As bolas de fogo

Havia um fogo. Mais um de verão quente. Era em Pedrogão Grande. Agarrei as máquinas fotográficas, o portátil e a chave do carro. Pela estrada vou a ouvir a TSF. Dois mortos. Daqui a uns quilómetros dezasseis mortos. Percebo que não é um qualquer incêndio de verão.

Ensaio
24 Março 2022

Acho que não tenho vocação para jornalista ou fotojornalista. É só uma questão de baptismos. A essência é a mesma. Nunca pensei sê-lo. Mentira. Quando via o Jornal de Notícias do meu avô e ficava parado a ver as fotografias de futebol, pensava para comigo, que sorte tinham aqueles fotógrafos que viam os jogos de borla. Sonhava ser como eles. Mal eu sabia que um dia também ia à bola e que para mim ia ser um pesadelo. Felizmente acabaram as idas aos inflamados estádios. A idade tenra é sempre fértil em inocências.

Sou jornalista por acidente. Dei um pontapé numa pedra e numa manhã de Dezembro estava na redação do Público na Quinta do Lambert em Lisboa. Grandes nomes. Grandes vultos. Andavam entre salas, computadores e telefones num frenesim parecido com um carrocel mega moderno. Daqueles que nos põem a cabeça a andar à roda. Também eu fiquei atordoado só de ver. Depois entrei no carrocel e nunca mais de lá saí. Vinte e três anos sem descanso.

Não tinha vocação. Acho que continuo a não ter. Ou a pouca que tenho fui adquirindo no meio de tanta dor de cabeça e de tanto enjoo. O que é certo, é que não consigo sair do carrocel. O jornalismo é como uma “broca”. Pode-se ficar agarrado. E o que mais me atrai é que não há dias iguais. São trezentos e sessenta e seis dias diferentes. Não estou numa secretária a fazer balancetes ou numa fábrica a contar parafusos. Estou onde há histórias. Na rua, no hospital, no incêndio, na guerra, na praia, no céu…

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI. 

Não coleciono bilhetes de avião nem cartões de creditação. Não coleciono recortes de reportagens nem cartões de visita. Coleciono fotografias de histórias que nos marcam. Umas pouco, outras muito, e umas tantas, para toda a vida. Um jornalista está sempre em processo de mutação. Aprende muito. Vê o que a maioria não vê. Interpreta o que o rodeia. E o mais importante, interroga tudo. E isso é bom. Não existem certezas absolutas. E um jornalista não pode ficar sentado na redacção refém das novas tecnologias da comunicação. Um jornalista tem de andar à solta. Como um falcão. E do alto ver o mundo num todo e histórias em particular. Depois, contá-las ao mundo. E o mundo muda ou não muda. Quase sempre parece ficar igual.

Num fim de tarde, com as tílias a refrescar, recebo uma chamada do Amílcar Correia. Havia um fogo. Mais um de verão quente. Era em Pedrogão Grande. Voltei a casa pelo mesmo passeio que me levava ao São João. Agarrei as máquinas fotográficas, o portátil e a chave do carro. Pela estrada vou a ouvir a TSF. Dois mortos. Daqui a uns quilómetros dezasseis mortos. Marcelo Rebelo de Sousa vai a caminho de Lisboa. Percebo que não é um qualquer incêndio de verão. Acelero com o GPS a auxiliar.

Na noite, uma fila de luzes brancas e vermelhas. A polícia não me deixa passar. Está tudo a arder. Mostro a Carteira Profissional. De nada vale. Volto para trás. Ligo para o jornal. Volto a tentar. Dois jovens suplicam ao polícia. Somos bombeiros. Temos de ir ajudar. Encosto-me a eles. Vão lá, mas com cuidado – diz o polícia. Também fui.

As portas do inferno abriram-se para mim. Toda a noite atrás do monstro. Sozinho. Entre serras e bolas de fogo. Entre automóveis desfeitos e corpos carbonizados. Entre lágrimas e o teclado do computador. Entre o desespero da guerra. Só queria mostrar ao mundo o que se estava ali a passar. Só terminei passado dois anos. O sofrimento não pode ser tratado de passagem. Ficam as feridas. Ficam as cicatrizes. Ficam as pessoas. E nós, jornalistas, devemos estar onde elas estão. Depois das bolas de fogo muitas histórias ficaram por contar. Foi isso que fiz.

Ser jornalista é estar sempre disponível. Quase sempre. Não somos robôs. Somos humanos. Mas é ter o peito sempre aberto. Elevar a dignidade mais alto. Ser jornalista é ser feliz.

Este testemunho foi originalmente publicado no Manual de Reportagem REC, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, e editado pelos Livros Labcom em 2021.