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A teia de influências de Luís Filipe Vieira ia além fronteiras. Moçambique é um caso flagrante: o Setenta e Quatro teve acesso a dezenas de e-mails que demonstram que o ex-presidente do Benfica usava o clube para beneficiar os seus negócios em Maputo.
Dia 28 de janeiro de 2013, segunda-feira. São 16h35. O e-mail do funcionário do Benfica começa com um “Se faz favor”. Mas na realidade é uma ordem vinda do topo da hierarquia benfiquista: é preciso reservar quatro bilhetes para o camarote presidencial, foi o próprio Luís Filipe Vieira que os prometeu depois de lhe “safarem” vistos para Moçambique para 10 trabalhadores da Promovalor, refere o funcionário do clube da Luz. Um deles é Tiago Vieira, filho do ex-presidente do Benfica.
A SIC e o Setenta e Quatro, que trabalham em parceria nesta investigação iniciada em maio de 2021, tiveram acesso a 10 e-mails em que se solicita a reserva de bilhetes no camarote presidencial do Estádio da Luz para a embaixada de Moçambique, entre janeiro de 2013 e maio de 2014. Estes e-mails coincidem com a altura em que Luís Filipe Vieira começou o processo de internacionalização da Promovalor para Moçambique.
Esta é mais uma prova que obtivemos de como Luís Filipe Vieira usava o Benfica para beneficiar os seus negócios.
Em oito desses e-mails, Jaime Dias, na altura secretário da embaixada moçambicana, era o destinatário dos bilhetes. “Há vezes que lá vou na qualidade de representante do embaixador ou da embaixada”, diz-nos o antigo secretário da embaixada, por telefone. “Há uma relação que decorre desde os grandes tempos do Eusébio, com as entidades moçambicanas.”
Jaime Dias tinha o pelouro do desporto na embaixada de Moçambique. “Em 2013, por exemplo, o embaixador que lá estava não era muito apreciador de futebol”, conta-nos. “Sempre que havia bilhetes para o embaixador eu é que ia.” Mas também pedia bilhetes fora da esfera diplomática. “Havia convites que eram distribuídos pela porta 18. Eu, pessoalmente, também tinha interesse de ver um jogo ou outro. E pedia, se a lista de pessoas convidadas não estivesse cheia”, admite.
Luís Filipe Vieira oferecia bilhetes para o camarote no Estádio da Luz para obter favores que o ajudassem nos negócios imobiliários.
Quanto aos vistos, Jaime Dias garante-nos que isso não fazia parte das suas tarefas; e que nunca facilitou a atribuição de vistos para pessoas da esfera de Vieira: “Não. Nem era preciso fazê-lo porque eles já hão de obter o visto. Através de mim não fazia sentido nenhum, porque não era o responsável pelo consulado [entidade responsável pela atribuição de vistos]”.
O Setenta e Quatro e a SIC receberam uma nova tranche de 30 mil ficheiros, 45 gigas de informação, sobre a Promovalor, empresa de Luís Filipe Vieira. Estes novos dados, cruzados com a primeira fuga de mil ficheiros a que tivemos acesso e que foi a base dos primeiros episódios e artigos, permite-nos olhar para a empresa de Vieira com outra lente.
Estávamos nos idos de 2013, em março, quando o BES se propunha a apoiar a internacionalização da Promovalor para Moçambique. A justificação era a mesma para a instituição de Ricardo Salgado apoiar a aventura do grupo de Vieira no Brasil: era necessário diversificar a carteira de projetos da Promovalor, pois o mercado imobiliário português havia desacelerado, colheita da crise das dívidas soberanas e da entrada da troika no país.
Moçambique era um mercado emergente – tal como o Brasil – e as perspetivas eram otimistas, um tom comum em todos os documentos que tivemos acesso sobre a relação do BES com a Promovalor. Nos documentos desta altura, era a Odebrecht, gigante da construção brasileira, principal empresa visada na operação “Lava Jato”, que se afigurava como potencial sócia da Promovalor neste investimento. O BES tinha também “conhecimento do desenvolvimento de contactos” com a Rioforte. Pudera: a Rioforte era o braço não financeiro do Grupo Espírito Santo.
A joia da coroa em Moçambique seria o projeto na avenida Julius Nyerere, o edifício Platinum, com 40 mil metros quadrados de área bruta acima do solo. Vieira queria deixar a sua marca em Maputo “para além do tempo”: o edifício multifuncional (também teria uma dimensão habitacional) devia ser “um elemento dinamizador” da capital moçambicana que “pudesse ser considerado um ícone” e “gradualmente assimilado como seu património urbanístico e arquitetónico”.
O outro projeto seria um edifício na avenida Mártires Machava. Chegou a ser aprovado pela câmara municipal de Maputo e teria 24 mil metros quadrados de área bruta acima do solo, mas nunca chegou a ver a luz do dia.
Para começar, o BES tinha de financiar, como em todos os projetos imobiliários relevantes da Promovalor. O primeiro crédito a que tivemos acesso, constante no documento citado, foi de 2,8 milhões de euros, para adquirir o terreno do edifício Platinum.
Chegamos a maio de 2013 e percebemos que a Odebrecht foi posta de lado – a MMD, de Abdul Ibraimo, filho do futuro presidente do conselho de administração do Moza Banco, foi a primeira sócia da Promovalor neste projeto. Mais tarde, em 2014, seria a Mota Engil a parceira da Promovalor, com Ibraimo de saída. A Rioforte chegou a deter 30% da Promovalor Moçambique, a holding do grupo de Vieira naquele país, mas saiu logo após a queda do BES.
Vieira também teria a ajuda do Moza Banco, instituição detida a 49% pelo BES, para levar o projeto avante. Os financiamentos do Moza Banco, claro, eram garantidos pelo BES. O pai de Abdul Ibraimo seria anunciado presidente do conselho de administração do Moza Banco meses mais tarde. Mas nesta altura – maio de 2013 – quem comandava os destinos deste banco moçambicano era Inaete Merali.
Tivemos acesso a quatro e-mails de Inaete Merali a solicitar bilhetes para o camarote presidencial, entre 2016 e 2017, uma altura em que já não se encontrava no Moza Banco. “Enquanto presidente da comissão executiva não tive nenhuma operação com a Promovalor. Sabia que havia projetos imobiliários a executar em Moçambique, chegámos a falar sobre isso. Mas aquando da minha saída não havia uma única operação ativa no Moza Banco”, garante-nos Merali.
Antes de iniciar a internacionalização da Promovalor para Moçambique, Vieira fez amizade com o então CEO do Moza Banco. “A nossa relação de amizade surgiu em 2010. Gosto muito dele. Mas não tenho nem nunca tive nenhuma operação comercial ou financeira com o grupo”, diz-nos Merali. “Não tenho uma bola de cristal mas felizmente, hoje em dia, olhando para trás, eventualmente fui protegido pela sorte”.
E sorte teve Merali.
A história da aventura de Luís Filipe Vieira em Moçambique é a mesma de que em todo o seu percurso como empresário no ramo imobiliário: de ascensão e queda. E há sempre uma linha que separa estas duas dimensões da história – a queda do BES.
A partir daí tudo desabou. Atrasos no calendário de vendas, prorrogações nos financiamentos, encargos de juros insuportáveis, desaceleração económica e instabilidade política em Moçambique e a queda no valor da moeda local. Até falta de dólares chegou a haver, necessários na economia moçambicana. A dívida, essa, esteve sempre em curva ascendente.
Tudo o que, um ano antes da resolução do BES, a Promovalor e o banco não previam que acontecesse. Moçambique era descrito nos documentos a que tivemos acesso como tendo uma economia pujante, dotada de um mercado imobiliário em ascensão, recheado de matérias-primas para explorar e a estabilidade política necessária para o fazer. Maputo estava com sede de escritórios.
Os projetos moçambicanos acabaram por entrar no saco do Fundo de Investimento Alternativo e Especializado (FIAE), criado para reestruturar a dívida de Vieira. Este fundo foi o resultado das negociações entre a Capital Criativo, hoje C2 Capital Partners, de Nuno Gaioso Ribeiro, ex-vice-presidente do Benfica, e o Novo Banco.
Por uma dívida de quase 18 milhões de euros, Vieira pagava 27,5% de juros ao Moza Banco, o equivalente a 1,1 milhões de euros por semestre.
As negociações iniciaram-se no final de 2015, mas é em abril de 2016 que há a primeira reunião sobre a constituição do FIAE. O objetivo deste era desenvolver os terrenos da Promovalor para, assim, gerar valor e pagar uma parte da dívida de Vieira.
Os ativos em Moçambique – Mártires Machava e o edifício Platinum – representavam cerca de 21% dos ativos integrados no FIAE. Em 2016 esperava-se que gerassem um cash-flow de 38,93 milhões de euros.
Chegados ao final de 2017, a realidade era outra: pouco depois da formalização do fundo, em novembro de 2017, o edifício Platinum tinha uma dívida de quase 18 milhões de euros. Os juros que pagavam ao Moza Banco eram astronómicos: 27,5%, o equivalente a 1,1 milhões de euros a cada semestre.
Quando o Platinum entrou para o FIAE, a parte residencial tinha 60 das 73 habitações vendidas. E como o Moza Banco tinha a primeira hipoteca sobre o Platinum, para pagar a dívida de 9,8 milhões de dólares (8,9 milhões de euros) o FIAE teve de entregar em dação em pagamento 13 frações habitacionais, duas lojas e 1 milhão de dólares ao banco moçambicano. As habitações tiveram ainda um desconto médio de 31% na dação em pagamento.
Na Comissão Parlamentar de Inquérito, Nuno Gaioso Ribeiro desfez-se em elogios ao edifício Platinum. “O melhor edifício de escritórios em Maputo”, enalteceu.
O tom em 2018, todavia, era outro. Um documento do FIAE de janeiro deste ano fazia uma análise tenebrosa ao estado do mercado imobiliário moçambicano. O mercado estava saturado, o setor da energia estava a crescer mas as suas empresas não precisavam de escritórios, a bolha imobiliária agravara-se devido ao excesso de oferta, os preços praticados no mercado de escritórios estavam ao desbarato. O preço do metro quadrado era muito baixo: 25 dólares, quando em janeiro de 2018 Lisboa registava preços médios acima dos 2600 euros.
Resumindo: o Platinum e o projeto na avenida Mártires Machava dificilmente gerariam os mais de 38,9 milhões de euros contidos na previsão para criar o FIAE.
Em 2022, as frações que restavam do Platinum deviam ser alienadas. Mas o FIAE não consegui atingir este objetivo: “Após resolução satisfatória e com poupanças quantificadas de complexos litígios que impendiam sobre esses ativos, o edifício Platinum está em exploração e a sociedade gestora tem promovido a comercialização e o arrendamento de frações/escritórios, o que tem conseguido mesmo em condições complexas de mercado em Moçambique”, respondeu-nos o conselho de administração da C2 Capital Partners, por escrito.
A influência de Luís Filipe Vieira em terras moçambicanas, essa, manteve-se. No início de 2017, o funcionário do Benfica pedia um bilhete para o camarote presidencial para um empresário moçambicano do ramo imobiliário. O presidente do Benfica tinha autorizado por sms.
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