NOVA PORTUGALIDADE
A Nova Portugalidade é uma associação nacionalista que se dedica ao combate cultural e político-ideológico para defender uma visão mitológica da história de Portugal e do modo de ser e de estar dos portugueses no mundo. A colonização é apresentada como o auge e o momento de maior sublimação do país no mundo, ignorando a escravatura e os massacres de povos indígenas.
“A Nova Portugalidade tem como objeto atividades de produção e difusão da história de Portugal, da cultura Portuguesa e da preservação do património português no mundo”, lê-se nos estatutos da associação, nos quais definiu como desígnios “realizar a união entre os povos da Portugalidade” e “preservar e expandir a civilização portuguesa em todas as partes do mundo”.
“Portugalidade é a grande família humana que Portugal criou pelo mundo. É uma civilização autónoma; é, também, uma verdadeira síntese de culturas, pois ergueu-se do encontro entre a Europa, a África, a América e a Ásia. De todas recebeu contributo e a todas o deixou” – Quem Somos da Nova Portugalidade
O projeto político-cultural e ideológico da Nova Portugalidade é evidente: entrar na guerra das ideias e no combate cultural, tentando conquistar espaço próprio nas universidades para divulgar a sua visão mitológica da história do país, para reescrever a História.
Um trabalho semelhantemente empreendido pelo Integralismo Lusitano no início do século XX, e pelos seus herdeiros ao longo do Estado Novo e do período democrático.
Para a associação, a “Portugalidade é a grande família humana que Portugal criou pelo mundo. É uma civilização autónoma; é, também, uma verdadeira síntese de culturas, pois ergueu-se do encontro entre a Europa, a África, a América e a Ásia. De todas recebeu contributo e a todas o deixou”.
Mas há mais. “A Portugalidade é o resultado desse processo multissecular de descoberta, aproximação, construção e sonho partilhado; síntese de continentes e culturas, irmanando homens da Amazónia a Timor e recobrindo todos os géneros humanos, ela engloba todas as cores e todos os credos”, lê-se na carta de princípios da associação.
Criada em fevereiro de 2016, a Nova Portugalidade começou como página de Facebook para contrariar a “tentativa de aproveitamento político da História de Portugal” e combater as “deturpações de que hoje é objeto”, afirmou o presidente da associação Rafael Pinto Borges ao Notícias Viriato, um site português de extrema-direita. “Tivemos um enorme sucesso com essa visão alternativa.”
O primeiro passo para sair da rede social para o mundo real foi com a organização de debates na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa pela mão de Pinto Borges, saudosista do ditador António Oliveira de Salazar e do Estado Novo.
O grupo surgiu pela primeira vez nas notícias na sequência do cancelamento do debate com Jaime Nogueira Pinto, professor universitário e um dos principais ideólogos da extrema-direita portuguesa.
No início de março de 2017, a Associação de Estudantes da FCSH recusou em reunião-geral de alunos disponibilizar uma sala para que o evento acontecesse e o diretor da faculdade, Francisco Caramelo, decidiu cancelar definitivamente o debate por razões de segurança.
Estalou a polémica e a Associação de Estudantes ficou sob o fogo dos órgãos de comunicação social, dos partidos da direita tradicional e da extrema-direita. Foi acusada de ter posto em causa a liberdade de expressão e o CDS-PP levou o assunto ao Parlamento, denunciando a decisão da instituição estudantil.
O Partido Nacional Renovador (PNR, hoje Ergue-te!) convocou uma manifestação em frente à FCSH contra o cancelamento do evento e em apoio à Nova Portugalidade. Esta, pela voz de Rafael Pinto Borges, em entrevista à SAPO24, caracterizou o PNR como partido “racista, xenófobo e contrário à sensibilidade portuguesa”.
A partir daí, a Nova Portugalidade começou a estruturar-se mais seriamente, estabelecendo rede entre os sectores conservadores católicos e monárquicos, incluindo académicos, e apostando na rede social Facebook com publicações a louvar mitologicamente a história de Portugal no mundo. Além disso, organizou a 28 de outubro de 2017 o seu primeiro congresso nas Caldas da Rainha – teve mais dois congressos até setembro de 2020, com o último a ter 28 associados presentes.
Meses depois, a 27 de julho de 2018, Rafael Pinto Borges, Rafael Pina de Castro Navarro e Hugo Dantas registaram, na conservatória de Mafra, a Associação Nova Portugalidade, de acordo com a escritura da sua legalização. Uma outra figura de proa da associação é Miguel Castelo Branco, antigo presidente da Força Nacional-Nova Monarquia (a similaridade de nomes não é por acaso) e que trouxe a Portugal Blas Piñar, da espanhola Frente Nacional.
A Nova Portugalidade estabeleceu laços próximos com D. Duarte de Bragança. O pretendente ao trono português presidiu à conferência “Os Jesuítas em Portugal: Um Projeto do Tamanho do Mundo”, e deu, acompanhado por membros da associação, uma entrevista para o documentário A Última Cruzada, produzido pelo Brasil Paralelo, empresa que produz documentários com narrativas da nova direita e cristianismo.
A empresa foi acusada de difundir notícias falsas e de distorcer factos históricos relativos à ditadura militar, à escravatura e à colonização do Brasil. Também é acusada de difundir teorias da conspiração e posições negacionistas da pandemia de covid-19. Apesar de se afirmar “independente”, membros da Brasil Paralelo tiveram acesso privilegiado à tomada de posse de Jair Bolsonaro, em 2018.
Não é o único contacto de D. Duarte de Bragança com o Brasil. Em agosto de 2020, o pretendente recebeu na sua residência oficial, em Sintra, Diogo Pacheco de Amorim, ex-membro do MDLP e antigo vice-presidente do Chega, e o deputado italiano Luis Roberto Lorenzato, próximo de Bolsonaro e de Matteo Salvini, noticiou o Expresso. Ventura pediu ajuda a D. Duarte para promover o Chega no palco internacional, mais especificamente junto do presidente brasileiro de extrema-direita e do circuito conservador a ele associado.
A Nova Portugalidade, criada por elementos que passaram pelo CDS-PP (como o próprio Rafael Pinto Borges) e pelo circuito monárquico, estabeleceu ligações aos democratas cristãos, ou a uma das suas alas mais conservadoras. Em março de 2018, a associação agradeceu publicamente a Abel Matos Santos, na altura líder da Tendência Esperança em Movimento e que entretanto abraçou o Chega, por “levar a causa da Portugalidade ao congresso do CDS”.
As atividades da associação não se têm limitado a debates. Em 2016, a Nova Portugalidade avançou com a petição “Preservar a Praça do Império é defender a Portugalidade”. Em causa estava a substituição de brasões florais com armas das antigas colónias por relva na Praça do Império. A petição recolheu pouco mais de duas mil assinaturas e entre os proponentes estavam nomes como o de Jaime Nogueira Pinto, Miguel Castelo Branco, o padre Mário Tavares de Oliveira, Filipe Anacoreta Correia e Abel Matos Santos.
Dois anos depois, em 2018, a Nova Portugalidade voltou a optar pela via da petição como disputa da narrativa histórica. Juntou-se a outras organizações do género, como a Associação Coração em Malaca, para avançar com uma petição à Assembleia da República e Assembleia Municipal de Lisboa em defesa da criação de um Museu dos Descobrimentos, da Expansão e da Portugalidade.
Teve pouco mais de 1500 assinaturas, mas permitiu-lhe entrar no debate acerca da designação a adotar para o museu sobre a expansão colonial portuguesa, uma vez que o nome “Museu das Descobertas”, presente no programa eleitoral de Fernando Medina de 2017, deu azo a polémica.
O mito da Portugalidade
O conceito de Portugalidade assenta numa conceção essencialista, ontológica e teleológica da nacionalidade e da nação. Foi principalmente forjada por intelectuais ligados à poesia e à literatura, com o intuito de instituir, a partir da sua visão da história e mundividência, um modo de ser e de estar dos portugueses no mundo.
Modo esse que teria encontrado o seu auge e momento de maior sublimação durante os séculos da colonização, ignorando os crimes da escravatura e os massacres de povos indígenas.
O conceito está ainda alicerçado numa visão providencialista do papel dos portugueses e de Portugal no mundo e é tema recorrente nas variadas reflexões sobre a identidade nacional. E não é uma problemática exclusivamente portuguesa, pois a dimensão mitológica está também patente em muitos outros países: dos gregos com a Grécia Clássica, passando pelos nórdicos vikings, aos italianos e o Império Romano.
O investigador José Manuel Sobral reconhece o papel dos intelectuais na elaboração deste mito providencialista associado a Portugal e aos portugueses, atribuindo um papel crucial ao padre António Vieira (daí a defesa intransigente desta figura pela Nova Portugalidade) e à sua teoria dos “argonautas apostólicos”. Nesta, os portugueses “cumpririam a sua missão providencial de derrotar os inimigos do Cristianismo, fundando um Quinto Império, que marcaria o seu triunfo universal”, lê-se na obra Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional.
No fundo, por detrás de ideias como a lusofonia – e não sendo comum a todos os seus defensores –, está a convicção profunda da língua portuguesa como Quinto Império, como a concretização imaterial do destino imperial e civilizador de Portugal, da sua natureza atlântica e pluricontinental, de voltar a fazer dele um grande império, agora linguístico e espiritual.
Esta representação providencialista da história portuguesa, da missão civilizadora que aos portugueses caberia no mundo e da conceção de que o destino nacional se cumpre na presença além-mar, uma vez perdidas as antigas colónias em 1974-1975, dará lugar a um novo mito salvífico da grandiosidade do país: a lusofonia.
Com a Revolução de Abril e independência das antigas colónias, os defensores da dita portugalidade optaram pela língua como o grande fator de “grandeza” de Portugal no mundo, o grande aglutinador. No entanto, com o exaltar da língua, adverte o professor universitário Alfredo Margarido na obra A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses, “os colonialistas pretendem em primeiro lugar reduzir as qualidades das línguas Outras, operação que permite cobrar um ágio aos utilizadores da língua nobre”.
“O princípio seria este: quem, não sendo português, utiliza a língua portuguesa, deve exaltar a tarefa dos portugueses, renunciando a qualquer operação historicamente crítica. Nesta construção mistificadora, os portugueses não recebem, nem exigem, nem roubam nada. São eles quem dá tudo: a civilização, a religião, a cultura, a língua, os subsídios, quando não os capitais”, escreveu Margarido.
Qualquer doutrina de cunho nacionalista assenta numa perceção particularista da forma de ser e de estar, da missão e do destino do país. No imaginário do nacionalismo português, a esta noção soma-se, em virtude da reduzida dimensão geográfica e populacional da antiga metrópole imperial e de um passado ligado à exploração colonial de territórios espalhados pelo globo, a convicção de que a pátria portuguesa se realiza exclusivamente no cumprimento da sua pretensa vocação marítima, pluricontinental e evangélica.
Tal como em qualquer outro nacionalismo, também a direita portuguesa procurou reproduzir e enriquecer a narrativa que atribui méritos e características excecionais e únicas à pátria e justificar o colonialismo português, sobretudo no seu último estádio, à luz de um espírito eminentemente humanista que teria guiado sempre os portugueses na relação com o seu império colonial.
Porém, sob este mantra de respeito e de igualdade entre todos os homens que vivessem debaixo da bandeira do império, detetam-se constantemente no discurso direitista sinais de evidente racismo e xenofobia, sobretudo em relação aos povos africanos – seja pela exclusão destes atores na narrativa histórica ou pelo branqueamento dos crimes coloniais.