede social russa VK. A italiana, que tem uma águia nazi tatuada nas costas, participou em agosto de 2019 na conferência internacional da Nova Ordem Social e, dizem as autoridades italianas, pediu nessa altura apoio a membros do grupo de Mário Machado para levarem a cabo o atentado terrorista, diz o Il Fatto Quotidiano.
No decorrer das investigações, lançadas em novembro de 2019, os suspeitos comunicaram por chat e telefone sobre qual o alvo do atentado. Para que avançasse, os suspeitos partilharam manuais para fabrico de bombas artesanais e trocaram informações logísticas. “Sabemos quando os guardas trocam de turno”, leram os investigadores no chat, citados pelo jornal italiano.
Uma outra caraterística da rede italiana era a instigação à violência contra judeus e imigrantes nas redes sociais, através das páginas Ordem Ario Romano e Judenfreie Liga (Liga Livre de Judeus). E, ao mesmo tempo que propagavam discurso de ódio, tentavam também recrutar novos membros: quem quisesse entrar na Ordem era obrigado a apresentar-se formalmente, a enviar o seu nome verdadeiro e uma foto sua.
“Precisamos de construir uma Internet que não promova ou incentive conteúdo que seja extremo, racista ou que estimule teorias da conspiração e conteúdo emocionalmente intenso”, refletiu Hermansson. “Precisamos que as plataformas de redes sociais sigam as suas próprias diretrizes e termos de serviço. Caso contrário, a confiança nessas plataformas também desaparecerá. E isso não é bom para ninguém.”
Opinião partilhada pelo investigador Jacob Davey. “É bom que haja pelo menos um compromisso visível vindo dessas plataformas, mas não podemos esperar que elas se autorregulem”, disse. “Atualmente há discussões em curso sobre regulamentação no Reino Unido, Canadá, Alemanha, França e Austrália. Essa regulamentação é amplamente necessária. Chegámos a um estado em que não podemos confiar nessas plataformas para resolver estes problemas por conta própria.”
Ainda que esta regulamentação seja um passo essencial no combate ao discurso de ódio e radicalização, Moreira de Carvalho argumenta que é preciso apostar-se na prevenção. “A melhor resposta é sempre a prevenção. A prevenção deve começar em idades muito mais tenras, em colaboração entre o poder político, forças e serviços de segurança e organizações da sociedade civil, para que haja um trabalho nas escolas”, afirmou.
Sobre a importância da prevenção, Davey recorda ainda que existem várias organizações nos EUA e na Europa, como a Life After Hate, fundada pelo ex-líder neonazi Christian Picciolini, especialistas no resgate e reabilitação de indivíduos que se radicalizaram.
Em Portugal, a iniciativa mais semelhante ao Life Hafter Hate foi o Projeto Counter@ct da Associação de Apoio à Vítima (APAV), que se terá extinguido após a data prevista para o seu fim, em abril deste ano. O projeto focava-se precisamente no combate à radicalização online.
O crescimento da extrema-direita reforça a urgência do regresso de um plano de combate ao extremismo em vários níveis diferentes. Não pode ser um plano focado apenas na dimensão securitária, mas também a nível social, económico, político e no âmbito da saúde mental. E englobar organizações da sociedade civil.
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