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Foto de Fabrizio Fenucci

Steven Forti: “A extrema-direita quer esvaziar a democracia radicalizando a direita tradicional e a opinião pública”

O historiador italiano considera contraproducente chamar fascista a Giorgia Meloni, mas assume que o objetivo da nova presidente do Conselho de Ministros italiano é criar uma aliança estável entre a direita tradicional e a extrema-direita, radicalizar a opinião pública e fragilizar a separação de poderes.

Entrevista
1 Dezembro 2022

Depois de Varsóvia e Budapeste, Roma. Passados 99 anos e 11 meses da marcha de Benito Mussolini e dos seus camisas negras sobre a capital italiana, a extrema-direita garantiu o seu regresso ao poder pela via eleitoral. A coligação, que juntou Giorgia Meloni, Matteo Salvini e Silvio Berlusconi, venceu as eleições para o Parlamento Italiano com 44% dos votos. Meloni, da escola pós-fascista do Movimento Social Italiano (MSI), tornou-se a primeira mulher presidente do Conselho de Ministros italiano.

Desta vez, por enquanto, não há “fasci di combattimento” para reprimir piquetes de greves. Para Steven Forti, historiador natural de Trento, no extremo norte da península italiana que já foi austríaco, as batalhas serão culturais e travadas “no campo legislativo”, para “reforçar até onde for possível os poderes executivos”  e “debilitar a separação dos poderes”. O objetivo é a consolidação do poder sem oposição, esvaziando a democracia pelo caminho. 

Forti considera que o desgaste político e mediático de Salvini e Berlusconi foram centrais para a ascensão de Meloni, cuja inteira participação política havia sido feita até aqui nas bancadas da oposição. Entre outros fatores, como a radicalização da direita tradicional e a normalização dos discursos de extrema-direita na opinião pública, o historiador nota uma tendência: “nunca houve tantas mulheres líderes de extrema-direita”.

Mais que uma limpeza de imagem, Forti considera esse fenómeno um “parasitismo ideológico”, a apropriação tática de uma bandeira progressista para reforçar posturas islamofóbicas e anti-imigração. Esta e outras abordagens populistas espalharam-se pela Europa, construindo um manual de ação política comum às ultradireitas do velho continente. “O Vox e o Chega podem beneficiar desta onda criada pela vitória de Meloni”, avisa Forti em entrevista ao Setenta e Quatro, lembrando que a esquerda tem sido “incapaz de criar um projeto que se ligue às populações”.

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Há quatro anos, o partido Irmãos de Itália teve 4% dos votos e este ano conquistou 26%. Georgia Meloni conseguiu chegar a primeira-ministra. Como se explica esta ascensão?

Há uma série de causas a ter em conta. Em primeiro lugar, o próprio sistema eleitoral italiano, que premeia as coligações. Da maneira como se apresentaram os diferentes partidos, este resultado já era expectável. Os partidos de centro-esquerda foram a eleições separados, a ultradireita foi unida. 

Depois, falando de números, a abstenção cresceu muito, quase mais dez pontos percentuais que nas eleições legislativas anteriores, em 2018 [quando foi de 33%]. Ainda assim, o número de votos na coligação de ultradireita é praticamente o mesmo [cerca de 12,4 milhões em 2018 e 12,3 milhões em 2022]. Se somássemos todos os votos dos demais partidos Movimento 5 Estrelas (M5S), Ação, Partido Democrático, Esquerda Italiana , seriam mais que os da ultradireita.

Além disso, temos de nos lembrar que o partido de Georgia Meloni esteve na oposição desde a sua fundação, em 2012, inclusivamente durante o governo de Mario Draghi, uma coligação tecnopolítica que incluía a [então] Liga Norte, de Matteo Salvini, e o M5S. 

Também convém mencionar os erros que Salvini cometeu no último triénio. Depois da sua presença nesse governo, entre 2018 e 2019, e o estrondoso êxito nas eleições europeias de 2019, quando a Liga obteve 34% dos votos, Salvini foi perdendo popularidade. 

"O femonacionalismo é uma estratégia de parasitismo ideológico, de apropriação de uma ideologia progressista, que diríamos de esquerda."

Desde o rompimento com o governo, em 2019, que levou à queda desse executivo, até à sua postura muito ambígua, com direito a teorias da conspiração sobre a covid, Salvini afastou-se do seu eleitorado típico, o pequeno-empresariado do Norte, e dos líderes locais da Liga nessa mesma região. As suas posições em relação à Rússia e a Vladimir Putin também não terão ajudado. Neste sentido, o pequeno e médio empresariado do centro e do norte de Itália castigaram, no passado 25 de setembro, Salvini em benefício de Meloni, porque queriam que o governo Draghi se tivesse perpetuado.

Há que também ter em conta os níveis altíssimos de desconfiança em relação à classe política. E esses níveis de desconfiança têm marcado a política italiana há mais de dez anos. Em 2013, o MS5 fixou-se no discurso anti-elites. Depois, Matteo Renzi apresentou-se como um político jovem que traria um Partido Democrático mais moderno. Todos os votos que angariaram eram voláteis e todos esses partidos perderam votos nestas eleições. Meloni era a única que não havia estado num executivo de governo.

E foi apenas o estatuto de outsider que beneficiou Meloni?

Há, também, uma vísivel radicalização do eleitorado de direita. O número de votos que a coligação de ultradireita conseguiu arrecadar é mais ou menos o mesmo de há quatro anos, mas mais baixo do que em 2008, quando Berlusconi venceu e se tornou presidente do Conselho de Ministros.

Isto também se explica pelo aumento da abstenção, mas Meloni não foi buscar o eleitorado de centro ou de esquerda. Há um eleitorado. que era de direita ou centro-direita, "berlusconiano", que se foi radicalizando. O conservador tradicional, da direita mainstream, radicalizou-se. Em Itália, com efeito, há mais um elemento: o declínio do berlusconismo. Ele e o seu partido ainda existem, mas já pouca gente o leva a sério. Tem 86 anos, vários problemas com a lei e inúmeros escândalos sexuais e de corrupção. 

Esse eleitorado foi buscar outras possíveis referências. Num primeiro momento, foi a Liga, de Salvini, cujos erros e a sua transformação num projeto nacional acabaram por afastar esses eleitores que, agora, optaram por Meloni.

Meloni afirma-se "mulher, mãe e cristã" e antifeminista. Olhando para a ascensão ou manutenção de outras líderes dentro da ultradireita, como a francesa Marine Le Pen ou a alemã Alice Weidel, a face da nova extrema-direita tende a ser feminina. Podemos falar de um femonacionalismo em expansão?

É um fenómeno muito interessante, feito de estratégia política, por um lado, e marketing, por outro. Não podemos reduzi-lo a uma tendência de "purplewashing". É aí que entra o femonacionalismo.

Nunca houve tantas líderes de extrema-direita mulheres. Além de Meloni, Le Pen e Weidel, temos Rocío Monastério e Macarena Olona em Espanha. As extremas-direitas entenderam que não podem ir buscar os seus votos somente à população masculina. As mulheres são mais de metade de qualquer população. Apropriaram-se de uma bandeira progressista e levaram-na para o seu próprio terreno. O femonacionalismo é uma estratégia de parasitismo ideológico, de apropriação de uma ideologia progressista, que diríamos de esquerda.

O mesmo se passa com a comunidade LGBTI. Não em todos os países, é certo, mas em França, por exemplo, Le Pen foi conquistar votos dentro da comunidade gay. Há diferentes estudos que mostram que perto de um terço dos eleitores franceses que se descrevem como homossexuais votou no partido de Le Pen.

Isto encaixa na centralidade das guerras culturais, claro, mas, por outro lado, há uma corrente verdadeiramente feminacionalista nestes projetos políticos. Há uma reivindicação daquilo que é ser mulher. Para Meloni e Le Pen, ser mulher é ser mãe, e isso vai ligar-se a uma série de valores nucleares destas ideologias de extrema-direita. A maternidade liga-se à natalidade e às ansiedades demográficas, e daí à xenofobia e à islamofobia. O que dizem é: "sem nós, mulheres, haverá uma islamização da Europa".

As grandes causas que apontam para o sucesso de Meloni e de Salvini parecem fenómenos transversais à Europa, às quais se junta a normalização da extrema-direita na política institucional. Qual poderá ser a influência, em Portugal e Espanha, de uma extrema-direita no poder em Itália?

Há uma normalização institucional e política, na sociedade e na opinião pública, da extrema-direita. A questão é que a ultradireita italiana está normalizada há 30 anos. Foi Berlusconi que, em 1994, com o seu primeiro governo, normalizou o MSI de Gianfranco Fini e a Liga Norte de Umberto Bossi, abrindo-lhes as portas do governo e permitindo-lhes ser sócios de coligação e chegar a ministros. Hoje, há uma geração de pessoas para quem é normal ter forças de extrema-direita nos governos nacional, regional ou municipal. 

Parece-me claro que a vitória de Meloni pode favorecer o avanço de outras formações políticas de extrema-direita por todo o continente europeu. Não foi só um bom resultado eleitoral, como o de Marine Le Pen [nas eleições presidenciais], em abril. Foi uma vitória que levou à construção de um governo de extrema-direita num país fundador da União Europeia, membro do G7 e terceira economia da Zona Euro. Tem o seu peso.

Sabemos, também, que o Irmãos de Itália tem relações estreitas com o Vox, de Santiago Abascal. Uma das primeiras intervenções públicas de Meloni depois da vitória foi uma mensagem enviada ao Vox, na qual desejava que Abascal e o seu partido chegassem ao poder. O Vox e o Chega podem beneficiar desta onda criada pela vitória de Meloni, mas temos de esperar para ver, em primeiro lugar, o que fará este governo em Itália. Estamos numa conjuntura muito difícil, com a guerra na Ucrânia, a crise energética, a inflação, a realidade de uma recessão económica. Não sei como estará o governo de Meloni daqui a seis meses. Pode ser um inverno politicamente muito difícil. 

Se o seu governo passar por dificuldades, tanto a nível interno como internacional, isto terá impacto nessas forças políticas, pois parecerá um executivo incapaz de liderar numa situação difícil. Além disso, tanto em Espanha como em Portugal há ainda uma direita tradicional, estruturada, que se mantém forte e representada por partidos sólidos, mesmo que passem por dificuldades. Em Itália, essa direita foi ultrapassada pela ultradireita. Na Península Ibérica, não vejo isso a acontecer, para já. 

Há ligações entre os partidos que formaram governo em Itália e movimentos violentos de extrema-direita? 

Posso equivocar-me, mas não creio que o projeto de Meloni e Salvini inclua a utilização da violência como ferramenta política. As movimentações internacionais de Meloni mostram que ela quer atrair o povo para uma aliança ultraconservadora, inspirando-se no modelo da Hungria ou da Polónia, mantendo uma fachada de respeito pelas regras democráticas. Isso pode desestabilizar os equilíbrios europeus, até ao nível de Bruxelas, no Parlamento Europeu.

Isso não quer dizer que não haja ligações entre os partidos italianos da ultradireita e grupúsculos neofascistas e neonazis. Tanto Meloni como Salvini sabem que também estão a falar para esse eleitorado. Meloni vem tentando moderar o seu discurso, ao estilo de Marine Le Pen, para se desdiabolizar e aumentar a sua popularidade, mas, ao mesmo tempo, acaba sempre por dizer algo que ressoa no eleitorado de extrema-direita.

Quem trabalhou muito para criar essas ligações foi Salvini, entre 2014 e 2017. Firmou aliança com a CasaPound [movimento neofascista, fundado em 2003], para conseguir penetrar nas regiões centro e sul de Itália onde a sua Liga Norte não tinha arraigo, e com setores do Força Nova [partido neofascista, fundado em 1997] e grupúsculos neonazis como o Lealtà Azione.

"Há uma normalização institucional e política, na sociedade e na opinião pública, da extrema-direita. A questão é que a ultradireita italiana está normalizada há 30 anos."

O caso de Meloni é distinto, porque ela vem desse mundo do neofascismo italiano, vinculado ao Movimento Social Italiano (MSI) e, mais tarde, à Aliança Nacional (AN). Estes partidos sempre mantiveram ligações com os neofascistas. Isto não significa que não haja tensões. Há setores neofascistas que criticam Meloni pelo seu atlantismo, por exemplo, ou por a acharem demasiado moderada. 

O líder da Força Nova (FN), Roberto Fiore, está atualmente sob julgamento pela invasão e destruição da sede da central sindical CGIL, em 2021, durante uma manifestação que misturava a extrema-direita neofascista com o movimento anti-vacinas, liderada pela FN. Fiore, histórico líder que vem do "terrorismo nero", fascista, dos anos 1970, tem um gabinete no mesmo edifício onde está a fundação da AN, de onde vem Meloni. Ou seja, existem ligações. Meloni está a tentar guardar distância, pelo menos a nível formal, dessas companhias. 

Não creio que haja uma estratégia clara de usar estas forças violentas, de maneira organizada, enquanto governo, mas acredito que, no futuro, se acontecerem ataques neofascistas, eles fecharão os olhos. Haverá permissividade. Distanciar-se-ão, mas nunca condenarão esses atos de forma inequívoca. Dirão que são, apesar de tudo, "bons rapazes".

É isso que o faz afirmar que chamar fascistas ou neofascistas a Meloni ou Salvini é contraproducente?

Não só contraproducente, como equivocado, a partir de uma análise ideológica, especialmente quando falamos da Liga. A origem política e ideológica da Liga Norte, nos anos 1980, é o etnorregionalismo populista. Não há dúvida, ainda assim, que o partido assumiu, desde os ataques de 11 de setembro de 2001, um discurso islamófobo e ultraconservador, em linha com todas as outras novas extremas-direitas. Salvini buscou alianças, como disse, com grupúsculos fascistas, mas creio que designá-lo assim é um equívoco.

No caso de Meloni, a sua experiência política vem do MSI, uma espécie de antecessor do Irmãos de Itália. O MSI foi neofascista, é certo, mas se formos investigar a essência do Irmãos de Itália encontramos outras culturas políticas, como o ultraconservadorismo. O autor mais citado na autobiografia de Georgia Meloni é Roger Scruton. Não cita Julius Evola, mas cita os neoconservadores críticos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. O Irmãos de Itália é fruto das transformações deste setor político nas últimas três décadas. Seria redutor chamar-lhe neofascista. 

Também é contraproducente porque o termo "fascismo" está esvaziado de qualquer significado. "Fascista" é um insulto. Dificilmente mobiliza as pessoas e isso é evidente em Itália. Vimo-lo em Espanha. Pablo Iglésias [candidato do Podemos] apresentou-se às eleições regionais de Madrid de 2021 com o mote "fascismo ou democracia". Não mobilizou as pessoas. Pelo contrário, facilitou a vida a Isabel Ayuso [candidata do Partido Popular], porque lhe bastou negar ser fascista.

Outro termo bastante usado e abusado é o "populismo". No seu livro Extrema-direita 2.0 cita a politóloga italiana Nadia Urbinati: "o populismo estabeleceu uma relação parasitária com a democracia representativa". Não será antes embrionária, como um prelúdio para ditaduras?

Quando estudamos os fascismos históricos sabemos como tudo acabou e no que se converteram. Neste momento, estamos a estudar algo que ainda está em transformação. Na Hungria e na Polónia já leva algum tempo, enquanto no Brasil e nos Estados Unidos vimos uma tentativa – não sabemos até que ponto organizada pelo próprio poder – de usar a violência.

É difícil prever o que serão estas novas extremas-direitas. Não podemos descartar que estas formações políticas se tornem autoritárias ou que venham a usar a violência. Neste momento não o fazem. Olhando para a Hungria e para a Polónia, e escutando os discursos de Meloni e de Salvini, parece-me que o objetivo é o mesmo: radicalizar o debate público para a ultradireita e esvaziar a partir de dentro a democracia liberal. 

Isso far-se-á promovendo uma visão ultraconservadora da realidade, combatendo as chamadas batalhas culturais no campo legislativo – a imigração, o aborto, os direitos LGBTI, a "ideologia de género", o feminismo. Daí reforçar até onde for possível os poderes executivos, para debilitar a separação dos poderes. Na Hungria e na Polónia isto é evidente. Na Itália ainda não, mas Meloni já propôs um projeto de reforma constitucional que transformará Itália numa república presidencialista, reforçando o poder executivo.

Continuando a falar de termos e designações, o Parlamento Europeu declarou recentemente a Hungria como "autocracia eleitoral". Concorda com essa definição?

Sim. Essa definição de regime híbrido ao não ser uma democracia plena nem um regime totalitário – parece-me acertada. A Hungria tornou-se um modelo, junto com a Polónia. Todas as formações políticas das novas extremas-direitas têm boas relações, umas mais que outras, com os governos de Budapeste e de Varsóvia. 

Essas formações tentam aprender, ativamente, com o que Viktor Orbán, Mateusz Morawiecki e Andrzej Duda têm feito nos seus países. Basta ver quem participou na Conferência Política de Ação Conservadora (CPAC) dos Republicanos dos Estados Unidos, organizada pela primeira vez na Europa, em maio, pelo próprio Orbán.

É importante olhar para a rede do National Conservatism, um projeto da Edmund Burke Foundation. Lá podemos ver Georgia Meloni, Marion Maréchal-Le Pen, Jaime Nogueira Pinto ou Santiago Abascal e gente vinculada aos think-tanks de partidos como o Irmãos de Itália, o Chega, o Vox ou Reagrupamento Nacional. Reúnem-se amiúde na Polónia e na Hungria, inclusive com israelitas e norte-americanos.

"Meloni vem tentando moderar o seu discurso, ao estilo de Marine Le Pen, para se desdiabolizar e aumentar a sua popularidade, mas acaba sempre por dizer algo que ressoa no eleitorado de extrema-direita."

O que significa politicamente esta abordagem para a Europa?

Primeiro, acho que esta definição chega tarde. Veremos o que se passará com a votação sobre os fundos de recuperação destinados à Hungria, que poderão ser bloqueados. Ainda que não haja poder de veto, temos agora três governos de ultradireita na União Europeia: Varsóvia, Budapeste e Roma. 

Há, ainda, a questão da Ucrânia. A Polónia tem hoje uma excelente relação com Bruxelas, depois das tensões dos últimos anos. É um país fortemente atlantista e acolheu um milhão e meio de ucranianos. Já não é um problema, como no passado. 

Nem Orbán nem Morawiecki são eurocéticos. Querem estar na União Europeia, mas querem que ela seja não uma federação ou união política, mas uma confederação de Estados, onde só se decidem conjuntamente as questões relativas à economia e à defesa. Querem ter competências nacionais sobre a maioria das grandes questões internas, especialmente em matérias de  Direito. Meloni defende o mesmo. Se formos ler as Teses de Trieste, o principal documento político do FdI, isso está lá escrito.

É possível que se multe a Hungria ou se lhe bloqueiem os fundos de recuperação, mas nem em Bruxelas nem em Budapeste há vontade de causar problemas. Há vontade de evitá-los e de se conduzir as coisas com cuidado. Não creio, ainda assim, que Orbán retroceda nas medidas políticas que tomou. A Hungria continuará a ser uma autocracia eleitoral. 

Pergunto-me, isso sim, sobre o que acontecerá nas eleições europeias de 2024. Será um momento-chave. Temos visto como nos últimos tempos a direita tradicional desistiu dos cordões sanitários que traçou face à ultradireita. Vimo-lo na Suécia, com os Democratas Suecos (DS), e em Itália. É possível que o vejamos em Espanha, em 2023. 

O objetivo de Meloni é conseguir uma aliança estável entre a direita tradicional e a extrema-direita. A grande questão é essa: o que fará a direita tradicional? O que fará o Partido Popular Europeu? Aliar-se-á formalmente com os Reformistas e Conservadores Europeus? Haverá uma intenção de fazer alianças para criar um novo equilíbrio dentro da Comissão Europeia?

Temos de tentar perceber até onde é que estes partidos, como o FdI ou o Vox, querem ou estão dispostos a ir. O que sabemos é que querem radicalizar a direita tradicional e a opinião pública. Não querem utilizar a violência nas ruas e preferirão manter-se, à maneira polaca, como governantes formalmente democráticos, paulatinamente esvaziando a democracia ao debilitar a separação de poderes, controlar os meios de comunicação e retirar direitos às minorias e às mulheres.

Esse avanço cauteloso evita também uma reação conjunta da parte da esquerda, que parece não se entender. A direita está mais propensa a unir-se?

Há [diferentes] contextos. Em Espanha, a esquerda e o centro-esquerda têm colaborado em determinados momentos e o governo está a concretizar um projeto progressista. Pedro Sánchez, primeiro-ministro, e o partido Unidas Podemos têm feito um trabalho positivo. É claro que essa realidade é muito distinta da italiana, como a brasileira é da francesa.

"É contraproducente usar o termo 'fascismo', porque está esvaziado de qualquer significado. "Fascista" é um insulto. Dificilmente mobiliza as pessoas e isso é evidente em Itália."

Mesmo com essas matizes, há, por um lado, uma social-democracia que não conseguiu ajustar contas com a terceira via do blairismo e afastou de si a classe trabalhadora e alguma classe média. É um elemento que dificulta a criação de uma frente ampla que faça frente às extremas-direitas. Depois da crise de 2008, é muito difícil a esquerda radical aceitar uma aliança com quem defende uma série de políticas neoliberais.

Além disso, a esquerda radical tem sido incapaz de renovar-se nos últimos 30 anos e criar um projeto que se ligue às populações. Houve, desde o fim da Guerra Fria, dois momentos em que o tentou: primeiro, com as lutas antiglobalização, entre 1999 e 2005; depois, no rescaldo da crise da Zona Euro, a partir de 2012, com o Syriza na Grécia, o Podemos em Espanha e a colaboração das esquerdas durante o primeiro governo de António Costa, em Portugal.

Disse uma vez que o debate político é uma "orgia de distração massiva". Qual tem sido a posição da comunicação social?

Há sempre órgãos de comunicação social que fazem um trabalho sério, mas tem havido uma queda generalizada do nível de qualidade do jornalismo e da ética jornalística. Há pelo menos 25 anos que o jornalismo está em crise, tanto na imprensa escrita como na televisão, sobretudo pela entrada em cena da Internet, das redes sociais e das tecnologias de ponta. Ligado a isto, o trabalho do jornalista precarizou-se. Pagam-lhe pouco e trabalha mal. Tem de escrever artigos sobre qualquer coisa, rapidamente e a qualquer momento. 

Os meios de comunicação, sobretudo os digitais, têm a necessidade de chamar sempre mais leitores e subscritores, o que promove o "clickbait". Rapidamente se formou uma "infocracia", em que o debate político tem que acompanhar o ritmo frenético imposto pelas tecnologias de informação. 

A política, sabemos, deveria ser um lugar onde o debate toma o seu tempo. Em vez disso, busca-se a declaração, o soundbyte chamativo, um tweet, um mote que agite as redes sociais. E isso esconde uma ausência de debate político, de elaboração teórica. Tudo isso entra no círculo vicioso onde existem as fake news, as mentiras, a pós-verdade, as teorias de conspiração.

Nas últimas duas décadas, temos visto a aparição de meios de comunicação "alternativos" como o Breitbart ou The Daily Wire, que, em conjunto com grupos em redes sociais mais ou menos convencionais, difundem e viralizam ideias de extrema-direita. Também temos visto meios de comunicação tradicionais seja por estratégia comercial, por falta de ética ou incapacidade em verificar os factos – propagar discursos de extrema-direita, tornando-se megafones dessas ideias.