Piménio

Piménio Ferreira: “As pessoas ciganas protegem-se porque têm que sobreviver. Isso nunca pode ser considerado auto-exclusão”

O engenheiro físico e ativista cigano Piménio Ferreira é um dos que melhor conhece a história, a cultura e a identidade das comunidades ciganas em Portugal e no mundo. Nesta entrevista, deixa um relato de uma história de marginalização e de feridas pelo ódio anticigano.

Entrevista
30 Junho 2022

Piménio Ferreira foi o primeiro cigano a tornar-se engenheiro físico em Portugal, cumprindo o sonho de “ser inventor”. A conclusão do Ensino Superior e as possibilidades que a formação lhe ofereceram deram-lhe a consciência de pertencer a uma comunidade desde sempre segregada. 

É atualmente um dos dirigentes da associação SOS Racismo. Acompanha de perto as diferentes faces de um racismo estrutural presente no dia-a-dia de muitas pessoas. Considera que esse racismo é uma característica intrínseca de todo o “Estado moderno”. E que é precisamente no topo da hierarquia, nas decisões do Governo, que alguma coisa pode mudar. Por enquanto, a segregação começa aí, no próprio sistema. 

Aquilo que o discurso anticigano da extrema-direita fez foi pôr as comunidades ciganas no centro do debate. Até aqui, viviam escondidas, segregadas e marginalizadas. Hoje, continuam a viver segregadas e marginalizadas, mas menos escondidas do debate nacional. Para Piménio Ferreira, a extrema-direita “é um sintoma do que já existia”, mas “o principal responsável por todas as formas de segregação” é o Estado. 

Os primeiros ciganos chegaram a Portugal mais ou menos há 500 anos. Porque é que as comunidades ciganas ainda são tão marginalizadas?

As pessoas ciganas descobriram a Europa há coisa de mil anos, primeiro por terra e depois por mar. Em especial na Península Ibérica, o grupo que nós chamamos de calão - o Calé -, que é o grupo essencialmente predominante em Espanha e em Portugal, chegou por Castela e pelo Mediterrânico.  

Relativamente à marginalização, isso tem a ver com a estrutura política da Europa Moderna. Para criar uma Europa Moderna foi preciso criar uma política identitária que hoje define o que é ser branco. Em toda a política identitária não pode existir um indivíduo ou uma identidade sem existir uma contra identidade. Foi nesse âmbito que surgiu o cigano, não tanto a pessoa em si, mas o conceito da identidade cigana. 

Há uma diferença entre cigano e roma. O cigano é criado pelo branco para este se auto-criar e o roma é literalmente o povo que veio da Índia. A identidade criada pelo branco e a verdadeira identidade daquelas pessoas são duas coisas diferentes. Por isso é que tens alguns conflitos, essencialmente nos Balcãs, onde se discute se se aceita que se chame ciganos ou roma. Em Portugal e Espanha não passámos por isso, porque houve um  processo de reapropriação do termo.

Esta marginalização existe  para sustentar esta identidade. Enquanto mantiveres esta identidade que define o que é ser branco, vais manter uma estrutura identitária que, por sua vez, sustenta uma estrutura económica, política, social, quer do capitalismo e do liberalismo, quer de todos os outros ‘ismos’ que tu conheças hoje. 

"O Estado é o principal responsável porque é quem vai instituir todas as formas de segregação e impô-las pela violência."

Mas a história da comunidade cigana em Portugal é também ela uma história de marginalização?

A chegada das revoluções, entre o século XV e XVI, ou das pré-revoluções liberais, nomeadamente com o avanço das invasões europeias, como a invasão de Ceuta em 1415, e a chegada ao Brasil em 1500, trouxe uma revolução dentro da própria Europa que origina o que conhecemos hoje como a Europa Moderna. 

Esta revolução é que vem trazer o anticiganismo, porque é fundamental para este liberalismo o ódio anticigano. Só a partir daí é que começa a haver as primeiras leis anticiganas na Península Ibérica. Em 1521, sai o “Auto das Ciganas” de Gil Vicente. A arte e os artistas começaram, assim, a trabalhar para esta identidade anti-cigana. A revolução liberal continuou-a, porque era preciso acabar com a ideia dos territórios e da língua comunitária e começar a impor uma só língua e religião, até implementar a propriedade privada, que tem a ver com o que nós conhecemos hoje. 

Segundo esta lógica, é essencial punir aqueles que não são “aceitáveis” e que não compactuam com este regime, até para dar o exemplo. Ora, na conceção do roma, não existia o conceito de propriedade privada sobre a terra. Ou seja, isto era um grande choque para as ideias que eles queriam impor do absolutismo e do liberalismo. Acresce a isso o facto de os ciganos terem uma língua própria, o romani, e terem mais do que uma religião. Há toda uma série de circunstâncias que tornam os ciganos personae non gratae e era preciso alimentar um ódio anticigano para que os povos servos não se identificassem com a comunidade cigana e começassem a achar que eram mais parecidos com os senhores. 

Quando os roma chegaram à Europa, foram bem recebidos pelas pessoas comuns porque traziam novidade, cor, música e conhecimentos. A Medicina na Europa, por exemplo, teve um grande apoio dos conhecimentos roma. Havia médicos que iam aos acampamentos ciganos para aprender a curar fraturas. No entanto, isso começou a desaparecer, porque surgiu este ódio e a haver perseguição, que veio de várias instituições como a Igreja, a arte e os reis. Criou-se toda uma cultura anticigana que se estrutura na cultura europeia moderna e que vem influenciando toda a cultura e mentalidade branca até aos dias de hoje. 

Isto tudo porque a comunidade cigana foi a resistência dessa identidade branca?

Os roma não foram os únicos. Sempre houve resistência na Europa, com os mouros, os negros, os africanos e os judeus. A diferença é o contexto em que surgiram. Os ciganos quando chegaram à Europa não tinham continente, não tinham um país, ou um Estado. Até porque o cigano tinha esta ideia radical de que a terra não era de ninguém, mas de quem a pudesse explorar. Isso na Europa era impensável, pois seria uma grande ameaça. 

Ao mesmo tempo, foi um aproveitamento, porque era necessário criar o branco, mas, para criar uma identidade angelical, tinha de haver a demoníaca. E os ciganos caíram aí que nem ginjas, porque os judeus eram só de uma religião diferente e os povos africanos ainda nem sequer existiam a não ser como árabes. Os ciganos tinham tudo: a questão étnica, racial, religiosa, linguística, cultural... Foi uma bomba-relógio que ali rebentou e que resultou na contra identidade perfeita para criar a identidade branca.

Mas é a sociedade maioritária que exclui os ciganos ou são as comunidades que se auto-marginalizam?

Na verdade, quem nos afasta é o Estado através das suas políticas. Quando nós falamos da sociedade maioritária - e aqui referimos a parte da sociedade que é constituída pela demografia branca -, ela também se afasta, mas porque está a reproduzir o que o Estado instituiu através dos media, da arte, dos livros, ao criar narrativas que não são desafiadas. 

A sociedade maioritária reproduz esse ódio ciganófico. As pessoas ciganas protegem-se porque têm que sobreviver. Isso nunca pode ser considerado uma auto-exclusão. Se há alguém que se auto-exclui são os ricos quando vão para um condomínio fechado. Esses têm o privilégio de estar em todo o lado e preferem estar encerrados entre portas. A comunidade cigana não, eles são empurrados para um local, como no bairro das Pedreiras [em Beja], e ainda lhes constroem um muro à volta. Isso é segregação e não auto-segregação. Foi o Estado que fez essa segregação e essa exclusão. 

O Estado é o principal responsável, porque é quem vai instituir todas as formas de segregação e impô-las pela violência. Relativamente ao branco comum, a sua relação com uma pessoa cigana comum já só está a reproduzir uma sequência de situações, mas não é propriamente responsável. Ambos são vítimas e vilões deste sistema que tem que ser contrariado, mas que ainda predomina, infelizmente. 

"Para criar uma Europa moderna, foi preciso criar uma política identitária, que hoje define o que é ser branco. Em toda a política identitária, não pode existir um indivíduo ou uma identidade sem existir uma contra identidade."

Ainda hoje vemos figuras de sapos colocados à porta de casas habitacionais, de restaurantes e de espaços comerciais. Reconhece esse comportamento como consciente e intencional ou é apenas um velho hábito que resistiu?

Existem várias hipóteses de como isso começou, mas desconhece-se qual a verdadeira origem. A questão é que não existem sapos em todos os países da Europa, mas ciganos do grupo calé existem não só em Portugal, como também em Espanha, por exemplo. O porquê de esse hábito ter surgido especificamente em Portugal é uma coisa que nos escapa completamente. Isso mostra não só a particularidade portuguesa, como a particularidade branca portuguesa. O que faz um português branco pensar que um simples símbolo nos pode afastar de um local?

O seu uso é claramente intencional. Não é por uma questão de sorte, como é, por exemplo, numa casa de artigos chineses. Existe mesmo uma intencionalidade de agredir pessoas ciganas. É sobre esta necessidade de agressão que a branquitude tem de parar para pensar, o que acaba por não ter efeito, na realidade, porque os ciganos continuam a frequentar esse espaço. Mas é uma questão simbólica que demonstra que o ódio anticigano está bastante radicalizado e as pessoas têm esta necessidade de expor as suas raivas e os seus ódios.

O mais interessante é que isto diz mais das pessoas brancas do que de nós, comunidade cigana. As pessoas não gostaram da revolução liberal, não gostaram de ter perdido a propriedade privada, de ter perdido o direito à sua língua e de perder a sua identidade. Só que em vez de se voltarem contra o agressor, voltam-se para quem o agressor aponta o dedo. Acho que isso é uma coisa que deveria preocupar a Europa em geral, porque diz muito sobre o tipo de branquitude que está a criar há cinco séculos. 

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Piménio Ferreira
Piménio Ferreira contesta a "narrativa de que os racistas desapareceram e agora voltaram a aparecer". "Não, eles sempre cá estiveram", garante.

A guetização e a perseguição cigana são ainda recorrentes, sobretudo na Europa do leste, onde estes ciganos vivem em condições miseráveis, mesmo desumanas. Os ciganos são hoje os novos judeus? 

A verdade é que judeus e ciganos já estão cá mais ou menos ao mesmo tempo e a sua perseguição sempre foi paralela. Mas não podemos comparar opressões, porque os judeus tiveram altos e baixos na sua perseguição, já os ciganos estão constantemente a ser perseguidos. As comunidades judaicas podiam refugiar-se no Norte de África, onde tinham aliados, por exemplo, mas os roma não, porque não tinham aliados. 

A segregação não é mais acentuada na Europa do leste, é transversal a toda a Europa, a diferença é apenas remota. Estamos  a falar de um país que tem um milhão de pessoas cigana versus um país que tem 50 mil. São regiões que estão a lidar com uma estrutura económica extremamente debilitada, como a Bulgária, a Hungria e a Roménia, onde se acentua a exclusão social. Mas depois vamos olhar para o que interessa, que é o tipo de violações e de desproteção que existe, e percebes que Portugal não é dos melhorzinhos da Europa. 

Portugal teve o caso de Oleiros [quando uma família cigana foi forçada a vender a sua terra e a mudar de localidade por imposição da comunidade local], a questão de Santo Aleixo da Restauração [em Moura], mas nada disso sai nos media. Portugal foi condenado, em junho de 2011, por violação da Carta Social Europeia contra uma comunidade cigana, por causa do caso do Bairro das Pedreiras. Como é possível que em 500 anos apenas tenhas tido um presidente de câmara cigano e um único secretário de Estado cigano que, por acaso, até é o mesmo? Quando se olha para todas as ausências, não se justifica que isso aconteça num país que supostamente é mais fofinho. 

Falando também da esperança média de vida. Em Portugal, os ciganos vivem 18 anos a menos que a média nacional. Estes 18 anos equivalem a Portugal na década de 1960, em pleno Estado Novo, com fome e pobreza. 

O antropólogo José Gabriel Pereira Bastos afirmou, em 1997, que “o único racismo português é dirigido ostensiva e totalmente aos ciganos”, exigindo ainda um pedido de desculpas de Portugal. Espera ou acredita que esse pedido vos chegue um dia?

Não, obviamente que não. Mas sobre essa declaração é preciso fazer um reparo. O trabalho do Gabriel é muito importante para denunciar o anticiganismo em Portugal. No entanto, o racismo em Portugal não é unicamente dirigido para as pessoas ciganas, porque dizer isso inviabiliza um bocado outras comunidades, como é o caso dos afrodescendentes e dos negros. Não é correto da minha parte falar da minha perseguição e inviabilizar outras. 

Mas não há dúvida que há uma grande diferença, porque perseguir um cigano é aceitável, mas perseguir uma pessoa negra pode não ser, em alguns aspectos, tão aceitável. As pessoas ciganas estão muito mais vulneráveis. Mesmo tendo cartão de cidadão, os ciganos não são considerados portugueses. Além disso, não têm uma Embaixada, não têm um Estado, não têm nada que os possa defender, nem quem os queira defender. Também não sabem como se podem proteger melhor e acabam por criar respostas próprias de defesa pessoal. 

O próprio sistema não lhes oferece formas de proteção. É evidente que, se eu sou o teu agressor, não te vou dizer como é que te vais defender de mim. Só tens o Estado para atuar mas é também esse mesmo Estado que te está a perseguir. 

"Quando juntas artistas ciganos com artistas africanos e árabes, crias o flamengo, o fado e uma série de criações culturais que são únicas e que só existiram porque os ciganos estiveram cá."

Não é só a história da comunidade que não é reconhecida pela sociedade maioritária, mas também a cultura cigana. Que traços culturais e tradições ciganas contribuíram para a identidade portuguesa que hoje conhecemos?

Para começar, os ciganos trouxeram o fado. A língua portuguesa também se construiu com partes do romani. Na cultura portuguesa entraram também os ritmos, as cordas e certos tipos de repercussão. Obviamente não foram apenas as pessoas ciganas a contribuir. 

A parte boa da arte cigana é que ela não produz, mas antes pega em vários ingredientes e cria novos ritmos, novas expressões artísticas… Quando juntas artistas ciganos com artistas africanos e árabes, crias o flamengo, o fado e uma série de criações culturais únicas e que só existiram porque os ciganos estiveram cá. E depois de entregues, foram-nos roubadas.

Depois existe outra questão. O cigano português distingue-se do espanhol, porque o cigano português é português. O cigano também vem absorver o que existe em Portugal e isso cria uma personalidade, uma cultura e uma identidade diferentes. Por isso tem coisas parecidas com um português branco que não tem com um espanhol branco, mas depois existem coisas parecidas com o cigano espanhol que não existem com um português branco. É muito interessante ver como as pessoas conseguem ter tantas multidões dentro de si. Isso nunca foi uma ameaça em si, mas uma fonte de enriquecimento. 

Aliás, se não fosse a Severa, o que é que seria do fado? Se não fosse a Leonor Teles ou o Quaresma? Claro que estou a individualizar e não nos devemos reduzir a isso, mas, por exemplo, quando foi a guerra pela restauração, em 1640, houve ciganos a lutar por Portugal e a serem elogiados porque lutaram por uma pátria que não era a sua. Isto é a palavra oficial que está no documento. Na mesma altura, e pelo mesmo rei, os ciganos foram expulsos de Portugal. Ou seja, servimos para defender a independência de Portugal contra Castela, mas depois não servimos para cá continuarmos. 

Há tanta coisa interessante a acontecer no mundo e é triste não o conhecermos, não só por uma questão de trivialidade, mas sobretudo porque esses conhecimentos também nos ajudam a recriar a nossa identidade. Se nós tivéssemos mais conhecimento de quem somos e do que fizemos, sem estigmas, recriaríamos uma nova identidade, humana, conjunta e muito mais saudável. 

Porque não gosta que se use a palavra assimilação ou integração? 

Tu tens de ser como tu és, tens de ser aceite como és, acabou. Tu não tens que mudar para te moldares a um molde criado por outras pessoas. Não tens que fazer isso. Nós vivemos no mesmo espaço, dentro de uma fronteira portuguesa, logo todos temos de ter a mesma voz e o mesmo poder para decidir como podemos ser dentro deste espaço. 

Não é uma elite que define o modelo certo e tudo o resto é errado, quem quiser ou é igual ou sofre as consequências. Isto é absolutamente excludente, brutalizante e desumanizante. Eu não quero perder a minha identidade, e não falo apenas da minha identidade cigana, mas também enquanto Piménio. Isso da assimilação é algo que eu discordo politicamente, mas que infelizmente faz parte da ideologia liberal. 

Um relatório do Comité Europeu de Direitos Sociais do Conselho da Europa de março de 2021 revelou que há ainda 37% de ciganos portugueses a viver em bairros autoconstruídos ou acampamentos. Como é a vida destes ciganos?

Pessoas que vivem sem infraestruturas não podem ter uma vida boa. Quando sabemos que a esperança média de vida das pessoas ciganas é 18 anos inferior à média nacional, isto tem que ter uma explicação. E tem a ver com as condições materiais e de vida, começando pela habitação. 

Em Portugal, infelizmente os responsáveis pela habitação são os primeiros a fazer relatórios com este tipo de análise, mas também são os primeiros a negarem [esta realidade]. Descendo ao concreto, uma vez participei numa reunião com uma antiga secretária de Estado da Habitação, acompanhada pela diretora da Direção Jurídica do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. 

Eu dei os dados retirados de um estudo realizado pela amiga que estava ao seu lado e a própria Secretária de Estado respondeu-me que aqueles  dados não eram oficiais. Não interessa quantas autoridades venham denunciar esse problema, a habitação continua a não ser o  direito fundamental e inalienável que devia ser porque tem que se submeter aos interesses da especulação económica, do lucro, em que o capital se sobrepõe à humanidade. 

E depois verificamos que quem usufrui do capital é uma elite de uma etnia muito específica, enquanto quem paga o pato são maioritariamente pessoas de uma classe e de uma etnia também muito específica. E isso é um problema que nós vamos resolver não com apelos à consciência de quem governa, mas entre nós mesmo. É uma consciência coletiva que vai ter que ser desenvolvida entre todos.

"As pessoas ciganas já são um alvo fácil para toda a gente. A extrema-direita é um perigo, sim. A extrema-direita mata. Mas não são pessoas isoladas que chegam do nada, o Estado deu-lhes esse aval."

O que pode um jovem cigano que parta destas condições esperar sonhar ou alcançar?

Tu começas desde cedo a projetar naquela criança que ela não é como as outras, que não tem a mesma capacidade ou o mesmo futuro que as outras. Quando esta criança começa a pôr uma pausa na esperança e nos sonhos que pode ter, fica fechada sobre um mundinho muito segregado. E depois vão culpabilizá-la, porque foi ela que quis ficar ali, ela é que escolheu aquelas opções de vida, mas ela só escolheu dentro das opções que lhe permitiram. 

Está a haver uma segregação, assim como um genocídio da juventude cigana, porque a juventude cigana não tem direito a desenvolver-se e a conhecer todo o seu potencial. E novamente por causa das políticas públicas, começando pela habitação e depois dando continuidade pela educação, que são as responsáveis por podar estas crianças logo no início. 

A fragilidade que caracteriza as condições das comunidades ciganas justifica que sejam alvo fácil, sobretudo para possíveis radicalismos que cavalgam o discurso ciganofóbico?

Isso da radicalidade é muito interessante, porque, antes da covid-19, surgiu um programa europeu para lutar contra a radicalização da Europa e um dos grupos que o estudo assinalou para uma  especial atenção foi precisamente a juventude cigana. Ninguém falou dos brancos de extrema-direita, muito menos dos grupos de extrema-direita que saltaram para a política institucional. O estudo propôs criar programas dedicados a esta população para ajudar “os jovens delinquentes”. 

As pessoas ciganas já são um alvo fácil para toda a gente. A extrema-direita é um perigo, sim. A extrema-direita mata. Mas não são pessoas isoladas que chegam do nada, o Estado deu-lhes esse aval. Esta vulnerabilidade foi criada pelo próprio Estado, justamente para facilitar a perseguição e a expulsão dos ciganos. Depois surge esta extrema-direita que acaba por explorar isto, porque sabe que existe impunidade branca, racista e anticigana e espera por tirar proveito disso para o seu próprio ódio. Então crescem demasiado, ficam descontrolados, e lá vão os liberais mostrar-se arrependidos por terem alimentado esta extrema-direita. 

E é isso que está a acontecer hoje na Europa, novamente. Já aconteceu na década de 1990, com o assassinato de José Carvalho [1989] e do Alcindo Monteiro [1995]. Tivemos agora o homicídio do Bruno Candé e do Luís Giovani, assim como a agressão a Cláudia Simões e tantas outras brutalidades racistas. Estamos a viver outra vez essa década de 1990 e isso é um perigo, porque o Estado lava as mãos, pois somos nós que somos espancados e somos nós que morremos. Não nos podemos esquecer de quem se responsabiliza por estas vulnerabilidades. Não podemos negar a violência e o perigo da extrema-direita - porque ela existe -, mas também não podemos esquecer que ela não existe sozinha. A extrema-direita tem poder porque lhe deram poder. 

Temos hoje 12 deputados no parlamento que personificam um discurso contra as comunidades ciganas. De alguma forma, isto tem contribuído para este período de maior discriminação e perseguição? 

O aumento da extrema-direita é um sintoma, não uma causa. Estamos novamente a passar por uma crise cíclica no sistema capitalista em que grandes fações a nível mundial disputam o poder entre si e vão criando crises, intencionais ou estruturais. Estas crises vão acontecendo e a extrema-direita é sempre um instrumento fácil de usar, por isso é que nunca foi erradicada, nem criminalizada, porque dá sempre jeito. Muitas vezes até está armada e é treinada como, por exemplo, a Al-Qaeda pelos Estados Unidos. 

A extrema-direita na Europa é igual. Não tens um grupo de extrema-direita que exista em Portugal e na Europa por iniciativa privada. Estes grupos existem e crescem porque são alimentados, financiados e permitidos. Hoje tens 12 deputados, mas não é por acaso. Esses 12 deputados sempre lá estiveram, só que noutros partidos. Mas agora eles assumem e legitimam todo um discurso que até ontem supostamente não era permitido e afinal nunca foi condenado. Mais depressa se condena um cigano ou uma pessoa negra do que um grupo de extrema-direita. No fundo, acabam por contribuir [para maior discriminação e perseguição] porque reproduzem e aumentam o problema. No entanto, são apenas o sintoma do que já existe. 

As promessas de Abril chegaram à comunidade cigana?

Que promessas de Abril? Não, obviamente que não. Muito pelo contrário, porque só em 1986 é que o regulamento da GNR mudou a lei de vigilância sobre os ciganos para vigilância sobre os nómadas. Apenas mudou a palavra, mas as pessoas são as mesmas. Tanto que vês e sentes a diferença na questão da habitação e da educação, por exemplo.

É muito bonito dizer-se que existe liberdade de escolha, mas quem é que decide onde vou estudar, quem é que me vai empregar e em que condições habitacionais vou viver? Se hoje a juventude branca já sofre com estas limitações todas, imagina quem nunca teve sequer um pai ou uma mãe com oportunidades de vida. 

É hoje dirigente do SOS Racismo, mas há anos que contribuiu para a luta pelos direitos e garantias da comunidade. Desde que se juntou, o que possibilitou o ativismo às comunidades?

A militância antirracista em específico é das mais importantes, porque é uma militância profundamente estrutural, que existe para mudar a estrutura que, quando for mudada, vai melhorar a vida de toda a gente. Quando há militantes antirracistas no ativo, há uma luta que ajuda a melhorar as coisas. 

Por exemplo, só há uma lei que criminaliza o racismo graças à militância ativista na luta dos anos 1990. Além disso, existe a questão de denunciar muita coisa e de dar visibilidade nos media. Se, por um lado, há melhorias porque há mais gente a organizar-se e a fazer, por outro, o tempo vai passando e as nossas conquistas não são tão grandes como deveriam ser. 

A 21 de julho de 2020, as paredes do SOS Racismo foram grafitadas com frases racistas e xenófobas. Um mês depois, a 11 de agosto de 2020, à porta da sede do SOS Racismo desfilou uma parada ao estilo Ku Klux Klan. O racismo deixou de ter vergonha?

Alguma vez teve? Não tem vergonha, nem nunca teve condenação. O que acontecia é que ainda não lhe tinham dado permissão para falar. Ainda não era o tempo dele. Agora é diferente porque dá jeito que apareçam, porque se cria a narrativa de que eles desapareceram e agora voltaram a aparecer. Não, eles sempre cá estiveram. Agora estão mais empoderados, porque o Estado lhes veio dar esse poder. 

Portugal é um país racista e xenófobo? 

Todos os países europeus o são. Todo o Estado Moderno é estruturalmente racista.

A 8 de abril, no dia internacional das Comunidades Ciganas, o Presidente da República sublinhou a "necessidade urgente" de reconhecimento do lugar da comunidade na sociedade e a mitigação da "pobreza, exclusão e preconceito" que a atingem. Este reconhecimento é suficiente para a comunidade?

Palavras bonitas levam-nas o vento, as políticas ficam para quem as pratica. E cá estamos nós, na mesma.