Bruno Gonçalves

Bruno Gonçalves: “Há falta de coragem dos nossos governantes para assumir que o flagelo deste país é o racismo"

A pretexto dos 500 anos de perseguição das pessoas ciganas, o mediador cultural cigano conta-nos como o seu povo foi perseguido, como as suas consequências ainda hoje se fazem sentir. E como, sobretudo, a ciganofobia ainda está entranhada na sociedade portuguesa.

Entrevista
3 Agosto 2023

Em 2026 assinala-se o quinto centenário da perseguição aos portugueses ciganos. Em 1526, as Cortes de Torres Novas solicitaram a D.João III que expulsasse os ciganos do reino e se proibisse a entrada aos que quisessem entrar. A pretexto desta data, um grupo de cidadãos ciganos e não ciganos juntou-se e propôs, através de uma petição pública, a evocação deste centenário.

Algumas das propostas da petição centram-se no programa curricular e pedagógico, na importância das atividades culturais evocativas da efeméride e na criação de um Centro Interuniversitário de Estudos Ciganos. Um conjunto de figuras diversas da praça pública juntou-se na Comissão de Honra - Ana Gomes, António Sampaio da Nóvoa, Isabel Camarinha, Manuel Alegre, Ricardo Quaresma, José Tolentino Mendonça, Elisa Ferreira ou Duarte Pio. A iniciativa conta ainda com o patrocínio do Presidente da República.

Bruno Gonçalves é um dos promotores desta petição. Numa entrevista feita em duas partes, por videochamada, o dirigente associativo da Associação Cigana Letras Nómadas considera que  pouco se sabe sobre a história e os contributos do povo cigano em Portugal: está “muito omisso”. Acredita que a evolução do associativismo cigano tem melhorado, mas que ainda há muito por fazer no que diz respeito à luta contra a discriminação das pessoas ciganas, politicamente perseguidas por forças políticas que ameaçam a democracia.

O licenciado em Animação Socioeducativa fala ainda da dificuldade dos partidos à esquerda darem visibilidade à luta antirracista assim como ciganofobia, o que considera ser transversal ao espetro partidário: “Encontrei na esquerda pessoas com comportamentos de pessoas de extrema-direita”.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Quais são os principais objetivos desta petição? 

Esta é uma iniciativa de cidadãos ciganos e não ciganos que tem como principal objetivo relembrar os cinco séculos de permanência dos portugueses ciganos em Portugal. Em 2026 faz quinhentos anos desde a primeira lei repressiva contra os portugueses ciganos.

Os grandes objetivos não são comemorar o passado cheio de leis repressivas, mas a resiliência deste povo a qual pertenço com muito orgulho e que passou por várias tentativas de aniquilação e omissões. As assimetrias que sofre no dia a dia são por causa deste passado histórico que não podemos apagar. Queremos com esta iniciativa não só dar relevância à história, mas realçar a história dos portugueses ciganos.

O que falta saber sobre a história e os contributos do povo cigano? 

Tudo. Está tudo muito omisso. O  Presidente da República conseguiu em 2022, através de um comunicado no dia 1 de dezembro de 2022, falar de um herói cigano, o Jerónimo da Costa, que em 1640 lutou com outros 150 ciganos na zona da fronteira do Alentejo com a Espanha pela restauração da independência contra os espanhóis.

Há uma tentativa de marginalizar todos os contributos dos ciganos e de outros grupos, como os africanos, que têm vindo a contribuir para a história e para o presente. Nós fazemos parte deste país há cinco séculos. Infelizmente, o passado de alguns destes grupos é traumático. Pensamos que há a possibilidade de mudar a trajetória de uma sociedade que continua a ser estruturalmente racista. 

Há racismo estrutural e institucional neste país. É preciso pensar o racismo como um sistema e não como relação interpessoal. São cinco séculos de pontos de partida completamente diferentes e que nos deixam muitas vezes num vácuo.

Porque há tanta resistência em assumir que o racismo é estrutural? 

Porque não interessa. É uma perda de privilégios para a sociedade maioritária deixar de haver outros grupos abaixo na escala, sem representatividade e poder. O racismo é uma relação de poder. Há privilégios que os ciganos e os africanos não têm em função da sua cor e da sua pertença cultural ou religiosa.

Esta iniciativa marca de alguma forma o sair desse desconhecimento das comunidades ciganas na participação cidadã em Portugal? 

Não sei qual é o efeito que irá ter. Termos o alto patrocínio do Presidente da República já é uma grande vitória. Em quinhentos anos nenhum membro do Estado, mesmo em democracia, se referiu aos ciganos como o Presidente da República. Temos connosco um conjunto de académicos, ex-deputados e eurodeputados, pessoas da arte, da escrita, da arquitetura a reconhecer esta iniciativa. É importante.

Que efeito vai ter na sociedade? Se calhar nas elites, nas pessoas que compreendem e têm uma literacia mais alta, certamente que poderá mudar algumas mentalidades conhecendo depois a história. Através dela consegue-se perceber o presente e depois pensarmos todos no futuro.

Vivi num bairro social com pobres brancos, pobres africanos, pobres imigrantes, e foi esse o meio no qual me forçaram a viver sem objetivos e horizontes.

Em 1990 houve uma iniciativa sobre os judeus sefarditas. Porque não sobre os  ciganos? Não podemos ser tratados de  forma marginal. Os judeus são um grupo economicamente muito estável, de alguma maneira menos marginal que as comunidades ciganas ou as africanas.

Porque é que só agora se conseguiu juntar uma frente tão ampla de pessoas da vida pública na luta contra a discriminação das pessoas ciganas? 

Porque enfrentamos   uma ameaça à nossa democracia. Basta olhar para o parlamento. Estas ameaças passam pela perseguição a grupos de  portugueses.

Se não o são, são imigrantes que contribuem para o país. Hoje são os ciganos a ser perseguidos, amanhã não sabemos qual será o grupo. Acho que por causa disso as pessoas estão a aderir positivamente a esta iniciativa.

Defender a nossa democracia é uma das coisas mais importantes e os portugueses ciganos fazem parte deste território. Não viemos da ciganolândia. Somos portugueses há cinco séculos.

Por muito que queiram reduzir muitas vezes a nossa cidadania, somos portugueses, amamos o nosso país. Ainda que a gente se sinta desconfortável em muitos aspetos dada a perseguição diária que sentimos, mesmo quem é licenciado, ou outros que alcançaram patamares altos são perseguidos diariamente.

Um dos discursos  usados pela extrema-direita é o da criação de um imaginário onde as pessoas ciganas são criminosas e  subsidiodependentes. Porque é que isto acontece? 

Porque é fácil. Vão ter sempre que arranjar um bode expiatório para alcançar os seus fins e isso está estudado. Há pessoas que conseguem ter um discurso que movimenta massas.

Foi assim que aconteceu com o Holocausto. Temos que recuar quase 80 anos para perceber como é que o regime nazi conseguiu convencer uma boa parte dos alemães de que os judeus eram o problema.

Depois os ciganos e outros grupos foram agarrados nesta malha. Nós não aprendemos nada de literacia política. Uma boa parte da literacia dos portugueses é muito baixa e faz com que sejam manipuláveis. É muito fácil ludibriar o que as pessoas dizem nas conversas de café e levar às acusações coletivas que eles [ciganos] são todos isto e aquilo.

Com esta iniciativa queremos também mostrar que a história pode apresentar um conjunto de dados que explica o porquê de uma boa parte dos portugueses ciganos viverem na pobreza. Foram nómadas forçados e há uma série de situações que permitem perceber o porquê das discrepâncias e assimetrias que hoje uma boa parte dos portugueses ciganos vivem, e o passado pode explicar tudo isso.

Vivi num bairro social com pobres brancos, pobres africanos, pobres imigrantes, e foi esse o meio no qual me forçaram a viver sem objetivos e horizontes. Quando nos segregam, as nossas hipóteses de singrar enquanto cidadãos são muito escassas. O sistema está montado só para beneficiar alguns.

Há uma tentativa de marginalizar todos os contributos dos ciganos e de outros grupos, como os africanos, que têm vindo a contribuir para a história e para o presente.

É isto que a extrema-direita faz: ludibriar por causa da iliteracia política e da baixa literacia escolar de boa parte dos portugueses, e conseguir fazer estes tubos de ensaio junto das populações. Foi o que o André Ventura fez.

O seu discurso pegou porque há ódio contra a resistência e resiliência dos ciganos. Continuamos a manter algum dos padrões culturais e identitários ciganos, o que muitas das vezes causa desconforto: não fomos assimiláveis apesar de cinco séculos de perseguição, de aniquilação, de omissão, de tudo o que é mau e que foi feito contra os portugueses ciganos. Daí vem a nossa força. Sermos admirados por alguns e odiados por outros.

Já soma mais de 20 anos no associativismo em prol de melhores condições de vida da população cigana. Como avalia a evolução da participação das comunidades ciganas no associativismo? 

As coisas têm vindo a melhorar pouco a pouco, porque também temos dado condições para se formarem quadros. Hoje temos 40 jovens licenciados e quatro mestres. Eles são a geração da mudança. Também a criação de medidas de afirmação positiva para fazer a reparação histórica. As pessoas, sobretudo os políticos, ficam incomodados quando se fala em reparação histórica, mas é o que se está a fazer.

Os programas Opré, Roma Educa, de incentivo ao estudo. A arma mais poderosa para mudar o mundo é a educação, é isso que estamos a tentar. O associativismo tem esta capacidade de ter impacto nas políticas.

Hoje, o associativismo cigano é completamente diferente de há 20 anos: muito melhor preparado, organizado, mas ainda tem muito que andar. Temos noção que temos vindo a fazer alguma história. Os impactos de algumas políticas são muito pequeninas. Mas têm-se aberto portas para que possamos, no futuro, ter vidas melhores.

O que poderia ser melhorado?

A habitação é importante. É um problema transversal que a comunidade cigana sofre. 30% das comunidades ciganas vivem em situações insalubres. Em tendas, em barracas, e isto tem apenas que  ver com uma situação. Há o racismo estrutural e é ao nível local que temos mais problemas. As comunidades ciganas continuam a viver em situações muito complicadas. Esse é o grande problema que depois afeta outros, como a saúde ou a educação. Não há educação sem habitação, não há saúde sem habitação e sem educação, está tudo interligado.

Os problemas foram o aparelho de estado que criou durante cinco séculos. E o principal papel é mudar mentalidades. Dizermos que o racismo é pontual é uma mentira. Se não tivermos políticos corajosos que assumam haver racismo estrutural, vai ser sempre muito complicado.

Qual deveria ser a estratégia do Estado para melhorar as condições de habitação das populações ciganas?  

Tem que se optar por um trabalho de disseminação destas pessoas pela malha urbana e evitar a segregação espacial, criar  quotas em empreendimentos ditos privados, ou, cidade, haver em cada quarteirão pessoas racializadas a viverem, para que a inclusão aconteça.

Se estivermos num bairro social só com pessoas pobres racializadas, vamos continuar a ter um ciclo de pobreza. Todos os serviços à volta dessas pessoas vão ser fracos ou inexistentes.

Há privilégios que os ciganos e os africanos não têm em função da sua cor e da sua pertença cultural ou religiosa.

Muita gente fala no facto de haver muitos bairros sociais, o que não é verdade. Portugal é dos países da União Europeia com a mais baixa percentagem de parque habitacional – apenas 2%. É preciso evitar as segregações, recuperar os centros históricos, disseminar as pessoas pela malha urbana, criar mais oportunidades para o arrendamento dos jovens.

A ciganofobia é transversal ao espetro partidário? 

É transversal, e a falta de diálogo é importante. Sou de esquerda, hoje não sou partidário, e posso dizer que há grandes homens de esquerda que são grandes antifascistas mas que não passam de uns grandes racistas. Encontrei na esquerda pessoas com comportamentos de pessoas de extrema-direita.

Olha-se agora para o nosso espetro parlamentar e os partidos de esquerda silenciam todos os ataques feitos às comunidades ciganas e às comunidades africanas: que solidariedade é que eles têm tido connosco? Zero.

O Mamadou Ba foi "apedrejado", mandaram-no calar, demitiram-no. Ninguém saiu à rua para o defender. E a minha pergunta é: temos lugar neste espetro partidário? Não temos.

Neste momento, os partidos usam-nos para colorir as listas, não há ninguém em lugares elegíveis. Tivemos a Joacine Katar Moreira, a Beatriz Gomes Dias, que infelizmente não conseguiu ser eleita, mas quantos é que ficam pelo caminho com perceção política, com condições de fazer representatividade?

Porque há tanta dificuldade dos partidos mais à esquerda de darem cara pela luta antirracista? 

Eleitoralismo. Se se preocupassem com os princípios orientadores da fundação dos partidos, como por exemplo, o Bloco de Esquerda, as coisas eram diferentes.

O Bloco de Esquerda (BE) é de direitos humanos. Hoje só defendem os direitos humanos que lhes interessam. Hoje a bandeira do BE é o movimento LGBT. Nós, enquanto associações dos direitos humanos, temos que lutar por tudo: direitos dos afrodescendentes, dos ciganos, dos grupos religiosos que muitas vezes são perseguidos.

Neste momento, é um partido que procura dinheiro e fontes de apoio em que a comunidade cigana ou as comunidades afrodescendentes não conseguem dar, porque somos comunidades pobres.

Havendo um ódio destilado diariamente nas ruas, nas redes sociais contra nós, contra os ciganos, contra os afro, contra os imigrantes, sobretudo contra os que não são brancos, é sempre muito complicado. O eleitoralismo tem vencido esses partidos. 

Qual o balanço que faz dos outros partidos à esquerda? 

O Partido Socialista neste momento tem a importância de ter lançado o Observatório do Racismo do Plano Nacional de Combate à Discriminação. Mas uma boa parte das pessoas do partido não assumem que o racismo é estrutural.

Não faz sentido haver um Observatório do Racismo quando muitos dos ministros ou secretários de Estado ainda afirmam que o racismo em Portugal é pontual. Há aqui uma incongruência que vão ter que assumir de uma vez por todas. Este é o grande problema. Os partidos não assumem que Portugal é um país estruturalmente racista. Se não o assumirem, dificilmente o vamos combater.

E o PCP e o Livre que também têm representação parlamentar?

O Livre continua a ter uma posição um bocadinho mais aberta relativamente a esta questão. O PCP, não. O PCP nunca abraçou a causa do antirracismo. Teve sempre um papel passivo. No Alentejo, as câmaras que mais perseguiam e perseguem a comunidade cigana são do PCP. 

É isto que a extrema-direita faz: ludibriar por causa da iliteracia política de boa parte dos portugueses, e conseguir fazer estes tubos de ensaio junto das populações. Foi o que o André Ventura fez.

Existem boas pessoas dentro do partido, mas a ideologia é muito das pessoas que trabalham, e depois têm alguns vieses. A comunidade cigana tem sido alvo de ciganofobia de uma boa parte dos partidos, inclusive daqueles que defendem os direitos humanos, mas sobretudo do PCP. No Alentejo é terrível. Perpetuaram a pobreza de muitas comunidades ciganas ao omitirem a presença dessas comunidades ou ao trabalharem com elas.

O movimento antirracista tem deixado as pessoas ciganas para trás? 

Não. Estamos a fazer um grande trabalho, uma união de esforços que não se viu no passado. Os movimentos afro e ciganos estão muito mais próximos e mais solidários, o que não acontecia.

O movimento antirracista em Portugal tem que se organizar. Somos muito desorganizados. Muitas vezes a criação de divisões leva a que sejamos fracos. Pessoas como Mamadou Ba tiveram o papel importante de colocar o racismo na agenda.

Criou-se um Observatório contra o Racismo e a Discriminação Racial porque o Estado português percebe que há racismo neste país, mas não é racismo pontual. Sabemos que isso não funcionou: não minimizou nem inibiu nenhum dos comportamentos racistas. Pelo contrário, aumentaram. Há falta de coragem dos nossos governantes para assumir que o flagelo deste país é o racismo.

É só olhar para a história contada nas escolas, como os afro são representados como tribos, os ciganos como os nómadas com burros atrás, com as fogueiras.

O movimento antirracista é desorganizado em que aspeto?

Há muitas divisões.

Que divisões? 

Ideologia, muitas das vezes. E isso leva a que haja divisões fraturantes. É sempre muito complicado quando há fraturas, mas os nossos movimentos já foram muito mais fraturados. Hoje começa a haver um entendimento aqui e acolá, mas continuamos a ter várias correntes de pensamento e de ideologias. Não ponho em causa nenhuma delas, mas fratura os nossos movimentos.

Que temas ou questões têm fraturado o movimento antirracista? 

Tem que ver mais com ideologias e com o facto de não sermos tão unidos como deveríamos. As coisas melhoraram. Entre as comunidades ciganas, afro e imigrantes começa a haver muita troca de sinergias, o que é importante.

No passado, cada um defendia a sua causa. A divisão é mais por aí, quando nós sabemos que o racismo é uma causa de todos. Além de sermos movimentos muitos pobres, o que não nos permite organizar da melhor forma, somos grupos que continuamos a dividir-nos, ainda não estamos com a sinergia necessária.

No movimento antirracista das comunidades ciganas há alguma fratura em particular? 

Há fraturas entre os mais progressistas e os conservadores, como existe no antirracismo geral. Com essas fraturas andamos sempre dez passos para a frente e depois 20 para trás, mas tudo faz falta. Os conservadores e os progressistas fazem falta. Claro que atrapalha-se aqui e acolá em alguma parte do processo. Mas temos de arranjar meio termo para continuarmos a fazer o nosso caminho. 

Um dos programas que coordenou foi o Romed, que impulsionou a mediação intercultural e a participação cidadã das comunidades ciganas em vários pontos do país. Qual é o papel do mediador intercultural? 

O mediador intercultural é mais do que um gestor de conflitos. É um encorajador.

Um mediador intercultural tem que ter essa capacidade de levar as pessoas a acreditar que é possível, e que, organizando e participando, a situação delas pode mudar.

É complicado, mas esse é o grande papel do mediador intercultural. É isso que fazemos no Romed. Encorajar as pessoas a organizarem-se, estimular a sua participação mais ativa e, acima de tudo, convencer os do outro lado que estas pessoas são tão válidas como todas as outras.

Quais são as funções do mediador intercultural? 

É um trabalho bastante versátil. A nível educativo cria as pontes, descodifica linguagens, cria espaços de interação, relações de confiança, encoraja as pessoas a procurarem os serviços, que é algo que nas comunidades ciganas temos tido muitas dificuldades.

Certas pessoas já não acreditam no sistema, porque foram maltratadas no passado. Um mediador deve fazê-los acreditar que ali há uma possibilidade. Cria relações de confiança para que haja uma normalização do convívio.

Portugal é dos países da União Europeia com a mais baixa percentagem de parque habitacional – apenas 2%.

No caso da saúde, tem funções mais ligadas à temática, como na educação, sobretudo, de conversa com os pais, com as crianças: fazê-los ver a importância da instrução escolar, todo esse trabalho. Se as crianças já faltam demasiado, ir procurar saber porque faltam, ajudar com que a relação e o diálogo dos professores seja uma relação franca

No fundo, é criar um ambiente que não seja tão hostil para as comunidades, sobretudo para as racializadas, que têm mais dificuldade em viverem num sistema de ensino monocultural com a missão de instruir pessoas da sociedade maioritária. Com a entrada de pessoas afro e ciganas, continua a ser um ambiente que não diz nada a estas crianças e jovens, porque não há referências de que também eles fazem parte desta sociedade.

O papel do mediador intercultural tem sido valorizado em Portugal? 

Não, porque não temos um estatuto de carreira. Temos vários mediadores que neste momento estão na prateleira. É um bocadinho contra senso, porque há cerca de dois anos o ANQEP [Associação Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional]  aprovou o estatuto de mediador intercultural, mas, quando os mediadores querem ser inseridos no mercado de trabalho, não existe a figura do mediador.

Estamos a lutar neste momento com a Ministra dos Assuntos Parlamentares para que até ao final do ano o estatuto seja aprovado, para dar garantias a estas pessoas que se formaram e às entidades, para que legalmente consigam contratar.

Somos muito mal tratados. Muitas vezes não se conhece a figura nem as funções e há uma enorme confusão. Quando pensam no mediador intercultural que vem dos afrodescendentes ou dos ciganos, há sempre aquela ideia de que vêm aí polícias. Não somos polícias. Somos uma chave que pode abrir portas.

Um dos aspetos que rege a vida social das comunidades ciganas é a chamada lei cigana, que tem o objetivo de, por exemplo, ajudar a mediar conflitos entre membros da comunidade. É possível a conciliação entre a lei cigana e a lei do Estado português?

A lei cigana é usada em problemas entre ciganos e foi a base que nos levou a estar aqui hoje. Não havia lei, a lei da sociedade geral nunca funcionou durante séculos. A comunidade cigana teve que adotar uma lei para pacificar a sua convivência e para prevenir males maiores.

Hoje a lei cigana continua a ser usada. Goza de um estatuto de aceitação por todas as comunidades ciganas e é muito mais eficaz, rápida e confiável que a lei geral. Quando a justiça julga um cigano ou outra pessoa que não é branca, não julga só a pessoa, mas a pertença cultural à sua origem. A lei cigana é, nesse aspeto, muito mais confiável quando tenho um problema com  outra pessoa cigana.

Há grandes homens de esquerda que são grandes antifascistas mas que não passam de uns grandes racistas. Encontrei na esquerda pessoas com comportamentos de pessoas de extrema-direita.

Imagine uma mulher cigana vítima de violência doméstica. Num dia pode resolver o seu problema. Todas as outras têm que fazer queixa ao Ministério Público, à APAV ou à PSP, por muito que haja medidas de coação para essa pessoa se afastar. O que temos visto é que mesmo assim há pessoas assassinadas, mulheres sobretudo.

Nos últimos anos não há mulheres ciganas assassinadas por violência doméstica porque a lei cigana é eficaz. Não nego que não existe violência doméstica. Existe. Física ou psicológica. Mas a lei cigana protege e é muito mais rápida nesse aspeto. Portanto, vai continuar em paralelo com a lei geral.

Que lutas ainda são precisas ser feitas de dentro para dentro da comunidade? 

Tudo. Não se pode só esperar um trabalho unilateral de respostas válidas por parte da sociedade e do governo. Há que fazer um trabalho por parte da comunidade, sobretudo de acreditar que é possível. Vai ser duplamente ou triplamente mais difícil, mas é possível.

Há pessoas dispostas por oportunidades, mas há muita coisa por fazer. Precisamos de acreditar que, do outro lado, existem pessoas de coração aberto para nos dar essas oportunidades. Vamos ter que acreditar nisso e ter esperança de que podemos construir e enriquecer este país.

Em que vertentes esse trabalho é mais necessário?

Pelo lado das comunidades é preciso organizá-las para a participação. Fazê-las acreditar que ainda é possível. E, do outro lado, é preciso criar políticas que se façam sentir no dia a dia das pessoas, que haja uma melhoria na vida destas pessoas enquanto cidadãos. Que ao mesmo tempo tenham o cuidado de não querer assimilar estas pessoas, para que mantenham a sua identidade e a sua cidadania.

Há um trabalho importante de fazer a reparação histórica, sobretudo com as comunidades ciganas e com as comunidades afro. É preciso falar de medidas de afirmação como é o caso do Opré: criação de bolsas com um pequeno montante para incentivar os jovens ciganos a terminarem o Ensino Superior.

É algo que há 20 ou 30 anos não entrava nos parâmetros das comunidades ciganas, e hoje é uma necessidade importante. Foram muitos os anos em que os pais ciganos se viram afastados da escola por causa do nomadismo forçado, não podendo  passar aos filhos a necessidade de uma formação académica alta. A profissão deles era a venda ambulante, não precisavam de formação académica alta nem de  mão-de-obra especializada para exercerem a sua principal atividade. Tiveram que ter uma atividade em que pudessem conciliar com a sua condição de nómadas forçados.

Hoje a sociedade e o mercado estão cada vez mais exigentes, e é também importante termos estes quadros, estas pessoas ciganas a concorrerem ao ensino superior. Nada melhor que criar uma medida de reparação histórica, como estas bolsas, para que as pessoas  possam ser acompanhadas, garantindo no futuro a representatividade nas instituições de pessoas licenciadas.

Quando a justiça julga um cigano ou outra pessoa que não é branca, não julga só a pessoa, mas a pertença cultural à sua origem.

Não entram só porque são ciganos, entram pelas vias normais, fazem o seu exame nacional no 12º ano, ao contrário do que muita gente pensa. O ponto de partida deles é muito diferente, não podemos falar em meritocracia. A maior parte vive em bairros sociais e, se não fosse este pequeno apoio, talvez não sentissem essa necessidade de continuar a estudar, mas é necessário fazê-los acreditar que é possível.

Este programa tem sete anos, e conseguimos 40 jovens ciganos licenciados e quatro mestres, mais mulheres ciganas do que homens ciganos. Os resultados são muito bons. Mais de  60% estão no mercado de trabalho, mesmo que mais de metade não possa dizer ser cigano no trabalho, para não serem despedidos.

Estas medidas de afirmação positiva são importantes para que haja uma normalização, e, a partir daí, acredito não ser necessário ter mais medidas de afirmação positiva. Mas até lá são bem vindas.

Concorda com a recolha de dados étnicos? 

Sou a favor que tenhamos um retrato sociodemográfico dos ciganos, dos afros, porque assim temos capacidade de influenciar políticas mais estruturadas. É a mesma coisa que termos a nossa sala cheia de mosquitos e comprarmos apenas um spray, quando precisamos de quatro ou cinco.

Se tivermos dados concretos, vamos colocar em cima destes dados políticas concretas e eficazes, e não políticas avulsas, como temos vindo a usufruir até aqui.

Esses dados são importantes, mas são perigosos, e há esse receio do que pode ser feito com eles. De que forma é que podem ser salvaguardados se as pessoas têm vindo a usá-los  para aumentar e galopar o ódio? O que me preocupa é a forma como  conseguimos proteger esses dados dos nossos inimigos, que estão mortinhos por usá-los, descontextualizados, para ganhar eleitorado.

Entrevista editada por Ricardo Cabral Fernandes.