Foi repórter do Sexta às 9 da RTP e é diretor da licenciatura em Ciências da Comunicação e do mestrado em Comunicação, Redes e Tecnologias da Universidade Lusófona do Porto.

Todas as cores do arco-íris

Os fundamentos metodológicos do jornalismo de investigação foram-me dados quando me caiu nas mãos uma estória que pareceria simples mas acabou por durar quatro meses: alguns estudantes brasileiros de mestrado e doutoramento da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) não podiam concluir os estudos em Portugal, por supostamente não terem pago as propinas.

Ensaio
12 Maio 2022

Na última segunda-feira de Julho de 2006, julgo mesmo que seria o último dia do mês, descendo a pé a Rua Conceição Fernandes — que liga a rotunda de Santo Ovídio, em Vila Nova de Gaia, ao monte da Virgem, onde se situam a redacção e os estúdios da RTP Porto —, bati de frente numa porta escancarada ao desconhecido, disfarçada de chamada para o telemóvel.

Sem demoras, o meu então subdirector de Informação, Carlos Daniel, atirou: “Na quarta-feira, quero que estejas em Beirute. Sais amanhã. Diz-me sim ou não”.

Raramente o coração se estatelou aos meus pés como naquele momento. Tomei ar, acho que voltei a tomar, inspirei fundo outra vez e irrompi: “Que queres que te diga? Ainda não vi todas as cores do arco-íris…”.  Essa frase, espontânea e quente como aquele tórrido fim de tarde, num verão que veria, daí a poucos dias, gigantescos incêndios na vizinha Galiza, acompanhou-me desde então.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui. 

E, no entanto, estando absolutamente certo, estava redondamente enganado. Pensava eu que viver e relatar uma guerra, como a que o mundo via então nos ecrãs a partir do Líbano, seria a derradeira experiência do repórter. Seria o cume da montanha de onde já toda a paisagem se tornara visível, sem ocultação ou zonas de sombra. No percurso de doze anos como jornalista, achava ter já vivido tudo. Das pequenas coisas do dia-a-dia à edição em rádio, do documentário à grande reportagem em televisão.

Faltava a guerra. A vida mostrar-me-ia, com inapelável simplicidade, que aquela resposta quasi-poética não havia sido mais do que um produto da imberbe inocência da minha excessiva autoconfiança de então. Naquele verão vi a cor da guerra, sim, mas ainda ficaram por ver muitas cores e tons intermédios no arco-íris.

A metáfora da safra da azeitona é perfeita e serve, na medida certa, o jornalismo de investigação. Porque a arte dos olivais é também, e acima de tudo, a arte da paciência, da espera e do tempo.

Hoje, não me aventuro, com esta facilidade, a arriscar análises aos policromatismos da vida, muito menos munido de certezas. Não há aqui qualquer instinto daltónico de defesa. O que sei agora, que não sabia na altura, é que as cores, muitas vezes as que vêm em tons mais carregados, só nos são dadas a ver em séries longas do tempo. No meu caso, julgo que só entrei mesmo no coração do arco-íris quando comecei a fazer jornalismo de investigação.

O Sexta às 9 é um programa particular no cenário do actual jornalismo português que, por isso, na sua história de nove anos de edições semanais, já viveu uns quantos momentos igualmente particulares. Destes nove, seis são também meus embora seja assumido, por todos, que os méritos fundamentais do programa devem ser justamente creditados à jornalista que o coordena desde sempre, Sandra Felgueiras.

Sei que não me livro de toda a reactividade epidérmica que esta afirmação instala. O Sexta às 9 não é, por acaso, um caso particular no jornalismo português. É um programa onde a palavra cedência nunca existiu, o que não sucede sem consequências. Por isso, mesmo no meio jornalístico, há quem lhe exalte as virtudes e quem lhe arrase os defeitos.

Mas de uma coisa, hoje, estou certo: independentemente das circunstâncias e de quem as cria e vive, nenhum repórter pode dizer que viu todas as cores do arco-íris se não estiver a fazer, ou se nunca tiver feito, jornalismo de investigação. E, quanto a isso, não tenho dúvidas: no Sexta às 9 não se faz outra coisa.

Nestes seis anos apareceu-me de tudo mas o que mais me desafiou e, ao mesmo tempo, mais gozo me deu, foram os grandes dossiês, temas em que pegamos numa ponta e demoramos meses a chegar à outra. Os cidadãos não se esquecerão facilmente do trabalho incessante e incessantemente independente que fizemos, em 2019, à volta da concessão da exploração de lítio em Montalegre, que envolveu altas figuras do actual governo e um cruzamento demasiado coincidente para se poder falar de mera coincidência entre os interesses locais do PS e as empresas, algumas constituídas à pressa, do empresário beneficiário da concessão.

Mas os fundamentos metodológicos desse trabalho foram-me dados, em modo de aprendizagem rápida de quase tudo, uns anos antes, quando me caiu nas mãos uma estória que, vista de relance e à partida, pareceria simples: as queixas de alguns estudantes brasileiros de mestrado e doutoramento da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) que, por supostamente não terem pago as propinas, não podiam concluir os estudos em Portugal.

Esta informação originou uma investigação que durou quatro meses. Tão complexa que foram necessárias cinco peças jornalísticas, emitidas nesse período, algures entre o final do verão e o Natal de 2016, que ocuparam ao todo cerca de duas horas e meia em antena, construídas sucessivamente como se de um puzzle maior se tratasse. Tão complexa que, na peça final, contei a dedo cada uma e cada um dos visados: mais de quarenta.

Para desmontar o esquema de interesses e actores que a investigação revelou, tive de aprender a arte própria da safra dos extensos olivais transmontanos e alentejanos: agitar a oliveira, fazendo cair as azeitonas para, então, colhê-las. A metáfora é perfeita e serve, na medida certa, o jornalismo de investigação. Porque a arte dos olivais é também, e acima de tudo, a arte da paciência, da espera e do tempo. Há um momento certo em que, agitada a árvore, o fruto cai. É sempre preciso preparar o terreno para beneficiar depois da colheita. Nunca antes tinha tido necessidade de usar este método: obter informação a partir de uma gestão editorialmente criteriosa da informação antes obtida e publicada.

Professores da UTAD teriam um acordo secreto com empresas-fanstama de angariação de estudantes brasileiros e beneficiariam directamente desse acordo, engordando contas bancárias que tinham aberto no Brasil.

Foi assim que o trabalho nasceu, da reflexão da equipa do programa relativamente aos dados que fomos desbravando. Comecei pelo óbvio: escutar as queixas, registar a sua essência, perceber as suas regularidades e confrontar a instituição sediada em Vila Real. A informação inicial estava travestida de uma suposta objectividade inapelável: quem não paga as propinas a uma instituição de ensino superior, não pode fazer um curso e, muito menos, obter um grau académico. O problema, primeira regularidade do caso, é que todos os estudantes garantiam ter pago e mostravam as provas. Milhares de euros, liquidados por transferências bancárias realizadas no Brasil.

A universidade portuguesa, por seu lado, garantia que nunca havia recebido. A denúncia parecia apontar num só sentido: as empresas intermediárias que haviam angariado estes estudantes, todas formadas no Brasil por anteriores estudantes de mestrado e doutoramento na UTAD. Foi esta a ementa servida inicialmente no Sexta às 9, no final do mês de Setembro de 2016. Sabíamos, contudo, que nem a ponta do véu estávamos a levantar. Mesmo assim, decidimos correr o risco. Abanámos a árvore.

Uma semana e meia depois, caiu-me na caixa de e-mail, de madrugada, o primeiro fruto. Um remetente anónimo, inverificável quanto à origem, explicava num longo texto um esquema totalmente distinto da estória que inicialmente contaramos: professores da UTAD, alguns deles altos responsáveis da instituição, teriam um acordo secreto com essas empresas intermediárias de angariação de estudantes e beneficiariam directamente desse acordo, engordando contas bancárias que tinham aberto no Brasil e comprando propriedades onde era normal gozarem férias.

O e-mail era anónimo, mas as pistas concretas que forneceu tornaram-se fundamentais: números de contas bancárias, nomes e moradas de empresas-fantasma constituídas para ocultar o verdadeiro propósito, localização de casas de férias e a indicação dos proprietários.

Todos os dados foram confirmados. A partir daí, passou a ser a tempestade a agitar a oliveira. As fontes de informação diversificaram-se e multiplicaram-se. Através dessas fontes, a investigação do Sexta às 9 conseguiu, então, acesso a inúmeros documentos internos da UTAD que, cruzados com documentos obtidos externamente, alguns deles provas de depósitos e de transferências bancárias, permitiram provar, sem margem para dúvidas, o modus operandi e os actores principais e secundários de todo o enredo que, durante anos, escapara aos mecanismos institucionais de verificação da própria universidade.

Só nas provas directamente reunidas pelo Sexta às 9 foi possível constatar um rombo nas contas da instituição de mais de meio milhão de euros. Uma auditoria pedida pela UTAD à consultora Deloitte calcularia o buraco em mais de um milhão e seiscentos mil euros.

O caso, que provocou logo a demissão de um dos vice-reitores da instituição, está, ainda hoje, a ser investigado pelo Ministério Público português, após a realização de várias fases de buscas pela Polícia Judiciária na UTAD, em residências de antigos e actuais professores da instituição e nas moradas de alguns dos intermediários brasileiros.

Agitar a árvore e esperar que os frutos caiam. Afinal, há cores que o arco-íris só revela quando aprendemos a arte da espera, da paciência e do tempo. Ninguém faz boa safra aonde não se possa demorar.

Luís Miguel Loureiro escreve segundo o antigo acordo ortográfico.

Este testemunho foi originalmente publicado no Manual de Reportagem REC, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e editado pelos Livros Labcom em 2021.