Vieira ficou conhecido como o Kadafi dos pneus na década de 1970 | Design de Rafael Medeiros
Ficou conhecido como o Kadafi dos pneus devido às suas táticas de mercado agressivas. Por contraste, Luís Filipe Vieira acarinhava os administradores do BES com viagens a Londres e caçadas no Alentejo.
Os comerciantes de revenda de pneus em Santa Maria da Feira, na década de 1970, viviam em harmonia. Cada empresa tinha os seus clientes, os preços eram estáveis, as margens bem definidas. O bolo dava para todos. Até Luís Filipe Vieira invadir o mercado, instalar o caos e cobiçar todas as fatias.
“A maneira como ele chegou abalou profundamente o mercado”, conta-nos Isabel Gomes, empresária no ramo da revenda de pneus, dona da Lusitânia Pneus, filha de Américo Gomes.
“Até aqui tínhamos clientes, tínhamos tabelas de faturação, tínhamos tabelas de compras, tabelas de vendas. Ele modificou o mercado porque não tinha. Tinha o preço dele, fazia as condições dele”, continua a empresária. “Foi uma filosofia… completamente agressiva.”
No norte do país, o ramo era essencialmente familiar, onde toda a gente se conhecia e respeitava o seu espaço. “Ele veio de Lisboa, foi criando pequenos postos. No princípio ninguém deu muita importância à Hiperpneus ou ao Luís Filipe”, relembra Isabel Gomes. “Veio de Lisboa, caiu aqui ninguém percebeu como…”
Repentinamente, os alarmes dispararam porque havia um competidor a roubar-lhes os clientes: “Afinal quem é a Hiperpneus, quem é o Luís Filipe Vieira?”
“Cada um tinha a sua quota de mercado e para ele não havia quota de mercado”, diz a empresária. “Desestabilizou e começou a ser conhecido porque surgiram os alertas dos clientes.”
Os hábitos e práticas de trabalho das empresas de pneus estavam rotinados naquela altura, até a entrada de Luís Filipe Vieira lhes baralhar completamente as contas. “Tivemos que nos adaptar, tivemos que criar filosofias diferentes de trabalho, mexer nas margens de comercialização. Mudou muito em muito pouco tempo para fazer face à concorrência que ele veio desencadear”, descreve Isabel Gomes. “Fomos obrigados a segui-lo”, continua: “E reconhecer que o mercado era assim.”
E nem todos sobreviveram ao embate. “Houve aqueles que certamente não puderam. Ter o mercado desestabilizado num curto espaço de tempo – porque foi muito rápido, ele chegou muito rápido – e nem sempre as pessoas, as empresas, tiveram possibilidades”, conta a empresária dos pneus.
"Ele era o Kadafi dos pneus. Podia sempre vir com alguma atrás da orelha”, disse Isabel Gomes.
A entrada hostil e insaciável do ex-presidente do Benfica no mercado mereceu-lhe um célebre epíteto: o de um ditador líbio. “Nesse sentido, ele revolucionou tudo e o meu pai chamou-lhe o Kadafi dos pneus”, conta-nos Isabel Gomes, relembrando que o seu pai, Américo, falecido em 2013, era uma pessoa pândega.
Apesar do tratamento de choque suscitado pela súbita presença de Luís Filipe Vieira no mercado, e de no início ter causado azedume, Isabel Gomes nota regularmente que a relação da família – pai e irmão – e dos outros empresários dos pneus com o antigo presidente do Benfica acabou por ser de amizade e de respeito. Diz que o mercado estava a precisar de uma metamorfose e que Luís Filipe Vieira fez “a diferença”.
Num ápice Luís Filipe Vieira domina todas as vertentes do mercado. Imposta a sua ordem, e unindo, mais tarde, o fato de revendedor com o de fornecedor, o mercado e as relações estabilizaram.
“Estávamos a precisar de mudar e íamos necessariamente mudar. No mundo dos pneus, creio que [Luís Filipe Vieira] é reconhecido”, refere. “Ficou com amizades e com respeito no mundo dos pneus. É o Kadafi dos pneus mas com respeito, como empreendedor, como audaz, uma pessoa ambiciosa.”
Uma amizade e deferência temperada pelo temor e pela incerteza. “Ele era o Kadafi dos pneus. Podia sempre vir com alguma atrás da orelha”, confessa Isabel Gomes.
Quem conheceu Luís Filipe Vieira nesta altura foi José António Santos, gémeo de António José, donos da Avibom, a maior empresa agrícola do país e uma das maiores da Europa, com uma faturação anual de 350 milhões de euros, dois mil trabalhadores e 36 empresas. José António Santos é conhecido como o Rei dos Frangos e é uma das personagens principais da OPA à Benfica SAD, em novembro de 2019, chumbada depois pela CMVM .
Amigos há quase 40 anos, hoje são ambos arguidos na Operação Cartão Vermelho. “Comprava-lhe bastantes pneus”, conta-nos José António Santos, descrevendo os seus primeiros contactos com o ex-presidente do Benfica. “A gente quando tem um fornecedor que é competente, capaz, competitivo, normalmente arranjamos amizade. Somos bastante conservadores nesse aspeto.”
José António Santos, que só aceitou falar connosco sobre eventos até 2016 devido ao segredo de justiça, admira a veia empreendedora de Luís Filipe Vieira. “É um grande comerciante e é uma pessoa de grande coração. Nasceu do zero, fez uma boa empresa, dos pneus, fez vários negócios, com certeza bons”, elogia: “Acho que é um homem bastante visionário”.
Os pneus não são um simples episódio na ascensão meteórica do “bairrista das Furnas”, epíteto colocado pelo próprio quando foi entrevistado no programa Herman SIC em 2005. Foi nesta fase da sua vida que se iniciaram vários burburinhos, que nunca o largaram.
“Pode-se dizer que uma das suas maiores dores foi quando o arrastaram para um boato que envolvia drogas?”, perguntou Herman.
“Nunca tive nada a ver, nem com ligações de pessoas. Ainda hoje há muita gente que pensa que tive alguma relação”, garantiu Luís Filipe Vieira, relatando depois que esteve no radar das autoridades na altura em que comercializava pneus.
“Estava um contentor a chegar da Coreia, a ser transportado para a Hiperpneus, e é intercetado pela GNR. Fazem-nos tirar as fitas todas dos pneus transportados (…) pensando eles que ainda havia algo lá”, recordou na altura, sem preconceitos em falar sobre o assunto.
Para evitar que lhe colocassem “um pacotinho” no carro, alegou a Herman José, Luís Filipe Vieira tomava as devidas precauções.
“Naquela altura estava bem prevenido que não poderia circular sempre no mesmo carro. Nesse dia ia a caminho de casa e fui intercetado por uma operação STOP. Não me pediram os documentos, só me disseram para abrir o capô. Deve ter sido um dos dias mais negros da minha vida. Pensei que tivessem destruído a minha vida. Recordei logo: alguém colocou aqui alguma coisa no carro. Pronto, e não consigo provar o quer que seja. Ainda hoje não sei de onde veio”, lembrou. “Depois de ter vivido minutos terríveis, ia tirar a carteira e caiu no chão – o próprio GNR não sabia o que me dizer, pois naquela altura chorava compulsivamente.”
Momentos antes, Luís Filipe Vieira prestava honras a uma pessoa na plateia, que o acompanhou durante largos anos: “É aquele que atura as minhas madurezas diariamente, que é o meu motorista, o Zé.”
O “Zé” é José Carriço, o “Zé do Benfica”, funcionário dos encarnados detido no final de julho de 2015 pela Polícia Judiciária por transportar 9,5 quilos de cocaína num carro do clube.
José Carriço transportava malas da droga vindas do Brasil, apanhando-as no Aeroporto Sá Carneiro, no Porto. O caso ficou conhecido como Porta 18, pois foi detetada a entrada e saída, por mais de uma dezena de vezes, de cidadãos colombianos pela porta número 18 do Estádio da Luz, que se deslocavam sob o pretexto de que se iam encontrar com o “Zé do Benfica”. José Carriço foi condenado e saiu em liberdade em 2019.
A SIC teve acesso a um largo acervo de documentos – cerca de 1000 – e partilhou-os com o Setenta e Quatro. Essa documentação descreve uma relação especial e de proximidade entre Luís Filipe Vieira e o Banco Espírito Santo, de Ricardo Salgado, ao longo de mais de uma década.
Esta é a segunda parte da história de um testa de ferro.
Na primeira peça ficámo-nos pelas VMOC, uma operação de reestruturação das dívidas de Luís Filipe Vieira ao BES em junho de 2011, em que este lhe concedeu mais 160 milhões de euros para o grupo amortizar as dívidas ao próprio banco. Voltemos a explicá-la brevemente.
Luís Filipe Vieira chega a junho de 2011 com uma dívida ao BES de 432,4 milhões de euros. Se somarmos a esta torre de dívida o Finibanco, o BCP, a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Popular e o BPN, esse número escala para os 567 milhões de euros.
Uma situação de crédito perigosa que era reconhecida nos próprios corredores do BES. Meses antes da emissão das VMOC, uma análise do Departamento de Risco do BES alertava para a situação precária da Promovalor, sugerindo um acompanhamento próximo do grupo e recomendando que não lhe fossem atribuídos mais financiamentos. Mas como amigo não empata amigo, o BES vai contra a indicação dos seus próprios técnicos.
Indo contra essas indicações, o documento do BESI, liderado por José Maria Ricciardi, que serviu de base para esta reestruturação referia: “Apesar do actual [sic] contexto imobiliário português, o Grupo Promovalor reúne as condições necessárias para ver reforçada a sua posição no sector imobiliário, tendo em conta o grande potencial dos seus projetos e as elevadas qualificações da sua equipa de gestão”.
Com estes 160 milhões, aspiraram do balanço de crédito da Inland (a segunda maior empresa do grupo) mais de 69 milhões de euros, montante que tinha sido utilizado para Luís Filipe Vieira comprar 55% das unidades de participação no fundo imobiliário fechado Fimes Oriente, uma parceria entre o Grupo Espírito Santo e Luís Filipe Vieira.
O prazo para o pagamento das VMOC expirou em agosto deste ano. Embora tenha decidido não converter esta dívida em unidades de participação, o calote parece garantido.
“A gestão das imparidades passa muito por aquela que é a expetativa de recuperação do banco. Já é publico que o banco as tem 100% imparizadas e só este facto indica que a expetativa de recuperação é muito baixa”, disse-nos Carlos Brandão, porta-voz do Novo Banco. “Mas não significa que o banco não continue a fazer todos os esforços para recuperar todos os seus valores investidos”, garante.
Feito o resumo, passamos para um ano mais tarde, quando a Promovalor faz mais uma limpeza à casa com a ajuda do BES. Em junho de 2012, o BES Vida compra os tais 55% do Fimes Oriente por 126 milhões de euros e incorpora a dívida associada a Luís Filipe Vieira: 56,7 milhões de euros.
Mas a reestruturação não fica por aí. No saco do Fimes Oriente, é, também, incluído o empreendimento de Benagil, um terreno no concelho de Lagoa que poderá ainda dar um empreendimento turístico. A empresa é vendida por 21,4 milhões de euros (tinha uma dívida de 48,9 milhões de euros) e, simultaneamente, a Onlyproperties vende por 7,9 milhões de euros um terreno em Alfazina à empresa que geria o projeto de Benagil.
Tudo somado, Vieira encaixa 156 milhões de euros e desembaraça-se de 256,4 milhões de dívida.
Apesar deste amparo do BES e do BES Vida, Luís Filipe Vieira mostra algum remorso por ter acatado o pedido, ou exigência, do Grupo Espírito Santo. “Fizemos um empréstimo obrigacionista por causa da troika, em 2011, de 160 milhões. Depois chamaram-me do banco para alienar ativos e fiz mal. O dinheiro era deles e foi a pior coisa que fiz, hoje só a Matinha [conjunto de terrenos incluídos no Fimes] pagava tudo o que eu devo. Essa operação teve um lucro pequeno”, queixou-se na Comissão Parlamentar de Inquérito.
“Não tenho dúvidas que tinha o melhor património imobiliário em Lisboa. Era meu, com o dinheiro do banco, claro. Quando o banco me diz que há interesse em adquirir o ativo, deram-me uma margem de rentabilidade e nós não dissemos que não. Mas foi um mau negócio”, lamentou.
Aspirada boa parte da dívida, o Grupo Promovalor chega a 2013 mais leve para preparar a sua projeção para outros continentes, entrando no Brasil e em Moçambique, algo que vinha a planear desde 2011.
Até então, com 1 milhão de metros quadrados de área bruta de construção na sua carteira, a Promovalor só tinha edificado 240 mil metros quadrados. Com estes novos projetos internacionais, a Promovalor quase que triplica os terrenos que tem em mão, ascendendo para 2,5 milhões metros quadrados em área bruta de construção. Um novo desafio que necessitava de beber mais crédito e, para ser concedido, havia que namorar os administradores do BES.
No dia 3 de abril de 2013, cai na caixa de correio eletrónico de Amílcar Morais Pires e António Souto, os administradores mais próximos dos interesses do presidente do Benfica, um convite do sócio de Luís Filipe Vieira, Almerindo Duarte, para irem à final da Liga dos Campeões.
Insurgindo-se contra os constrangimentos à sua liberdade individual e reclamando que a vida não podia ser só stress e trabalho, Almerindo garante que a viagem está a ser planeada sob a tutela eficiente do “Sr. Vieira”. A acompanhá-los, iria uma delegação de políticos brasileiros do Rio de Janeiro, onde a Promovalor tinha terrenos.
Cinco dias antes do derradeiro jogo, 20 de maio, Almerindo Duarte envia do Brasil, onde está de visita “aos nossos projetos”, um novo e-mail aos administradores do BES a dar conta do luxuoso itinerário para assistirem ao jogo do Bayern Munique contra o Borussia Dortmund. Tem reservado tudo do bom e do melhor: viagem de avião privado e estadia no Hilton Park Lane, um hotel de 5 estrelas com restaurantes premiados pelo Guia Michelin. A Promovalor, carregada de dívidas, é quem paga todas as despesas.
A Promovalor, nesta altura, já devia ao BES mais 69 milhões de euros (situava-se nos 319,9 milhões de euros) do que em junho de 2012.
Vieira, esse, vê tudo isto com naturalidade. “O convite está assinado por mim?”, reage Luís Filipe Vieira quando questionado sobre estas viagens, na audição da CPI. “Estou a perceber – foi o meu sócio. É natural que ele fizesse isso”, respondeu, referindo-se a Almerindo Duarte.
Chegamos a novembro de 2013 e a Promovalor já tem o seu plano de internacionalização mais consolidado. Um documento do BESI de 11 de novembro de 2013 descreve o Grupo Promovalor num tom elogioso, mas resguarda-se num disclaimer: “O Espírito Santo Investment Bank não é responsável pela exactidão [sic], veracidade e abrangência da informação fornecida, não podendo por isso ser responsabilizado por qualquer afirmação ou omissão daquela incorrida no âmbito do presente documento”, pois para a análise dos investimentos das empresas de Luís Filipe Vieira “baseou-se em informação pública e em elementos disponibilizados pelo Grupo Promovalor e pelo Banco Espírito Santo”.
Confiar nos números da Promovalor era um risco, principalmente quando o banco não acompanhava devidamente a situação do grupo de Luís Filipe Vieira. Para a atribuição de rating, o banco devia realizar uma análise de risco a cada 12 meses. Uma análise feita por nós, baseada na auditoria realizada pela Delloitte dos créditos da Promovalor entre 2002 e 2014, encontrou 28 situações em que o BES não cumpriu essa regra. A situação creditícia da Inland a determinada altura, por exemplo, esteve 67 meses sem que tivesse sido examinada.
Numa extensa radiografia à internacionalização (Brasil e Moçambique) do grupo de Luís Filipe Vieira, e ao desenvolvimento dos projetos em Portugal, que, diga-se, estavam praticamente todos suspensos desde a criação da própria Promovalor (final de 2007), o BESI declara a crença de que a dívida seria paga quase na sua totalidade até 2029. Caso o BES abrisse, novamente, os cordões à bolsa – para a Promovalor pagar as dívidas ao BES, o BES tinha que financiar a Promovalor.
Apesar desta projeção otimista, o BESI delineava ao mesmo tempo uma comprida lista de dificuldades. O business plan da Promovalor era capaz de ser dado a exageros: “Obtenção de todas as licenças necessárias para o desenvolvimento dos projectos [sic] nos prazos previstos”; “Cumprimento do calendário de construção e de comercialização”; “Realização dos preços de venda dos imóveis”; “Obtenção dos capitais próprios e dos capitais alheios necessários para o desenvolvimento dos projectos [sic]; “Estabilidade dos principais pressupostos macroeconómicos da economia portuguesa e brasileira”.
Por fim, sentenciava: “Não foi possível ao Espírito Santo Investment Bank verificar a razoabilidade de alguns pressupostos considerados no business plan desenvolvido pela Promovalor”. Sem análises de risco, de facto, é difícil.
Quatro dias antes da elaboração deste documento, a 7 de novembro, Almerindo volta a mostrar que é uma peça central nos bastidores da Promovalor. Envia e-mail a três administradores do BES a planear uma caçada em Mértola, na reserva de Balanches. Entre uma troca de mensagens animada, a acompanhar a caçada reserva um jantar servido pela “nossa” Inês e um almoço leve. “Que tal cozido?”, sugere.
Faltavam apenas 269 dias para a resolução do Banco de Portugal ditar o fim do império dos Espírito Santo. Nenhum dos intervenientes destas mensagens parecia aperceber-se do estrondo que estava por vir.
Façamos uma pausa e viajemos para perto do local destas caçadas. No final da primeira peça falámos da nossa visita à Herdade do Castelo, em Almodôvar, um concelho do Baixo Alentejo.
A Herdade do Castelo (detida pela High Castle) é um terreno no meio do nada em que Luís Filipe Vieira queria desenvolver um megaempreendimento turístico, cujas projeções desafiavam as lógicas comerciais, financiado pelo BCP. Na primeira peça citámos como um bom exemplo do teor dos projetos imobiliários de Luís Filipe Vieira, mas também da sua conduta comercial.
Visitámos Almodôvar, hoje comandado pelo Partido Socialista, nas vésperas das eleições autárquicas. A disputa eleitoral entre PSD e PS foi muito acesa, recheada de insultos e maldizeres, inclusive nas redes sociais.
No seu último discurso eleitoral, António Bota, presidente da Câmara de Almodôvar eleito em 2013 e recandidato vencedor em 2021 (com mais de 70% dos votos), atirou-se a António Sebastião, antigo autarca do PSD que se lançou novamente no embate eleitoral para reconquistar a câmara alentejana.
"Passados dois ou três minutos o Rui Costa mandou alguém ligar para mim a dizer que contasse com a equipa", disse António Bota.
“O papel da Câmara Municipal… Não é o que foi feito para aquela Herdade do Castelo. Falou-se com uma grande fachada, jornais, rádio, TV, duzentos e não sei quantos empregos prometidos… conhecem alguém que lá trabalha?”, gritou António Bota perante a plateia.
Já quando o entrevistámos, depois das eleições, o presidente da câmara foi mais comedido. “Era um projeto de sonho para o município de Almodôvar se tivesse, ou viesse a ter lugar”, diz-nos. “Se calhar existiu um desleixo da parte dos investidores que procuraram, eventualmente, outros projetos que lhes pareciam mais interessantes ou mais rentáveis.”
A Herdade do Castelo é um terreno no meio do nada em que Luís Filipe Vieira queria desenvolver um megaempreendimento turístico, cujas projeções desafiavam as lógicas comerciais, financiado pelo BCP.
Desleixo é, porventura, uma forma de colocar a questão. O projeto mantém-se no papel, e já não está sob a alçada da Promovalor, mas António Bota chegou a estar em contacto com o antigo promotor. “Falei com uma pessoa responsável da empresa Promovalor. Se não estou enganado, foi um engenheiro e um diretor financeiro da empresa”, afirma-nos.
Será que Vítor Seixas, diretor financeiro e gestor de projetos da Promovalor que não trabalha para o Benfica, diz algo a António Bota?
Eram cinco da tarde, quando no dia 9 de março de 2017 Luís Filipe Vieira recebe um e-mail do seu gestor de projetos: queria dar-lhe a conhecer uma mensagem de António Bota, que ia organizar um torneio de futebol para os escalões jovens em Almodôvar, a pedir para o Benfica enviar a sua equipa de iniciados.
Ao contrário do esperado, quando confrontado com a mensagem, Bota não chutou para canto. “Acho que mandei mensagens diversas vezes”, revela-nos o presidente da câmara. “Tentei pedir esses pequenos gestos para que nos ajudassem… e veio cá uma equipa, nesse ano esteve cá uma equipa.”
Não deveria fazer esse contacto através de uma via oficial do clube encarnado? “Foi para o Vítor Seixas porque era o contacto que tínhamos, deixaram cá os cartões e a mensagem de que estariam disponíveis para ajudar quando fosse necessário. E foi mais que uma vez”, afirma-nos sem complexos: “Passados dois ou três minutos o Rui Costa mandou alguém ligar para mim a dizer que contasse com a equipa.”
Quem não entrou em contacto com a câmara foi o novo promotor, que Bota afirma não saber quem é. Mas nós descobrimos.
Consultámos o site da conservatória do registo predial: a novo dona da Herdade do Castelo é a empresa Página Relâmpago, constituída em 2017 e detida por José António Santos – o “Rei dos Frangos”. Além da OPA e dos créditos da Imosteps comprados à Nata II com um grande desconto, José António Santos também auxiliou Luís Filipe Vieira neste calote.
Voltando à linha cronológica, passemos para 2014. Segundo os documentos a que tivemos acesso, neste ano, o da queda do BES, a desordem parecia reinar nas operações de crédito concedidos ao Grupo Promovalor.
Dos 27 aditamentos que os contratos de crédito do grupo de Luís Filipe Vieira sofreram entre 2002 e julho de 2014, um quarto foram nos primeiros sete meses deste ano.
O ano, todavia, começa com uma festa de arromba. E é promovida por Nélio Lucas, do Grupo Doyen, que esteve contemplado nos documentos do BES como possível investidor do empreendimento Verdelago.
O então chefe da Doyen Sports envia um e-mail, no dia 3 de janeiro, a convidar Amílcar Morais Pires para o seu evento “à maneira”, onde estariam 160 pessoas – e onde Luís Filipe Vieira e Almerindo Duarte estariam presentes. Agarrada a esta mensagem, chegou-nos também um e-mail de Almerindo a aliciar o administrador do BES a ir a Londres, dizendo-lhe que lá estariam todos os administradores da Doyen e profetizando que poderiam ser importantes para operações futuras.
Chegamos ao dia 28 de maio de 2014, 65 dias antes da queda do banco dos Espírito Santo, e vemos que o negócio com a Doyen não se concretiza.
À mesa neste dia reuniu-se a comissão executiva e Daniel Santos, do Departamento de Acompanhamento de Empresas, apresenta uma proposta do Fundo Aquarius, gerido pela Oxycapital.
O empreendimento Verdelago, em Castro Marim, Algarve, suspenso desde 2011, tinha um financiamento tripartido – BCP, Caixa Geral de Depósitos e BES – de um máximo de 270 milhões. Nesta reunião, o Fundo Aquarius propõe a compra de 100% dos créditos, mas apenas de 75% do capital social. O presidente do Benfica ficaria com 25% e o fundo ainda teria direito a uma linha de crédito adicional de 65 milhões de euros.
Este é um negócio com contornos criativos, que, embora aprovado neste dia, só se concretiza em 2015, mas cujos contornos pode ler aqui. Revelamos, todavia, quem esteve presente na mesa da comissão executiva: Ricardo Salgado.
Esta é uma altura em que o BES estava envolto num frenesim e sob os holofotes dos média, e a saída de Ricardo Salgado já era dada como certa. O nome mais falado para o substituir era Amílcar Morais Pires.
“Almerindo. Urgente”, escreveu António Souto a Almerindo Duarte nas vésperas da resolução do BES.
Para lá da 1h30 da madrugada de 25 de junho, António Souto envia uma mensagem aflita a Almerindo Duarte. Era um grito de socorro.
“Almerindo. Urgente”, escrevia. Tudo se ia decidir nos próximos dias, alertava.
O administrador temia que os apoiantes de António Costa, que se candidatava à liderança do PS nesta altura, atacassem Amílcar Morais Pires. Na resposta ao amigo, cinco horas mais tarde, Almerindo Duarte garante que Luís Filipe Vieira é a pessoa ideal para falar com o socialista.
Amílcar Morais Pires recusou-se a falar connosco. Tentámos contactar Almerindo Duarte para lhe falar sobre o papel que a nossa investigação lhe atribui nesta história, deslocando-nos a duas moradas a si associadas. Além disso, enviámos um e-mail e não recebemos resposta. Depois de uma curta passagem pelo Novo Banco, António Souto desapareceu do mapa.
O que é facto é que oito dias depois, o banco anunciava um prejuízo semestral histórico – 3,6 mil milhões de euros – e o escolhido para liderar o BES acabaria por ser Vítor Bento.
Batia as 22h45, exatamente um mês após essas perdas históricas, quando o Banco de Portugal ditou o fim do BES e a criação do Novo Banco. “Desta forma, e em consequência da decisão adotada, fica completamente e inequivocamente afastada qualquer hipótese de haver perdas para os depositantes”, garantiu-nos o então governador do BdP Carlos Costa.
O BES foi dividido em duas partes: o banco mau e o banco bom. O Novo Banco era o banco “bom”, onde a dívida tóxica do Grupo Promovalor permaneceu. Continuamos a pagá-la até hoje.
Como em qualquer “bom começo”, o Novo Banco começa a empurrar o problema com a barriga. Concluindo o que Ricardo Salgado começara, a nova administração de Eduardo Stock da Cunha (Vítor Bento saiu passado muito pouco tempo) reaprova a venda dos créditos do empreendimento Verdelago ao fundo de capital de risco gerido pela Oxycapital, no dia 24 de setembro. A nova administração tomara posse apenas uma semana antes.
As projeções, ainda assim, mantiveram-se tão ou mais otimistas como as do BES. Tal como os elogios à equipa da Promovalor.
Quando os documentos do BES falavam de um grupo com “grande potencial” e as “elevadas qualificações da sua equipa de gestão”, o Departamento de Risco Global do Novo Banco destacava a “estrutura operacional leve que potencia o outsourcing”; e o “Grupo Jovem flexível e com práticas de gestão eficientes”. Gabaritos que desafiavam a lógica, não fosse a dívida da Promovalor ao Novo Banco, quando este documento foi elaborado, de 427,3 milhões de euros. Estávamos em maio de 2015.
De igual incoerência, quando a Promovalor nesta altura tinha apenas concluído um terço dos projetos que tinha em carteira, era o Novo Banco falar em “potenciar o know-how adquirido da Promovalor”.
Talvez contagiada pelos dogmas e vícios do BES, herdando-os, o Novo Banco queria tornar a Promovalor um “dos maiores players em Portugal”: “implementar dez projetos imobiliários estruturantes” nos próximos cinco anos era o objetivo proclamado.
Mantidas inalteradas todas as coisas, diz a inflexível lei de ceteris paribus, este documento do Departamento de Risco Global do Novo Banco fazia projeções dignas de uma sociedade imaginária. Caso se mantivessem as taxas de câmbio, estimava que a dívida da Promovalor podia ser totalmente liquidada até 2024. Protegendo-se da volatilidade das taxas de câmbio, a Promovalor já levaria mais nove anos a pagar em relação à primeira previsão.
Além de tudo na vida se mover, volátil e insustentável, todavia, era a dívida da Promovalor. E não foram precisas grandes agitações no mercado cambial para, em junho e julho, a fantasia cessar. A torre de dívida de Luís Filipe Vieira estava a desabar: o solo que a sustentava tinha desaparecido entre as ruínas do BES. O Novo Banco, apercebendo-se da sua insustentabilidade, avança com propostas de renegociação da dívida da Promovalor neste mês.
Dos 13 créditos em cima da mesa do Conselho Diário de Crédito de 28 de julho, nove estavam em incumprimento. O Novo Banco desce os spreads (lucro do banco) de todos os créditos de 3,5% para 2,5%, dispensa a cobrança de taxas de juro de mora e perdoa-lhe os juros de um financiamento em Espanha.
“Nunca entrei em incumprimento”, garantiu o então presidente do Benfica na CPI, em maio deste ano.
A liquidação da dívida, contudo, já não parecia ter solução à vista em dezembro. Vieira é chamado ao número 195 da Avenida da Liberdade, a sede do Novo Banco, e sai de lá com um nó na garganta. O Novo Banco informara-o que era necessário encontrar uma solução mais drástica.
A sair da Avenida da Liberdade ao final da tarde, desamparado e com os nervos à flor da pele, Luís Filipe Vieira telefonou ao amigo Nuno Gaioso Ribeiro, fundador da Capital Criativo, um fundo de capital de risco de que a Promovalor era acionista.
“Nuno, tenho de falar contigo com urgência”, diz Vieira ao telefone, à procura de um porto seguro. Gaioso Ribeiro convida-o a dirigir-se ao escritório da Capital Criativo. Vieira desloca-se imediatamente para lá e conta-lhe a notícia que tinha recebido.
“Tem calma, de certeza que a empresa tem ativos suficientes para nós solucionarmos uma situação dessas ou, pelo menos, para começarmos a falar”, afiançou Nuno Gaioso Ribeiro, já com Vieira no escritório da Capital Criativo.
Acalmada a neura do devedor, Nuno Gaioso Ribeiro, com quem Vieira desabafou as suas angústias, recebe mandato para negociar a reestruturação em prol da Promovalor. Foi falar com os quadros da Promovalor para conhecer os artifícios da empresa imobiliária e, logo de seguida, começou a explorar oportunidades com o credor.
Decorridos alguns meses de conversas, em abril de 2016, a Capital Criativo vai à sede do Novo Banco apresentar os planos para reestruturar as dívidas da empresa de Vieira. A discussão de ideias havia de prolongar-se por mais um ano, mas o sinal positivo é dado pela administração de António Ramalho, que toma posse no dia 1 de agosto. Seria criado um Fundo de Investimento Alternativo Especializado (FIAE).
Ainda a Capital Criativo e Novo Banco se sentavam à mesa das negociações para reestruturar as dívidas de Luís Filipe Vieira, quando os técnicos do Novo Banco enviam uma proposta ao Departamento de Crédito Imobiliário no dia 26 de outubro. Alertando para as graves dificuldades financeiras do grupo, têm um plano radical.
O banco devia abdicar, na prática, do seu lucro e reduzir os spreads de 16 financiamentos da Promovalor. Os juros de 2,5% colados a estes contratos eram contraproducentes, justificavam. Propõe uma diminuição para 0,5%.
Na defensiva, António Ramalho tentou um malabarismo semântico no Parlamento. “Luís Filipe Vieira nem sequer teve perdão de juros, para que fique claro”, assegurou na CPI. Esta redução de diminuição dos spreads para perto do zero foi aprovada por três administradores do Novo Banco. Ramalho não foi um deles, pois senão poderia ter visto o “volume significativo de juros anulados” escrito no documento. Um perdão.
“Não houve concurso nenhum para ser a Capital Criativo, só́ tínhamos que aceitar uma solução que tinha alguém de confiança do Luís Filipe Vieira, ou, então, pura e simplesmente, não se conseguia fazer isto”, disse António Ramalho.
No dia 19 de abril de 2017, as negociações entre a Capital Criativo e o Novo Banco chegam a bom porto e o FIAE é aprovado. O fundo prometia recuperar 228,9 milhões de euros, de uma dívida que nesta altura se situava nos 463 milhões de euros.
“Esta solução do FIAE foi aquela que nos pareceu mais equilibrada porque foi a que nos permitiu manter todas as garantias associadas à operação que tínhamos anteriormente”, defende Carlos Brandão, porta-voz do Novo Banco.
O Novo Banco entrou com quase todo o capital do FIAE, mas foi Vieira que escolheu a sociedade gestora – foi condição sine qua non.
“Não houve concurso nenhum para ser a Capital Criativo, só́ tínhamos que aceitar uma solução que tinha alguém de confiança do Luís Filipe Vieira, ou, então, pura e simplesmente, não se conseguia fazer isto”, afirmou Ramalho na CPI.
Segundo as últimas projeções que temos, no penúltimo ano de vida do FIAE, 2048, ficarão 153 milhões de euros por pagar.
O Novo Banco comprou um pneu furado.
Com Pedro Coelho, grande repórter SIC. Esta reportagem teve a colaboração de Maria Rodrigues, Rita Murtinho, Pedro Sousa Coelho e Diana Matias (SIC).