A educação é ainda a primeira paragem do elevador social. Se a escola pública é quem mais ordena em Portugal, o verdadeiro acesso está longe de ser democratizado. Do acesso à educação, as comunidades ciganas aprenderam cedo a palavra “segregação”.
Já passa das três da tarde quando o autocarro da Câmara Municipal de Moura atravessa a cidade. Leva de regresso a casa um grupo de alunos ciganos e apenas se ouve o barulho do autocarro a passar pelas estradas de terra batida. O silêncio das crianças combina com o calor seco de Moura e com o cenário árido das estradas de terra que levam às casas dos ciganos.
Das cerca de dez crianças que vão no autocarro, e que, às vezes, chegam a ser quarenta, a maioria vive pelo menos a três quilómetros da escola – o critério que o Decreto-Lei n.º 299/84 definiu para o acesso ao transporte escolar. O tijolo à vista, os plásticos nas janelas, as carroças e os animais à entrada do bairro mostram que as suas casas não pertencem à cidade. Estão, por isso, longe, onde só se chega por estradas de terra batida. A passagem do autocarro enche o ar de poeira.
Um dos passageiros é José Rodrigo, mediador cigano. Com uma lista à porta da EB 2.3 de Moura, verificou os nomes dos alunos que entraram. Faz todos os dias este trabalho: ver quem vai à escola e trazê-los de volta a casa. Há dias em que a desculpa de viver longe se sobrepõe e José vê-se forçado a explicar aos pais das crianças a importância de ir à escola.
Os mediadores são, por isso, elementos que criam pontes de encontro entre as comunidades ciganas e a comunidade maioritária, no fundo “facilitadores de comunicação”, como classifica a Associação de Mediadores Ciganos em Portugal (AMEC). Não tendo um estatuto formal, os mediadores estão associados a projetos ligados às Câmaras ou a associações locais em áreas como educação, habitação, saúde e emprego.
Mais do que resolver conflitos, o trabalho dos mediadores assenta num “projeto de mudança”, classifica a AMEC. Uma mudança a fazer-se pela construção de “canais de diálogo”. A presença dos mediadores é, por isso, especialmente importante para que um cigano se sinta acompanhado.
O Inquérito à Comunidade Cigana de Moura, publicado em março de 2021, destaca como grandes problemas das comunidades as “condições degradantes de habitabilidade, salubridade e higiene” e a “elevada taxa de analfabetismo, absentismo e insucesso escolares”. Dos ciganos de Moura, apenas 3% concluiu a escolaridade obrigatória, sendo que 57% dos adultos não possui qualquer nível de escolaridade.
“As crianças [na escola] estão num ambiente que lhes é hostil”, porque “estão numa instituição que funciona segundo regras que elas não conhecem”, aponta Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas (ObCig). Essa é uma das principais causas para o abandono escolar. Por sua vez, Rui Oliveira, diretor do Agrupamento de Escolas de Moura, também reconhece que “se calhar aquilo que encontram na escola não vai ao encontro do que eles [os alunos ciganos] precisam ou querem”.
O percurso do autocarro, promovido pela Associação para o Desenvolvimento do Concelho de Moura (ADC Moura), é uma das formas para contornar estes números. Não se encurta só a distância física à escola, a presença de um mediador cigano encurta também a distância emocional. A pele muito morena e o cabelo escuro não deixam enganar. José Rodrigo é também ele cigano e, por isso, para os meninos ciganos, a sua presença é sinónimo de motivação. “Estamos aqui para incentivar as crianças a ir à escola”, explica, sentado num dos bancos entre as crianças.
Em Moura há ainda quem viva longe, mas não o suficiente para que o autocarro lhe passe à porta. A casa de Manuel Barão fica num bairro escondido pelas oliveiras, onde até os esgotos foram instalados pelos ciganos residentes. Os avós paternos do jovem de 14 anos fixaram-se naquele terreno outrora vazio e a família foi crescendo e ocupando o lugar, já depois da placa sinalética que assinala o fim da cidade de Moura. Manuel anda todos os dias a pé cerca de trinta minutos até chegar à escola e mais trinta para voltar a casa.
O jovem que está a frequentar o 6º ano é um dos mais de 250 alunos ciganos em Moura. Já choveu o dia inteiro e a lama agarra-se aos sapatos quando Manuel, de casaco castanho de cabedal e mochila às costas, chega a casa. Vem sozinho, porque nesse dia a chuva serviu de desculpa para que as outras crianças do seu bairro não fossem à escola. Mas Manuel tem um sonho: ser como o seu tio Benjamim Barão, o primeiro cigano de Moura a concluir o décimo segundo ano e que é hoje mediador. “Sempre adorei ir à escola, quando tiver 18 anos, não vou sair da escola”, conta Manuel.
Mesmo que uma criança cigana possa ir à escola, “parte de uma condição desfavorável ao princípio e não é compensada por esse desfavorecimento”, diz Piménio Ferreira.
Mas para quem nasce e cresce numa comunidade fora da cidade, segregada no meio das oliveiras, onde o alcatrão ainda não chegou e muitas das casas estão a meia construção, os sonhos são mais difíceis de alcançar. Sonhos esses que para outros não passam de banalidades.
“Há liberdade teórica para que cada um possa ser aquilo que quiser, mas é evidente que há uns que têm que se esforçar muito mais para lá chegar”, defende ao Carlos Miguel, o primeiro cigano a integrar um governo nacional português. Natural de Torres Vedras, o atual secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território reconhece que também o seu ponto de partida foi “mais atrás” e lamenta que, passados mais de 40 anos, essas diferenças ainda não se tenham “esbatido tanto assim”.
Quando durante os períodos de confinamento as escolas fecharam, estas diferenças tornaram-se ainda mais gritantes. Se a uns a aprendizagem chegava pelo computador, a Manuel chegava pelas mãos do tio Benjamim. Não que Benjamim se tivesse tornado professor, mas, como mediador, era ele quem distribuía as fichas de trabalho pelas comunidades dos alunos ciganos. Aprender tornou-se um exercício autodidata, com trabalhos que iam e vinham pelas mãos dos mediadores, até a escola abrir as portas aos alunos carenciados que não tinham acesso a um computador.
A decisão de abrir a escola em plena pandemia de covid-19 para os alunos mais pobres foi difícil, mas praticamente impossível de ignorar. As condições em que muitos alunos ciganos viviam, “sem casas de banho, sem luz, sem água”, como explica Rui Oliveira, assim o exigiu. “É indiscutível [que a falta de condições de habitação] influencia o estudo e a motivação para se ir à escola”, remata o diretor do Agrupamento de Escolas em Moura.
Mesmo que uma criança cigana possa ir à escola, “parte de uma condição desfavorável ao princípio e não é compensada por esse desfavorecimento”. Quem o diz é quem o sentiu, Piménio Ferreira, o primeiro engenheiro físico cigano em Portugal.
O RSI, que se fixa em média nos 119,07€ por mês, “não tem como objetivo ser a solução para o problema”, diz Catarina Marcelino. "Quem é que dá trabalho a ciganos?"
A família de Piménio Ferreira é a única de origem cigana da vila da Ericeira, onde nasceu e cresceu. Foi na escola que o engenheiro físico descobriu “novas realidades” e começou a acreditar “que eram possíveis”. Ruivo e de pele clara, a aparência nunca o denunciou como cigano. Ainda assim, numa vila pequena, todos sabiam que ele era “o cigano”. A comunidade a que pertencia parecia ditar-lhe o destino. Pelo menos, foi o que sentiu quando no oitavo ano uma professora lhe disse: “Eu não sei o que é que estás aqui a fazer, porque sais daqui e vais para as feiras”.
Sentado ao lado de uma rapariga de uma família de peixeiros, outro dos grupos pobres na Ericeira, as palavras da professora feriram-no como balas. Piménio Ferreira sabia que não queria ser feirante, queria sim “ser inventor”. Aos dez anos, tinha-se tornado sócio da Biblioteca Jaime Lobo e Silva da Ericeira, a sua “ilha de saber”, e, por incentivo de outra professora, começou a ler e a descobrir novos mundos através da palavra escrita. A física já era uma paixão e as palavras que nenhum aluno deve ouvir ativaram o rastilho. Nesse ano, foi o melhor aluno da turma.
“A escola pública é para todas as crianças, mas o estigma existe”, salienta Catarina Marcelino, ex-Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade e investigadora das comunidades ciganas. Já Piménio Ferreira, que sentiu na pele esta discriminação, garante que a escola “não foi feita para os meninos ciganos e negros” e que a atual frequência por quem integra estas comunidades foi “uma conquista”.
À porta da escola secundária em que andou, o hoje engenheiro físico lembra o tempo em que viveu sempre numa “situação minoritária”. Na primária era um dos cinco jovens ciganos da escola, mas à medida que foi subindo de ciclo, esse número diminuiu. “No secundário, acho que era mesmo o único, porque não conhecia mais nenhum”, recorda. Em 2005, quando entrou para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa para estudar Engenharia Física, seria certamente o único cigano.
Apesar de hoje ser aquilo que muitos consideram “um caso de sucesso”, Piménio sabe que a sua condição é ainda exceção e não regra. O ativista cigano tem consciência de que, para ter seguido “o caminho da escola”, foi fundamental reunir um “triângulo que às vezes falha”: o apoio de alguns professores, a sua própria vontade e personalidade e o apoio da família.
No 1º ciclo do ensino básico estão matriculados 44,3% das crianças ciganas, no Ensino Secundário esta percentagem baixa para 2,6%.
Raramente o triângulo está reunido. Afinal, em março de 2021 havia ainda 37% ciganos portugueses a viver em bairros de lata ou acampamentos. Este número foi revelado pelo Comité Europeu de Direitos Sociais do Conselho da Europa, que teceu fortes críticas ao Governo português. O organismo europeu considerou que o executivo não demonstrou “ter tomado medidas suficientes para garantir que a comunidade cigana vive em habitações que cumpram critérios mínimos”.
O secretário de Estado Carlos Miguel admite que há cerca de “20 anos que não é construída praticamente nenhuma habitação social ou que não existem programas de habitação social no país”. Se juntarmos a isto a pressão imobiliária de certas zonas urbanas e a gentrificação, a situação agrava-se para as minorias discriminadas. Como refere Carlos Miguel, o Estado não considera o princípio fundamental de direito à habitação digna: “Como é que se integra pessoas sem terem um teto?”.
Carlos Miguel e o Governo sabem que estão a falhar com cerca de 5% da população portuguesa – as comunidades ciganas – e a condicionar-lhes o futuro. Afinal, “uma coisa é viver num acampamento cigano, onde têm muita natureza à sua volta, e outra coisa é viver numa cidade, onde se tem biblioteca, galerias de arte, em que se tem acesso a uma série de janelas e que nos mostram mundos totalmente diferentes”, enquadra Carlos Miguel.
A certeza de que as condições de partida de uma criança cigana condicionam toda a sua vida não é surpresa para Manuel Barão. Afinal, o pai só completou o quarto ano de ensino, porque até aí o “avô andava de casa em casa, de lugar em lugar”. A instabilidade da infância do pai, provocada pelo nomadismo forçado, teve consequências. A carta de condução foi complicada de tirar e encontrar emprego continua hoje em dia a ser uma dificuldade. “Eu não queria ser assim como o meu pai, queria ser normal como os outros”, confessa Manuel, mesmo sem admitir quem são os outros.
Dos cinco irmãos, Manuel é o segundo mais velho. Quando volta da escola, nem sempre vai para o bairro escondido pelas oliveiras. Quando a mãe e o pai embarcam em trabalhos sazonais na agricultura em Espanha, Manuel e os irmãos ficam em casa dos avós maternos, uma das poucas famílias ciganas que vive no centro da cidade.
O pai e a mãe não trabalham e a família vive do Rendimento Social de Inserção (RSI), como 87% dos agregados familiares ciganos de Moura. À falta de trabalho em Portugal, os pais de Manuel passam temporadas em Espanha na agricultura. O filho percebe. Afinal “só o RSI não chega para cinco filhos. Eles têm que ir, a vida assim não dá”. Mas fica a saudade.
Em Portugal, de acordo com dados do Instituto de Segurança Social (ISS) de 2008, 3,7% dos beneficiários do RSI são ciganos. Mas o “RSI é uma prestação para cobrar mínimos, são os mínimos sociais”, explica Catarina Marcelino, hoje vice-presidente do ISS.
Apesar destes mínimos, o relatório da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura de 2008 reconheceu que o RSI se revelou “uma medida da maior importância face à situação de pobreza extrema em que se encontra parte da comunidade cigana”. É que através do RSI, muitas crianças passaram a ter acesso à escola e os adultos a formação recorrente e profissional.
Mas o RSI, que se fixa em média nos 119,07€ por mês, “não tem como objetivo ser a solução para o problema”. O grande problema é, para Catarina Marcelino, o emprego: “quem é que dá trabalho às comunidades ciganas?”. Ninguém, ou muito poucos.
O RSI, criado para integrar, tornou-se nos últimos anos um estigma. A extrema-direita que chegou ao Parlamento em 2019 capitalizou e cavalgou em cima de um discurso de ódio contra os beneficiários de RSI. Mas não foi a primeira. Já em 2009, Paulo Portas, na campanha das eleições legislativas, gritava que o RSI era “um financiamento à preguiça”. Os ciganos, há séculos empurrados para as margens da sociedade, são marginalizados até na sua pobreza.
Dentro das comunidades ciganas começa a nascer a consciência de que a educação é a chave para se conseguir melhores empregos e se quebrar o estigma da exclusão.
O reconhecimento da condição precária dos mediadores, na maioria das vezes com contratos a termo, vem de quem tem o poder para a alterar, o próprio Governo.
O Perfil Escolar das Comunidades Ciganas, publicado pela Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência (DGEC), relativo ao ano de 2018/2019, revela uma diminuição positiva da taxa de abandono escolar de 8,1% para 5,9%. No entanto, a redução do número de alunos ciganos matriculados consoante avançamos no grau de ensino é substancial. Se no 1º ciclo do ensino básico estão matriculados 44,3% das crianças ciganas, no Ensino Secundário esta percentagem baixa para 2,6%.
Piménio Ferreira garante que a “escola não está pensada para os ciganos”. Já estava no nono ano quando ouviu falar de ciganos pela primeira vez na sala de aula. Tinham sido as segundas maiores vítimas do Holocausto - cerca de 500 mil ciganos foram assassinados. “De resto, nunca mais ouvi falar de mim”, conta.
Foi já na faculdade que Piménio Ferreira quis contribuir para mudar esta realidade. O esteriótipo de cigano com brinco na orelha, lenço na cabeça e violino que os media perpetuavam não o representava. Em 2009, criou um blogue para dar a conhecer a arte, a cultura e a história das comunidades ciganas. As redes sociais tornaram-se palco de ativismo, onde “dava a conhecer as ofensas ciganas, a realidade e a revolta e quais as suas causas”. Mais tarde, juntou-se ao SOS Racismo, a principal organização antirracista em Portugal e onde também contribui para a inclusão das comunidades ciganas.
A realidade começa aos poucos a ver pontos de luz. No dia 8 de abril de 2021, quando se assinalou o Dia Internacional do Cigano, uma escola na Figueira da Foz decidiu içar a bandeira rom, a bandeira cigana, ao lado da portuguesa. “É um gesto que não custa nada fazer, mas tenho a certeza absoluta de que, para os meninos ciganos daquela escola, foi um motivo de orgulho ver uma bandeira que representa o seu povo”, defende Carlos Miguel.
Para o Secretário de Estado, era fácil o Governo emitir um despacho que obrigasse a que a bandeira rom fosse içada em todas as escolas. “O mais difícil foi o que aconteceu: uma escola, por sua livre iniciativa, fazê-lo”.
Estes sinais de esperança não nascem do vazio. Por detrás dos que se congratulam está o trabalho diário dos mediadores. “Nós somos mediadores de conflitos”, explica Benjamim Barão, mediador na ADC Moura desde os 19 anos.
Foi nesta associação que Benjamim começou a ter consciência dos problemas dos ciganos em Portugal e no mundo. Até aí, tinha, às vezes, vergonha de dizer que era cigano. Na ADC Moura, adotou a educação como o seu foco, porque acredita que com mais formação os ciganos conseguem “procurar melhor os seus direitos, mas também os seus deveres”.
A escola é um dos palcos onde a ação dos mediadores se tem revelado mais importante. Seja a levar alunos à escola num autocarro, como faz José Rafael em Moura, ou a brincar com as crianças no recreio, como fez Sónia Matos, no Seixal. “Enquanto fui mediadora numa escola, aqueles meninos ciganos não faltavam porque estava lá uma mediadora cigana que brincava com eles no recreio e eles sentiam que pertenciam àquele espaço”, conta Sónia.
Na escola “não há uma auxiliar da comunidade cigana, uma mulher das limpezas da comunidade cigana”, quanto mais professores ciganos, explica a mediadora do Seixal. É por ser tão pontual e necessária que esta presença se torna crucial para a integração de um aluno cigano. No entanto, apesar de todos lhe reconhecerem importância, os mediadores, na teoria, não existem.
“O estatuto de mediador não existe de forma formal. Nós, ou as pessoas que nos contactam, chamamos mediadores. Mas no fundo não somos mediadores. Somos técnicos inseridos nalgum tipo de projeto em que as pessoas solicitam a nossa ajuda”, explica Benjamim.
O reconhecimento da condição precária dos mediadores, na maioria das vezes com contratos a termo, vem de quem tem o poder para a alterar, o próprio Governo. “Na Estratégia [Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas], fala-se várias vezes de mediação. E onde é que está o estatuto? Onde é que está a carreira?”, questiona Carlos Miguel.
O Secretário de Estado faz as contas e chega a uma média de 308 mediadores no país para responder à necessidade de um mediador por concelho. E questiona: “É uma grande despesa para o Estado ou para a educação? Não, é uma questão de sensibilização e de se querer fazer”.
O caminho da igualização para as comunidades ciganas já começou, mas ainda é longo. As mudanças a fazer são muitas e a escola, talvez a mais importante, é apenas uma delas. É a primeira paragem de uma escalada. Por isso é urgente “revolucionar a escola”, defende Piménio Ferreira, para que seja cada vez mais espaço de inclusão.
Este trabalho é baseado numa outra reportagem publicada nos Repórteres em Construção, orientada por Pedro Coelho.