As tradições ciganas ditam regras muito rígidas no que toca à educação das mulheres. Frequentar a escola só é permitido até certa altura, e com muita vigilância. No entanto, há quem se organize para contrariar esta tendência em Portugal. Aos poucos, a mudança vai-se fazendo sentir.
São nove horas da manhã quando Sónia Matos, mulher cigana e mediadora sociocultural, sai de casa. Deixa para trás o marido, encarregue de cuidar dos dois filhos. Entre a gestão da Associação para as Mulheres Ciganas, que ajudou a fundar, e o frequente apoio aos alunos ciganos nas escolas de Lisboa, dedica as poucas horas que restam a investir no seu curso superior prestes a terminar. Sónia não pára um único segundo.
Regressa a casa pouco antes da hora de jantar, sobrando apenas tempo para beijar os filhos e aconchegá-los na cama. Este é o papel esperado da mulher moderna que, progressivamente, vai atrasando o casamento ao investir na sua vida profissional. Já a mãe de Sónia alerta-a que, enquanto mulher cigana, as suas prioridades deveriam ser outras: “Tu não devias ter tido o teu segundo filho porque tu não tens tempo para o criar”.
Sónia não se ressente com os comentários da mãe. Se as velhas responsabilidades da mulher estão hoje ultrapassadas em grande parte da sociedade, nas comunidades ciganas ainda permanecem, amarradas por uma cultura que atraiçoa as meninas que ambicionam a normalidade. “A mulher cigana é educada para cuidar da família, para tratar da educação dos filhos e ser o pilar da casa”, esclarece a mediadora sociocultural, acrescentando que “tudo o que sai fora disto é sair da cultura”.
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O Estudo Nacional das Comunidades Ciganas, em 2014, concluiu que a pureza da mulher, seguido do casamento segundo a lei cigana, são tradições consideradas imprescindíveis e a manter dentro da comunidade. A carreira profissional não é, portanto, vista como prioritária, o que justifica a sistemática e prematura retirada das meninas ciganas da escola. O Perfil Escolar das Comunidades Ciganas de 2018/19 reconhece estas diferenças de género: enquanto apenas 4,8% dos rapazes abandona precocemente o ensino escolar, este número sobe para 7,1% quando falamos das raparigas.
A Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP), da qual Sónia é membro-fundadora, encarrega-se não só de inverter a ainda preocupante taxa de abandono escolar, mas sobretudo de esbater a desigualdade assinalada. A iniciativa das Mulheres Ciganas conta já com mais de 20 longos anos, uma data pesada que se reflete no olhar cansado de Sónia, pois “a mudança de mentalidades leva tempo”.
A Associação nasceu de um sonho partilhado por cinco mulheres ciganas. Desde 2000 que se dedicam ao empoderamento de “mulheres-meninas”, como descreve a fundadora. Isto é, crianças e mulheres adultas, a generalidade já casadas, com filhos e algumas até com netos, todas elas forçadas a interromper o progresso educativo pelo simples facto de terem nascido mulheres.
O Setenta e Quatro visitou o novo espaço da AMUCIP, sedeado no Seixal, onde conhecemos Maria Teresa, Alda e Sónia, ciganas “com muito orgulho”, mães de três e quatro filhos e já recém-avós. Integram a AMUCIP para “se capacitar”, onde semanalmente aprendem a fazer o que mais as faz feliz: atividades ligadas à culinária, à costura e às artes.
“Gostávamos de abrir uma casa só nossa e trabalharmos juntas”, diz Maria Teresa. É uma ambição partilhada pelas três e uma vontade impulsionada pelas formadoras. Maria Teresa ficou-se pelo terceiro ano de escolaridade, enquanto as colegas Sónia e Alda conseguiram concluir a quarta classe, uma realidade estranha, mas muito comum para as comunidades ciganas.
Para a anterior presidente da REDE de Jovens para a Igualdade, Nora Kiss, o abandono das meninas ciganas é considerado “um ato necessário de preservação da identidade cigana”. No programa do Opré Chavalé a especialista em direitos humanos e igualdade de género escreve que “as mulheres que são expostas a contacto com homens não ciganos perdem o seu valor”. Catarina Marcelino, anterior secretária de Estado para a Cidadania e para a Igualdade, acrescenta que é precisamente pela proteção destas mulheres que a comunidade cigana subsiste. “Se elas começam a ter filhos com homens fora da comunidade, a comunidade desaparece”, referiu ao Setenta e Quatro.
“A comunidade cigana é o retrato da sociedade portuguesa há uns anos”, explica Vanessa Lopes.
Pressionada pela família e pela própria comunidade, também Sónia Matos foi obrigada a abandonar a escola com apenas dez anos, passando a frequentar aquilo a que denomina de “universidade da comunidade cigana”. Ou seja, “preparamo-nos para sermos esposas e donas de casa”, o único papel esperado da mulher cigana, salienta.
A extensão do ensino obrigatório até ao 12º ano, instituído em 2009, permitiu que outras raparigas, como Vanessa Lopes, chegassem um pouco mais longe, permanecendo até ao nono ano de escolaridade.
O encontro com a jovem universitária foi na Universidade Autónoma de Lisboa, antes de uma aula no estúdio de televisão. Lembra ao Setenta e Quatro que anteriormente só ia à escola para “marcar o ponto”. À habitual pergunta “O que queres ser quando fores grande?”, Vanessa parecia ser a única criança a hesitar na resposta, porque “não somos levadas a pensar nisso”.
Assim que surgiu a primeira menstruação, Vanessa testemunhou uma “proteção diferente” dos pais, apercebendo-se de que “não podia ser igual às outras meninas”. Maria Teresa confirma que as famílias ciganas são muito “pais e mães galinhas”. Alda completa, reconhecendo, no entanto, que esse sentimento de hiper proteção não é exclusivo às meninas.
É o caso do seu filho mais novo que todos os dias, sem exceção, é levado e depois trazido pelo pai até à escola quando, na verdade, vivem a poucas centenas de metros de casa. “Ele tem quase 13 anos, já é um homem”, comenta Alda sobre o exagero do marido.
Para Vanessa existe um certo receio “que sejam influenciadas pela sociedade maioritária” e, portanto, a única alternativa é serem retiradas da escola. Mesmo que contrariada, e completados os 18 anos, também Vanessa foi forçada a abandonar os estudos.
Culturalmente, é compatível ser-se mulher cigana e prosseguir com os estudos, como defende Sónia, mas para isso têm de se “adaptar à realidade desta comunidade, que não é assim tão diferente da comunidade maioritária”. De facto, em Portugal, a emancipação feminina inicia-se apenas com o 25 de Abril de 1974, uma luta pela indiscriminação que se arrasta até aos dias de hoje.
“Na ditadura, as mulheres não tinham qualquer poder”, lembra a mediadora sociocultural, recordando que o caminho pela independência feminista partiu também de uma necessidade. “Com os homens na guerra, as mulheres foram obrigadas a trabalhar para dar de comer aos filhos.”
Para Vanessa, esta realidade mostra que “a comunidade cigana é o retrato da sociedade portuguesa há uns anos”. No entanto, enquanto a sociedade portuguesa conseguiu adaptar-se aos novos tempos, a comunidade cigana ficou-se pela vida tradicional.
Na opinião de Sónia Matos, o Rendimento Social de Inserção (RSI) foi o grande promotor da mudança, não só porque “obrigou as instituições a desenharem um plano de integração da comunidade”, como também incentivou a comunidade – e sobretudo as mulheres – a participar ativamente neste contrato.
Assim como a mediadora do Seixal, também Vanessa quer provar, na primeira pessoa, que é possível manter as tradições e prosseguir com os estudos, até porque “a partir do momento em que essa ideia for desconstruída dentro da comunidade automaticamente vai servir de reflexo para o resto da sociedade”.
Vanessa foi uma das 17 mulheres beneficiárias do OPRE, um projeto criado em 2015, pelo Alto Comissariado para as Migrações, que incentiva a entrada de jovens ciganos no Ensino Superior.
Hoje, Sónia e Vanessa já não são as únicas a dar a cara pelo movimento. Os corredores da AMUCIP preenchem-se com os rostos jovens da mudança: mulheres-meninas igualmente corajosas. Os sorridentes retratos que vemos pendurados nas paredes da Associação fizeram parte de mais uma das dezenas de atividades desenvolvidas em grupo pelas raparigas que por lá passaram. Debaixo de cada fotografia, deixaram uma pequena citação. Cláudia escreve: “Pode ser mais difícil para nós, mas para as outras, mais à frente, será mais fácil”. Gisela perspetiva: “Um dia vão ver como eu vou crescer e ter o meu próprio trabalho”.
Vanessa não partilha da mesma sorte que estas mulheres que, com a ajuda da AMUCIP, não tiveram de abdicar das enraizadas tradições ciganas para ir atrás do sonho. Em contrapartida, a jovem cigana teve de optar entre os estudos e a comunidade. A determinação levou-a a escolher a área da Comunicação e, beneficiada pelo Programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE), ingressou no ensino superior em 2020.
A jovem universitária foi uma das 17 mulheres beneficiárias do OPRE, projeto criado em 2015 pelo Alto Comissariado para as Migrações, que incentiva a entrada de jovens ciganos no Ensino Superior. Através da educação, o OPRE procura esbater as barreiras que isolam a comunidade cigana, e foi através dele que Vanessa se licenciou em Ciências da Comunicação pela Universidade Autónoma de Lisboa. “Vou ser a primeira jornalista cigana em Portugal”, contou em maio de 2021 ao Setenta e Quatro.
Com o tempo, a família fez as pazes com o caminho que a filha escolheu. “No meu último ano de Licenciatura a minha mãe já andava com a minha fotografia trajada a mostrar ao bairro inteiro.” Este pequeno grande gesto foi, para Vanessa, um sinal de profunda “transformação”.
No entanto, o casamento teima em ser assunto à mesa, uma tradição que Vanessa não nega, mas também não apressa. “Não digo que isso não seja importante, mas que não seja o único propósito de vida que uma mulher possa ter”, esclarece.
Este trabalho é baseado numa outra reportagem publicada nos Repórteres em Construção, orientada por Pedro Coelho.
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