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O FIAE foi criado para reestruturar a dívida de Luís Filipe Vieira, apesar de 55,8% ter ficado de fora. Visitámos 18 dos 23 terrenos integrados no FIAE e verificámos que têm vindo a descer abruptamente de valor.
Da Estrada de Monte Gordo, que nos leva até ao miradouro com o mesmo nome, vê-se o rio Tejo. A Leste está a Ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira. Ao longe, contempla-se a planície a separar o município de Benavente do rio e a Norte vemos a encosta de Monte Gordo. Neste terreno repleto de calcário frágil lê-se: “Zona de Caça Municipal”.
“[O terreno] Não tem capacidade edificativa e há problemas geotécnicos e geológicos naquela zona”, explica-nos o ex-presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, o socialista Alberto Maia Mesquita, acrescentando que o município teve de “demolir lá dois prédios”. “As instruções que foram dadas são que naquela zona não se devia construir nada”, continua o ex-autarca. “Pode-se construir, mas as exigências da Câmara Municipal são de tal forma elevadas que eu não sei se, em termos económicos, faz sentido.”
O Fundo de Investimento Alternativo e Especializado (FIAE) foi criado para reestruturar 218,7M€ dos 494,5M€ da dívida total de Luís Filipe Vieira ao Novo Banco. Pelo terreno de Monte Gordo, adquirido pelo FIAE por 31,85 mil euros, o fundo esperava gerar, em 2020, 14,2 mil euros: uma quebra de 58% em relação ao valor de aquisição.
De fora do FIAE ficaram os 160M€ das VMOC, obrigações emitidas em 2011 pela Inland (70M€) e pela Promovalor (90M€); e a dívida de 84,5M€ da Imosteps, a empresa que detém os cemitérios no Rio de Janeiro. Ou seja: 55,8% da dívida de Vieira ficou de fora do processo de reestruturação.
Para reestruturar a dívida da Promovalor, o grupo imobiliário do ex-presidente do Benfica, o Novo Banco tornou-se sócio do FIAE e é o seu maior acionista, com 96% das ações. Luís Filipe Vieira detém 3,4%, o grupo Promovalor 0,35% e a C2 Capital Partners igualmente 0,35%.
O FIAE tem quatro hierarquias diferentes de unidades de participação, que vão desaparecendo à medida que a dívida for paga. Tem ainda dívida bancária que não foi convertida em unidades de participação, garantida por ativos do FIAE em Portugal, no Brasil e em Moçambique, que é o primeiro valor a ser pago no FIAE com a venda ou o desenvolvimento dos terrenos.
A instituição ainda liderada por António Ramalho aumentou a sua exposição ao grupo de Vieira quando constituiu este fundo, em novembro de 2017, em 9,9M€ (antes e depois da constituição do FIAE).
O Fundo de Resolução, ao abrigo do Acordo de Capitalização Contingente, mecanismo criado para salvaguardar o interesse público quando o Novo Banco foi vendido à Lonestar, teve uma palavra a dizer sobre o FIAE. Quando o Novo Banco pediu autorização para avançar com a criação do fundo, o antigo Banco Espírito Santo já tinha aprovado o FIAE em comissão executiva.
Fonte oficial do Fundo de Resolução queixa-se do tipo de dados prestados pelo banco liderado por António Ramalho: “A informação do Novo Banco nem sempre apresenta os padrões desejáveis”.
A Capital Criativo (hoje, C2 Capital Partners) é uma sociedade gestora de capital de risco, gerida por Nuno Gaioso Ribeiro. Gaioso Ribeiro foi vice-presidente do Benfica durante oito anos, entre 2012 e 2020. Quando decorriam as negociações para a criação do FIAE, a Promovalor detinha 10% da entidade gestora de capital de risco gerida pelo antigo vice-presidente do Benfica. Tiago Vieira, filho do ex-presidente do clube da Luz e sócio e administrador da Promovalor, manteve-se acionista da Capital Criativo após a criação do fundo. Acabou por vender a posição na sociedade de Nuno Gaioso Ribeiro por 510 mil euros, segundo a carta de esclarecimentos enviada por Luís Filipe Vieira à Comissão Parlamentar de Inquérito.
Na altura em que o FIAE foi criado, a Capital Criativo aumentou o seu volume de negócios em 50%, com uma remuneração mínima garantida de 600 mil euros por ano: 15M€ em 25 anos.
O Novo Banco admitiu-nos que não foi conduzido um processo de seleção competitivo para escolher a Capital Criativo. “Foi uma condição necessária para podermos concretizar a reestruturação”, disse-nos Carlos Brandão, porta-voz do Novo Banco. Luís Filipe Vieira não aceitaria outra entidade gestora? “Nas negociações, foram postas como uma condição para realizar a reestruturação”, responde-nos Brandão. E o Novo Banco cedeu? “E o Novo Banco cedeu.”
Na sala onde foi anunciada a resolução do BES, Duarte Alves critica o processo de seleção da entidade escolhida para reestruturar a dívida da Promovalor. “Criar este fundo foi uma decisão do Novo Banco apenas com base numa proposta da Capital Criativo, suportando essa decisão em apresentações feitas pela [própria] Capital Criativo, sem nunca ter procurado outras soluções”, disse o deputado do PCP. “Ficou demonstrado que o Novo Banco teve várias decisões em que manteve os interesses da Promovalor com graves prejuízos para os contribuintes.”
Na altura em que o FIAE foi criado, a Capital Criativo aumentou o seu volume de negócios em 50%, com uma remuneração mínima garantida de 600 mil euros por ano: 15M€ em 25 anos. “Não podíamos entregar a reestruturação dos interesses de Luís Filipe Vieira a uma empresa que pertencia a alguém que tinha relações muito próximas com o ex-presidente do Benfica. A dada altura, não sabemos se está a gerir mais os interesses de Luís Filipe Vieira ou do Novo Banco”, criticou Hugo Carneiro, deputado do PSD.
A C2 Capital Partners, a antiga Capital Criativo, garante-nos por escrito que não recebe comissão há algum tempo. “A sociedade gestora não recebe a comissão de gestão que lhe é devida desde 2020”, garante-nos o conselho de administração da hoje C2 Capital Partners.
Visitámos 18 dos 23 terrenos integrados no FIAE. Analisámos, um a um, o estado destes ativos, as suas expectativas de venda e respetivo desenvolvimento desses terrenos. Todos estes ativos estão hipotecados ao Novo Banco.
O plano de negócios da Capital Criativo assentava em duas fases. A primeira na alienação de certos ativos no período mais curto possível; a segunda no desenvolvimento faseado e respetiva comercialização com o objetivo de os valorizar, para, depois, os vender. O tempo de vida do fundo é de 25 anos.
O Novo Banco fez pelo menos cinco análises, a que tivemos acesso, ao plano de gestão da Capital Criativo. Na primeira análise, de junho de 2017, antes da criação do FIAE, projetava-se que o fundo gerasse 427,94M€ até 2047. Na análise de novembro de 2018, a projeção de receitas - até 2049 - já era 191,38M€ inferior.
Estes dados demonstram que a dívida total de Vieira nunca será paga ao Novo Banco. Segundo as projeções que temos, no penúltimo ano de vida do FIAE, 2048, ficarão 153 milhões de euros por pagar.
As projeções para o reembolso dos 146,6M€ em unidades de participação detidas pelo Novo Banco também sofreram alterações drásticas em pouco mais de um ano. Em 2017, o banco de António Ramalho previa receber este valor em 2025. No final de 2018, a realidade bateu. Até 2049, o banco só receberia 140,1M€.
Em Portugal foram integrados 13 terrenos, de Vila Franca de Xira a Tavira, no Algarve. Todos os ativos em território nacional foram avaliados entre fevereiro e abril de 2016, um ano e sete meses antes da constituição do FIAE, e totalizavam um valor comercial de 69,4M€. Há ainda um ativo em Espanha, na Andaluzia, que foi avaliado apenas em 2012.
Visitemos os mais relevantes em Portugal.
O Parque Oriente é o terreno em Portugal mais valioso integrado no fundo. Situado em Loures, tem mais de 380 mil metros quadrados. Nesta propriedade, pretendia-se edificar 261 lotes destinados a moradias, apartamentos, comércio e teria ainda um posto de combustível.
Este é um dos terrenos que o FIAE pretendia desenvolver, num espaço de 12 anos. O alvará de loteamento foi aprovado em 2008, porém, o fundo deixou-o caducar em janeiro de 2019. Segundo a Câmara Municipal de Loures: “As obras de urbanização encontram-se suspensas e abandonadas por um período superior a seis meses.” Com o alvará caducado, o valor do terreno deverá diminuir.
São vários os ativos integrados no FIAE que ficam em Vila Franca de Xira. “A Câmara Municipal acolhe sempre qualquer empresário que queira investir no concelho e a Promovalor foi mais uma dessas situações”, diz-nos Alberto Maia Mesquita, antigo presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira.
O projeto da Quinta do Cochão precisou de um financiamento adicional de 7,3 milhões de euros em 2016, mas, dois anos depois, já eram precisos 17,7 milhões. Foi um aumento de 143%.
Um deles é a Quinta do Cochão, perto do estádio do Alverca. O terreno é propriedade de Vieira desde 2004. “Há uns meses, ainda comigo na presidência, o fundo bancário veio falar connosco para saber como é que o processo estava e nós informámos que o alvará se mantinha válido”, explica-nos Maia Mesquita. “Aquilo que nos disseram é que estavam muito interessados em retomar esse processo, mas com alterações ao projeto”, continua o socialista, que acrescenta que a “câmara concordava com essa estratégia”.
O impulso do fundo, todavia, desvaneceu-se. “Mas ficou por aí até aos dias de hoje, não aconteceu mais nada”, diz-nos Mesquita. Este projeto tinha uma necessidade de dívida adicional no valor de 7,3 milhões de euros em 2016. No entanto, a necessidade de financiamento subiu 143% em 2018, para 17,7M€.
O arquiteto do FIAE chama-se Diogo Chalbert Santos, na altura quadro da Capital Criativo, hoje no fundo Iberis Samper. Numa escuta ouvida pelo Ministério Público, Tiago Vieira e Chalbert Santos cogitaram a possibilidade de comprar este terreno ao FIAE numa fire sale. Traduzindo: queriam comprá-lo ao desbarato.
A Quinta dos Fidalgos também fica em Vila Franca de Xira e o seu desenvolvimento devia ter começado no primeiro ano em que foi constituído o FIAE. Com quase 35 mil metros quadrados, o projeto de loteamento foi aprovado pela Câmara Municipal a 30 de outubro de 2013 e previa ter 198 lotes de habitação.
“Era um projeto muito interessante”, classifica Maia Mesquita. “O projeto foi a reunião da Câmara Municipal em 2013. Ficaram de entregar as especialidades, que fizeram. A partir daí, apesar das muitas iniciativas que fizemos para saber o que é que estava a acontecer, porque nós tínhamos interesse que esse projeto avançasse, nada aconteceu.”
Segundo a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, “não houve alteração ao quadro urbanístico nos últimos quatro anos, não se verificando alterações nos índices de construção, bem como nos compromissos assumidos pelos proprietários, uma vez que o Plano Diretor Municipal data de 2009”.
Maia Mesquita tem pena que os projetos não tenham avançado, pois é da opinião que estes empreendimentos tinham o potencial de desenvolver o município: “Tenho porque, na minha opinião, são projetos que em termos económicos têm interesse. Não sei porque é que não avançam. São estratégias do Novo Banco e do fundo imobiliário, que eu não consigo descortinar.”
Dos nove ativos para venda imediata, o mais valioso é o projeto Páteos da Luz, em Tavira. Este terreno com mais de 75 mil metros quadrados foi adquirido pelo FIAE por 17,1 milhões de euros, mas a queda no valor do empreendimento foi de 69%.
Entrevistámos o antigo presidente da câmara de Tavira, Macário Correia. Este concelho algarvio foi onde Vieira mais construiu. “Mas não conseguiu tudo o que queria”, enaltece o antigo secretário de Estado do Ambiente de Cavaco Silva. “Não me acusa na consciência nem na memória qualquer procedimento que fosse eticamente incorreto”, garante-nos o antigo autarca.
Macário Correia foi à inauguração do Estádio da Luz, em 2003, e assistiu à partida dos encarnados contra o Nacional de Montevideu, equipa uruguaia. “Eu assumo”, diz Macário Correia. “Ele convidou uma série de gente de Tavira e foi a única vez que entrei nesse estádio”, conta-nos o social-democrata, acrescentando: “Fui no meu carro, só não paguei o bilhete”.
No decorrer da nossa investigação deparámo-nos com relatos de que Vieira tinha uma toupeira na câmara algarvia. “Eu sei disso. Desse e de outros. Quando notava que isso acontecia, aconselhava-os a dedicarem-se a outra atividade”, diz Macário Correia. “Esse funcionário não tinha poder de decisão nenhum sobre coisa nenhuma”, recorda o antigo autarca, acrescentando: “Saiu com licença sem vencimento.”
Dos treze terrenos em Portugal, sete foram avaliados em menos de meio milhão de euros, destinados a venda imediata. Numa escuta do Ministério Público, um funcionário da Promovalor explicava ao telefone como funcionava o FIAE a Luís Filipe Vieira. Classificou os terrenos de pequena dimensão como "uma quantidade de porcarias".
A pandemia invadia Portugal há um mês quando Luís Filipe Vieira, em abril de 2020, em conversa com o Nuno Gaioso Ribeiro, dizia querer comprar o fundo por 40M€ ou 50M€. Mas claro: livre de dívida.
Quando entrevistámos o Novo Banco, a instituição liderada por António Ramalho defendia com determinação a criação do FIAE. “A realização de uma auditoria independente [da BDO] a este processo concluiu que era a melhor solução. Não nos podemos dissociar da origem destes factos”, defendeu Carlos Brandão, o porta-voz do Novo Banco.
O Novo Banco, porém, rejeitou pedidos de financiamento de 31M€ requeridos pela C2 Capital Partners, a sociedade que gere o FIAE. Na resposta que nos deu por escrito, o conselho de administração da sociedade de Nuno Gaioso Ribeiro mostrou que estava em desacordo com o Novo Banco.
“Até esta data, a sociedade gestora recebeu indicações desfavoráveis quanto aos pedidos de financiamento e decisões contrárias à venda de ativos, nos termos apresentados”, disse-nos a C2 Capital Partners.
Em 2022 completa-se a primeira meta do FIAE, quando era suposto amortizar 60M€ de dívida; dificilmente alcançável. “A sociedade gestora sempre se dispôs perante os participantes a cessar esse mandato a qualquer momento, inclusivamente a prescindindo da compensação financeira estabelecida no acordo de participação”, responde-nos a sociedade de capital de risco, acrescentando: “Essa disponibilidade já tinha sido manifestada aos participantes antes das diligências judiciais de 7 de julho de 2021 e mantém-se à data de hoje, naturalmente. A sociedade gestora não dispõe de mecanismo jurídicos que lhe permitam, por exclusiva vontade, cessar o mandato de gestão do FIAE.”
O plano de negócios da sociedade gestora gerida por Nuno Gaioso Ribeiro já tinha sido considerado, numa nota de novembro de 2018 do Fundo de Resolução, como “ambicioso e pouco realista”.
O FIAE foi o que permitiu a Vieira dizer que só devia 1,5% dos 494,5M€ do calote que deixou. Foi isso que escreveu na carta de esclarecimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito, em maio de 2021. Que só devia 7,5M€.
Com Pedro Coelho, grande repórter SIC. Esta reportagem teve a colaboração de Rita Murtinho, Maria Rodrigues e Diana Matias (SIC).
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