Onde estão os polícias do caso da Esquadra de Alfragide, que espoletou a criação do Movimento Zero? O que é feito de Rui Moniz, vítima das agressões dos agentes da PSP da Esquadra de Alfragide? O que dizem os mais de 1000 posts que analisámos da página de Facebook do Movimento Zero? Quais as ligações entre o Movimento Zero e o Chega?
O local é pacato. A rotunda de Alfragide tem duas faixas, o relvado do largo onde circulam as viaturas precisa de tratamento. Rui Moniz ia em direção à loja da MEO, a poucos passos da esquadra, a meio da Estrada de Alfragide, quando viu duas pessoas a serem imobilizadas por agentes da Polícia de Segurança Pública. Mas decidiu seguir caminho.
Foi quando resolveu a tarefa que tinha no estabelecimento da operadora de telecomunicações e saiu da loja que ouviu um agente, que o tinha avistado quando passara pela rotunda momentos antes, a dizer: “É um amputado”.
“Tu andavas a filmar”, acusaram-no. “E deram-me uma cacetada na mão onde tinha o telemóvel”, conta-nos Rui. “Quando o telemóvel caiu, o agente deu-me um soco nos olhos. E disseram para eu me atirar para o chão.”
Um dos agentes desfere um pontapé na barriga de Rui, depois os polícias agarram-no e arrastam-no para a esquadra. Pedem a Rui a identificação, que estava no bolso de trás. “Estava deitado no chão e, sempre que levantava a cara, davam-me um murro”, lembra. Os agentes, finalmente, decidem tirar a identificação do bolso de Rui. “Foda-se. Ainda por cima és “pretoguês!””, disseram. Rui teve um AVC quando tinha sete anos, por isso, não tem mobilidade numa mão. Mune-se de uma tala para esticar os dedos, uma ferramenta que despertou a curiosidade dos polícias, que lhe perguntaram para que servia.
“Eu disse que tinha tido um AVC. E um dos agentes disse assim: “E não morreste? Desta vez vais morrer’”, disse.
Momentos antes de entrar na esquadra à força, Rui, enquanto roçava pelo chão, conseguiu vislumbrar a placa de identificação de um dos agentes. “Machado”, era o que dizia, lembra-se.
Este incidente é conhecido, ocorreu no meio da tarde de 5 de fevereiro de 2015. Machado é Joel Machado, um dos oito agentes da Polícia de Segurança Pública condenado por agressão e sequestro de seis cidadãos portugueses negros, residentes no Bairro da Cova da Moura, num processo que foi inédito em Portugal: nunca tantos agentes das forças de segurança tinham sido condenados no mesmo julgamento. A pena foi de um ano e seis meses de prisão efetiva, no caso de Machado, por ofensa à integridade física qualificada. No total, os oito agentes foram condenados a 20 anos e quatro meses de prisão.
Joel Machado foi o único a cumprir uma pena de prisão efetiva, no processo que ficou conhecido como o “caso da Esquadra de Alfragide”, porque já havia sido condenado por um crime da mesma natureza.
A notícia, porém, é outra.
Joel Machado, que se apresentou no Estabelecimento Prisional de Évora para cumprir pena no dia 7 de julho de 2021, já se encontra a trabalhar. “Num serviço de apoio à atividade operacional”, disse-nos a PSP, que não quis revelar em que esquadra trabalha Machado.
Os restantes sete polícias condenados no caso da Esquadra de Alfragide também se encontram a trabalhar. “Imagine que está numa esquadra e que lhe arrancam os cabelos, que lhe partem os dentes, que o insultam. E depois vê estas pessoas, com penas suspensas, em funções. Acho isto inacreditável”, afirma, indignada, Lúcia Gomes, advogada das seis vítimas.
Há, ainda, outra notícia.
Joel Machado foi um dos 1500 polícias promovidos a agente principal cinco dias antes de se ter apresentado no Estabelecimento Prisional de Évora, para cumprir pena.
A PSP, que recusou dar-nos uma entrevista para este trabalho, também não nos quis esclarecer sobre este assunto.
Este trabalho, do Consórcio de Jornalistas de Investigação, identificou 591 polícias que proferem discursos de ódio no Facebook, de natureza racista, xenófoba, homofóbica e misógina, fazem ameaças a políticos, minorias e mulheres; e manifestam simpatia pelo Chega e por outros movimentos extremistas, à direita do partido de André Ventura: pelo Ergue-te (antigo Partido Nacional Renovador), pelo Escudo Identitário, por sites e páginas de propaganda de extrema-direita e por movimentos negacionistas. São 296 polícias e 295 militares da GNR.
O Setenta e Quatro identificou 591 polícias que proferem discursos de ódio, apelam à violência e manifestam simpatia pelo Chega.
Nesta base de dados, entregue ao consórcio por um grupo de investigadores digitais, está um dos agentes condenados no caso da Esquadra de Alfragide. No Facebook, João Nunes mostra ser simpatizante do Chega. O agente veio em defesa de Machado quando este se entregou no Estabelecimento Prisional de Évora e, meses antes, mostrou não ter qualquer arrependimento pela sua atuação em fevereiro de 2015. Numa publicação de novembro de 2019, chamou as vítimas de “vagabundos, que nada fazem além de vender droga e brincar com armas”, ao mesmo tempo que apelidou o sistema judicial de “madeira podre”.
Foi por sentirem que estes profissionais da PSP estavam a ser injustiçados que nasceu um movimento de polícias anónimo, o afamado e inorgânico Movimento Zero.
Tudo começou na sequência da decisão do Tribunal de Sintra, onde foram condenados os oito polícias, em maio de 2019. Um grupo de cerca de dez agentes da PSP, possivelmente da Esquadra de Odivelas, criou um grupo de WhatsApp para partilharem a sua frustração com o rumo do processo. Algo tinha de se fazer para combater aquilo que viam como sendo uma injustiça para com a polícia no seu todo, acreditavam. Rapidamente, por questões de logística, migraram para o Telegram. Era mais fácil alojar grupos maiores nesta rede social.
Num ápice, capitalizaram o descontentamento de dezenas de milhares de polícias, com a criação, igualmente, de uma página de Facebook. Apareceram no sítio certo à hora certa.
“Decidimos que tínhamos de começar a fazer a nossa própria partilha de notícias”, conta-nos Hugo Ernano, deputado municipal em Odivelas pelo Chega, eleito como independente. “O movimento surgiu para alarmar, chegar mais longe e demonstrar que aquela [a da Esquadra de Alfragide] não era a realidade”, enquanto apelida a decisão judicial do Tribunal de Sintra de “aberrante”.
Este militar da GNR, conhecido por ter sido condenado a nove anos de prisão (reduzida para quatro, após recurso) pela morte de uma criança cigana, não nos quis, porém, revelar se fazia parte do grupo inicial que criou o Movimento Zero. Neste momento, Ernano não se encontra no ativo, para poder exercer o seu mandato como deputado municipal. “Em 2019, não estava em comissão especial, ainda era agente da autoridade. Temos de ter certos cuidados, pois eu posso, se me apetecer, voltar para a GNR.”
Hoje, Hugo Ernano é presidente da Associação do Núcleo de Amigos do Movimento Zero, a associação do Movimento Zero.
A frustração dos agentes de autoridade, como dizíamos, já subia a pique há alguns anos, por causa do processo da Esquadra de Alfragide. Dois anos antes da decisão do Tribunal de Sintra, entre 100 e 200 polícias concentraram-se em frente à sede da PSP em Alfragide e, em julho de 2017, alguns profissionais ensaiaram um protesto contra o ministro da Administração Interna e o diretor nacional da PSP, que mais tarde também seria uma marca do Movimento Zero: viraram-lhes as costas.
No mesmo ano, apesar do ressentimento destes profissionais, o relatório da Inspeção Geral da Administração Interna aparentava colar a versão dos polícias ao seu documento.
O relator do documento, na altura inspetor-geral interino, José Manuel Vilalonga, para descredibilizar o testemunho das vítimas, minimizou cada uma das lesões dos seis agredidos com base nos relatórios hospitalares. “Uma dor. Um hematoma. Um arranhão. Nada!”, lê-se. “Aqui a exclamação não pode deixar de ser gritada!”, lê-se, mais adiante, no relatório, para mostrar indignação em relação à suposta incongruência dos testemunhos.
Em 48 páginas, a suposta falta de credibilidade dos testemunhos das vítimas é citada 16 vezes, enquanto as palavras “efabular”, “efabulação”, “hiperbolizaram” e “hiperbolizado”, para caracterizar o relato dos ofendidos, são utilizadas sete vezes.
“Ninguém cai em cima de uma shotgun. Ninguém cai repetidamente até partir os dentes na bota de um polícia. Ninguém fica com a cara completamente inchada porque foi contra as mãos do polícia”, afirma Lúcia Gomes, advogada das vítimas. “O tribunal considerou provado que houve agressão física. O tribunal de primeira instância e o tribunal da relação mantiveram todos os factos provados.”
Maria (nome fictício), na altura residente no bairro e que nos pediu anonimato por medo de represálias, foi visitar os jovens da Cova da Moura e também viu algo completamente diferente daquilo que consta no relatório da IGAI. “Quando chegámos ao hospital vimos pessoas que, fisicamente, não conhecíamos”, conta.
"Dificilmente concebo a possibilidade de alguém ser condenado em processo-crime e não o ser em processo disciplinar”, diz a inspetora-geral da IGAI.
Dêmos algumas linhas de contexto. Bruno Lopes foi agredido e ilegalmente detido pela polícia, que depois transportou-o para a Esquadra de Alfragide. Os polícias, por outro lado, alegaram que Bruno havia arremessado pedras contra o carro de patrulha que transportava os agentes, o que não se provou em tribunal.
Sabendo da situação, os dirigentes da Associação Moinho da Juventude, do Bairro da Cova da Moura, foram à esquadra tentar perceber o que se passara. Os polícias, por sua vez, alegaram que este grupo intentara uma invasão à esquadra, que o tribunal concluiu que não ocorreu. Rui Moniz, com quem iniciámos esta peça, estava apenas de passagem.
“O ano de 2015 é uma bofetada na cara”, diz-nos a moradora do Bairro da Cova da Moura, referindo-se ao que aconteceu quando quis prestar apoio às seis vítimas. “Percebemos que a polícia de proximidade acabou”, vaticinou. “Percebemos que não tínhamos ninguém com quem comunicar, que existe uma PSP fechada em si mesma e que não quer falar”, continua. “Os meus filhos veem shotguns nas mãos de polícias. Nunca as viram nas mãos de um morador da Cova da Moura.”
Ana Rita Alves é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e estuda a relação entre território e racismo habitacional. “Tornou-se um consenso político que estes bairros (de autoconstrução) são sítios de criminalidade imanente, construindo uma espécie de tríade entre raça, crime e espaço”, afirma. E os jovens racializados são quem mais sofre as consequências, sendo vistos como tendo “comportamentos desviantes e criminais que constituem um perigo racializado para o resto da cidade.”
No relatório que temos estado a citar, o segundo da IGAI em relação ao caso, transcreve-se parcialmente o relatório efetuado pela mesma instituição em 2015, redigido pelo mesmo autor. O tom é jocoso e vale a pena transcrever:
“Cabe preliminarmente colocar a seguinte questão: seria verosímil a deslocação à esquadra de amigos de Bruno Lopes, em grupo, para saber do detido? Pretendiam saber o quê? Onde estava? Estava na esquadra. Precisava de alguma coisa? Os agentes da autoridade iriam providenciar o que necessário fosse. Precisava de advogado? Não se fizeram acompanhar de nenhum. Queriam levá-lo ao hospital? Os agentes da autoridade providenciaram tal deslocação, como de resto veio a acontecer. Pretendiam apenas fazer-lhe companhia? Não era o momento adequado. Por isso, a questão subsiste: queriam saber o quê em relação a Bruno Lopes?”
A defesa de seis dos oito polícias condenados tem maior simpatia pela prova produzida pela IGAI do que a que foi produzido pelo tribunal. “A IGAI, do que me recordo, fez uma extensa investigação, com reconstituições, com autos de interrogatório, com uma apreciação sobre os depoimentos prestados por ambas as partes e entendeu que aquilo que aconteceu, efetivamente, decorreu de uma invasão da esquadra”, diz Gonçalo Gaspar, advogado de seis polícias condenados e do Sindicato Unificado da Polícia, onde estão sindicalizados os seis agentes. “Todos viram a sua conduta, o seu desempenho profissional e operacional [investigados] à lupa por parte da IGAI e por parte do núcleo de Ontologia e Disciplina.”
A IGAI, conhecida como a “polícia dos polícias”, instaurou nove processos disciplinares e sancionou três agentes. Por outro lado, foram julgados, no tribunal, 17 polícias e condenados oito. Esta discrepância incomoda a atual inspetora-geral da IGAI, Anabela Ferreira, que tomou as rédeas do cargo após a sanção.
“Lamento que tenha acontecido. Dificilmente concebo a possibilidade de alguém ser condenado em processo-crime e não o ser em processo disciplinar”, afirma Anabela Ferreira. “A condenação em processo-crime implica, necessariamente, a violação de um qualquer dever disciplinar. Não tendo sido essa a decisão, a IGAI concluiu mal.”
Quanto à atuação do subinspetor-geral, responsável pelo caso na altura, Anabela Ferreira diz que “a decisão não foi correta”. “Estou absolutamente segura de que o subinspetor-geral agiu de acordo com a melhor apreciação da prova que foi produzida”, afirma. “Por vezes erramos, terá sido o que aconteceu.”
Pedimos uma entrevista a José Manuel Vilalonga, relator do documento. Rejeitou.
“No caso de Alfragide, os agentes, até ao final do julgamento, fizeram-se acompanhar numa carrinha da própria PSP”, conta-nos José Semedo.
Uma análise que fizemos, por outro lado, mostra que a PSP instalou quase 29 mil processos aos seus profissionais entre 2006 e 2021. Conclusão: segundo o Balanço Social da PSP, 77,8% desses processos foram arquivados, 2,9% resultaram numa suspensão e apenas 0,8% tiveram como consequência a demissão.
De um lado, temos o apoio da IGAI aos polícias de Alfragide e a inação da PSP, por outro, a frustração dos profissionais das forças de segurança. Apesar do apoio do topo da hierarquia da PSP, segundo os advogados das vítimas.
“No caso de Alfragide, os agentes, até ao final do julgamento, fizeram-se acompanhar numa carrinha da própria PSP”, conta-nos José Semedo, também advogado das seis vítimas. “Não os apoiou de forma clara, foi sempre dizendo que tinham de aguardar. Mas financiou a carrinha. Indiretamente é um apoio claro por parte da instituição a esses agentes”, defende José Semedo.
“As hierarquias foram testemunhar para dizer que nada tinha acontecido”, diz Lúcia Gomes. “Não entendo, dentro de uma corporação, como é que se sancionam estes comportamentos de forma positiva”, continua, acrescentando: “Perguntei também porque estavam a ser utilizadas viaturas da PSP para os levar e trazer do julgamento. Responderam que não éramos interessados e, por isso, não tínhamos o direito a saber de nada. Enquanto cidadã, gostava de saber porque é que a PSP disponibilizou o transporte, para o Tribunal de Sintra, 33 vezes”.
“Continuaram a trabalhar tranquilamente. Os processos disciplinares foram empurrados para o momento posterior à condenação”, afirma José Semedo.
Seis dos oito polícias condenados no caso da Esquadra de Alfragide são ou eram sócios do Sindicato Unificado da Polícia. “O Movimento Zero surgiu de forma inorgânica e, que eu saiba, nunca esteve associado a qualquer sindicato”, afirma Ernesto Peixoto Rodrigues, na altura presidente do SUP e candidato pelo Basta, coligação de direita radical e populista liderada pelo Chega, às eleições europeias de 2019. “O sindicato e presidente na altura, que por acaso era eu, não teve qualquer responsabilidade na criação do Movimento Zero.”
A decisão do Tribunal de Sintra ocorreu no dia 20 de maio. Peixoto Rodrigues, no dia 30 do mesmo mês, partilhava, no Facebook, um comunicado do Movimento Zero. “É chegada a altura de todos responderem à chamada, de todos [,] lado a lado [,] lutarem pelos vossos direitos, sem desculpas, sem receios, sem quintas”, escreveu, ao mesmo tempo que partilhava o comunicado.
“Como lhe disse, o movimento não surgiu no seio do SUP”, insiste Peixoto Rodrigues. “Ainda hoje não sei quem foram os mentores desse movimento.”
Durante o julgamento, Peixoto Rodrigues defendeu afincadamente a atuação dos profissionais da PSP da Esquadra de Alfragide. O então presidente do SUP chegou a questionar, em declarações ao Diário de Notícias, o porquê da visita de observadores da Amnistia Internacional, que foram assistir ao julgamento: “Porque não vão para o Ruanda? Aqui não há nada para fazer, não houve tortura, nem há racismo na PSP”.
“Não me recordo de ter dito isso”, alega Peixoto Rodrigues. “Tenho algumas dúvidas se proferi essas declarações. Não posso confirmar nem desmentir.”
O então presidente do SUP proferiu as declarações: confirma-se. Hoje, todavia, elogia o trabalho da organização não governamental que atua em prol dos direitos humanos pelo mundo fora. “A Amnistia Internacional faz o seu trabalho, muitas vezes bem. E deve estar atenta áquilo que se passa no mundo e também em Portugal.”
O primeiro manifesto do Movimento Zero publicado no Facebook é dirigido ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, ao ministro da Administração Interna, ao diretor nacional da PSP e aos chefes e agentes da PSP. Os polícias, diziam, sentiam-se sufocados pelo escrutínio – da comunicação social, de ativistas e do poder político – feito no caso da Esquadra de Alfragide. E pelas acusações de racismo nas forças de segurança.
"Este desafio ao próprio Estado é uma forma de chantagem para que se continue a fechar os olhos sobre as intervenções violentas, muitas vezes desproporcionadas e racistas, por parte das forças de segurança.”
“Acreditamos que se criou um precedente perverso no nosso país, onde a legitimidade e imparcialidade da atuação das forças de segurança será imediatamente colocada em causa sempre que uma intervenção recaia sobre quaisquer minorias étnicas”, escreveram. “Os Profissionais da Polícia de Segurança Pública envolvidos neste movimento não se identificam com este novo paradigma, aparentemente defendido pelas novas políticas emergentes, onde se protegem minorias étnicas de modo diferenciado da restante população”. E não só: “Ou, pior ainda, por interesses político-económicos entre Portugal e outros países, particularmente os PALOP.”
Mamadou Ba, ativista do SOS Racismo, comenta: “Quando foi o caso de Alfragide foi muito curioso observar que a primeira reação do Movimento Zero foi dizer: “Se é assim que somos tratados por manter a ordem, então já não vamos manter mais a ordem”. E explica: “Ou seja, “já não vamos aos bairros”. Este desafio ao próprio Estado é uma forma de chantagem para que se continue a fechar os olhos sobre as intervenções violentas, muitas vezes desproporcionadas e racistas, por parte das forças de segurança.”
O surgimento do Movimento Zero chegou logo aos ouvidos de Carlos Torres, presidente do Sindicato Independente dos Agentes da Polícia. “Na altura soube logo da criação do Movimento Zero”, admite. “Uma vez que era um movimento com muitos aderentes, é natural que sim, que tenha havido muitos dirigentes, delegados e sócios do SIAP que defendiam e estavam integrados no Movimento Zero.”
E aderiu ao Movimento Zero? “Aderi, como grande parte dos polícias”, responde Torres. “Mas sempre pensando que era líder sindical e que tinha uma responsabilidade maior do que qualquer elemento policial que estava no grupo.”
O movimento entrou em força, recolhendo milhares de simpatizantes pelo país fora, e pretendeu, desde o início, ser uma força disruptora, substituindo os sindicatos nas reivindicações dos profissionais das forças de segurança: em junho já exigia a demissão de Eduardo Cabrita, então ministro da Administração Interna, e ameaçava parar o país; em julho apelava ao fechar dos olhos às contraordenações; em agosto ameaçava com uma greve ilegal; em setembro forçou a PSP a alterar as suas comemorações.
A Carlos Torres não incomoda que o Movimento Zero, na altura, tivesse ocupado um espaço que era dos sindicatos. “As medidas e as reivindicações defendidas pelo Movimento Zero são exatamente iguais às que os sindicatos reivindicam”, defende.
Já a Organização Sindical dos Polícias foi mesmo parceira do Movimento Zero. “Ainda fizemos duas manifestações e pusemos um outdoor” afirma Pedro Carmo, líder da OSP. “O objetivo era marcar presença e tivemos uma ligação nesse aspeto para tentar mostrar que somos todos um.”
Esta não é a posição dos sindicatos mais representativos que entrevistámos.
A história da luta pelos direitos laborais dos profissionais das forças de segurança é longa e conturbada. Foi mais de uma década depois da histórica manifestação dos “secos e molhados”, em 1989, e da pressão da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, a histórica e maior associação sindical da PSP, que se abriu espaço para a sindicalização dos profissionais das forças de segurança.
Mas a lei de 2002 (entretanto alterada, em 2019), que regulou a liberdade sindical e os direitos de negociação coletiva na PSP, veio com defeitos e abriu caminho para o multiplicar de sindicatos na PSP. Hoje existem 17 sindicatos na PSP, uma situação inigualável noutras áreas profissionais: certos sindicatos até têm mais dirigentes do que sócios, pois por vezes eram criados simplesmente para os seus aderentes gozarem as folgas mensais a que os dirigentes sindicais têm direito.
“Com o caminhar do tempo e face a objetivos de políticos para quem era importante não dar poder ao sindicato nesse setor, surgiram vários sindicatos, alguns deles inspirados por governantes”, diz Manuel Carvalho da Silva, antigo líder da CGTP que esteve na manifestação dos “secos e molhados”.
Um dos casos em que o número de dirigentes é igual ou maior do que o número de sócios é na OSP: em 2020, todos os 443 sócios eram dirigentes. “Mas neste momento já não são”, garante o presidente da OSP, Pedro Carmo. “Estamos com cerca de 200 dirigentes. Vamos fazer a reestruturação neste momento.”
A ASPP, a maior organização sindical da PSP, por seu turno, tem 63 dirigentes e cerca de cinco mil sócios.
“O Movimento Zero vem na sequência da proliferação de sindicatos”, defende Paulo Santos, líder da ASPP. “A proliferação de sindicatos serviu mais o poder político e a direção nacional da PSP do que propriamente os funcionários e profissionais da PSP.” Uma política que, segundo ele, abriu espaço para a “instrumentalização daquilo que são as expectativas e anseios dos profissionais” das forças de segurança.
“O surgimento desses movimentos é culpa dos políticos”, defende César Nogueira, presidente da Associação Profissional dos Guardas, da GNR. “Porque não dão resposta aos sindicatos e associações.”
O presidente do Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras vai mais longe na crítica ao Movimento Zero. “Rejeitamos qualquer processo que passe por esconder [os dirigentes]. Um movimento desses é um movimento cobarde, não há outra forma de o tratar”, afirma Acácio Pereira.
A hiperatividade nas redes sociais, com a partilha de conteúdos, a vitimização das polícias e o engrandecimento do movimento marca o tom do Movimento Zero no Facebook: entre 16 de junho e 24 de outubro de 2019, a página do Movimento Zero fez 318 publicações.
“A notícia, como sabe, é sempre toldada para criar alarme social”, afirma Hugo Ernano, criticando a comunicação social, para justificar a necessidade de a polícia ter meios, nas redes sociais, para mostrar a sua realidade. Ou para difundir, como o próprio Ernano diz, “alarme social”.
Numa análise que fizemos a 1030 publicações no Facebook publicadas pelo Movimento Zero na sua página, desde a sua criação até 16 de junho deste ano, só as palavras crime, criminosos, violência, violento, pânico, agressão, agressões, sociedades paralelas, vergonha e vergonhoso aparecem 156 vezes.
O objetivo da página é claro: mostrar que Portugal, constantemente citado nos rankings internacionais como um dos países mais seguros do mundo, vive uma espécie de guerra civil contra o crime. “Só acredita na falácia do 1º PAIS MAIS SEGURO DA EUROPA, quem obviamente retirar “dividendos” dessa promoção!”, lê-se numa publicação de agosto de 2020.
Os argumentos, todavia, também variam conforme o contexto. No primeiro manifesto, que citámos acima, o Movimento Zero diz o contrário. “Somos o 4º país mais seguro do mundo, e esse facto deve-se ao excelente profissionalismo, formação e proatividade dos Homens e Mulheres das Forças de Segurança deste País”.
Rapidamente também surgiu uma página de Youtube do Movimento Zero, em julho de 2019. Com mais de 185 mil visualizações até julho de 2022 e 100 vídeos publicados, a página do Movimento Zero nesta rede social é uma ferramenta de distribuição de desinformação e propaganda. E segue a mesma lógica da página do Facebook: as palavras crime, criminalidade, violência, sociedades paralelas, lobby racial e racismo seletivo surgem 16 vezes nos títulos e descrições dos vídeos que publicou.
Os vídeos sobre as “sociedades paralelas” são sempre sobre comunidades racializadas.
“Estamos perante [um movimento com] um ideário fascista. Essas estruturas são fascistas e o que lhe posso dizer é: fascismo nunca mais”, declara Acácio Pereira, presidente do sindicato do SEF.
Se o impulso inicial para a criação do Movimento Zero foi a decisão do Tribunal de Sintra sobre o caso da Esquadra de Alfragide, rapidamente e nos bastidores o movimento transformou-se. “O que veio depois é outra coisa”, como nos nota Paulo Santos, presidente da ASPP.
Essa foi uma realidade que a ASPP e a APG constataram quando organizaram a manifestação de novembro de 2019, a maior dos últimos anos, que juntou 13 mil pessoas em Lisboa. Foi paga pelas associações sindicais, mas tomada de assalto pelo Movimento Zero e por André Ventura, que foi recebido em apoteose pelos manifestantes.
“Houve ali um momento de campanha que a organização não preparou mas alguém preparou”, afirma César Nogueira. “Eu estive na organização e reuni com dois elementos do Movimento Zero”, confidencia. “A reunião foi comigo e com o Paulo Rodrigues [anterior presidente da ASPP]. Nós éramos os promotores, a logística foi paga pelas entidades que organizaram a manifestação, é para isso que os nossos sócios pagam quotas”, continua.
César Nogueira não quis dizer quem são os dois elementos do Movimento Zero que se reuniram com ele, apenas que a reunião foi a pedido do movimento com o fim de participarem no evento. “Somos todos profissionais, não fazia sentido dizer que não. Agimos de boa-fé”, confessa. Mas diz que se sentiu enganado. “Sei muito bem quando há estratagemas. Prepararam ali um comício do Chega e do André Ventura”, afirma, revoltado. O presidente da APG já conhecia um dos elementos do Movimento Zero com quem reuniu e acusa-o de não ter “coragem” para dar a cara.
“Houve ali uma agenda de alguém que aproveitou o estado de espírito dos polícias, que era muito agudo contra o poder político”, afirma, por sua vez, Paulo Santos, da ASPP.
Hoje desavindo com André Ventura, foi Nuno Afonso que se moveu nos bastidores e articulou com Hugo Ernano a entrada do líder do Chega na manifestação. “Não posso precisar se fazia parte do movimento ou não, mas fez a ligação entre o gabinete do deputado André Ventura e os manifestantes e a organização do evento”, revela o ex-chefe de gabinete do então deputado único.
“Eu disse ao Nuno Afonso que quem se quisesse manifestar, podia-se manifestar”, conta Hugo Ernano. “Para mim não é o doutor André. Para mim é o André.”
Ao contrário do vaiado Telmo Ferreira, na altura deputado pelo CDS, o líder do Chega foi recebido de braços abertos pelos manifestantes. Ventura tinha entrado no parlamento há pouco mais de um mês e esta receção foi a sua galinha de ovos de ouro. “Alavancou muito o partido e o próprio deputado nessa altura”, afirma Nuno Afonso.
Um político nunca tinha discursado numa manifestação de polícias organizada pelos sindicatos. “Nunca houve um apoio tão grande a um dirigente político, ainda mais patrocinado por polícias. Houve falta de consciência de classe”, diz Alberto Torres, líder histórico da ASPP, hoje reformado. “Logo no início foi afirmado por essa personagem que este tipo de sindicalismo tem os dias contados. E depois deram-lhe palco.”
Alberto Torres garante-nos que, se estivesse na organização da manifestação, Ventura não tomava o palco “acontecesse o que acontecesse”. “É um caso único no nosso país um líder político apoderar-se de uma manifestação que custou muito dinheiro”, diz. “Aproveitou o palco que era dos dirigentes sindicais.”
O aproximar das reivindicações dos profissionais das forças de segurança e a exploração do seu ressentimento foi uma estratégia eleitoral do Chega. “O presidente do partido percebeu que o Movimento Zero tinha muitos apoiantes e que movimentava muita gente”, relata José Dias, ex-vice-presidente do partido de André Ventura. “Viu que estava a dar votos, que podia haver algum ganho, e aproximou-se do Movimento Zero”.
Foi o ex-vice-presidente do Chega, que também é presidente do Sindicato do Pessoal Técnico da PSP, quem ofereceu a t-shirt do Movimento Zero que André Ventura usou no dia da manifestação.
“Nós éramos um partido muito ostracizado pela comunicação social, mas também pela sociedade civil. Éramos vistos como racistas, radicais e xenófobos”, diz Nuno Afonso. “A normalização vem sempre da parte da sociedade civil ou dos outros partidos”, continua. “O facto de essa aceitação ter vindo das forças de segurança e, ainda por cima, de uma base tão alargada e abrangente, acabou por ser muito positivo para o partido e para essa normalização de que precisávamos.”
Analisámos 3090 print screens sobre as interações no Facebook de 591 profissionais das forças de segurança que reproduzem discursos de ódio e apelam à violência. Nesta base de dados, que nos foi entregue por um grupo de investigadores digitais, 447 (75,6%) são simpatizantes do Chega. Neste bolo de apoiantes de André Ventura, 334 (75,1%) manifestam comportamentos racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos.
A tomada de assalto de Ventura, contudo, não foi a única surpresa da manifestação. Os manifestantes ostentaram o gesto “zero” com as mãos, associado a movimentos de supremacia branca: um símbolo que ficou conotado com “white power” [poder branco].
O Movimento Zero angariou, igualmente, algumas vozes com destaque na comunicação social. Os comentários de Suzana Garcia, candidata pelo PSD à câmara da Amadora nas últimas eleições, são reproduzidos sete vezes na página de Facebook do Movimento Zero e oito vezes no canal de Youtube.
Há outra voz que também se destacou no apoio ao Movimento Zero na comunicação social, a do subintendente Jorge Resende da Silva. Alojado na base de dados a que tivemos acesso, Resende explicou, em entrevista à TVI no dia 31 de maio de 2019, o “objetivo” do primeiro manifesto do Movimento Zero: “Este manifesto é um grito de alerta.”
Perguntámos a Hugo Ernano se reconhecia a participação de Jorge Resende da Silva no Movimento Zero. “Não reconheço, mas posso dizer que o subintendente Resende é um grande oficial da PSP. Ele privilegia o homem, não nos vê como um número”, disse.
Apesar de muitas promessas e de ameaçar revolucionar a luta dos profissionais das forças de segurança, o poder do Movimento Zero como força de protesto nas ruas rapidamente se desvaneceu. Durou apenas três anos.
Depois de algumas demonstrações falhadas, e de um aproximar do movimento Defender Portugal, de extrema-direita, o Movimento Zero constituiu-se como associação. Foi apenas duas semanas depois de termos entrevistado Hugo Ernano que o Movimento Zero lançou um comunicado no dia 5 de agosto deste ano a informar que se havia extinguido, mas que manteria a atividade nas redes sociais.
“O Movimento Zero parecia trazer soluções para todos os problemas, mas com o tempo percebemos que nada aconteceu. Não se pode dar grande crédito a um movimento sem rosto”, diz Alberto Torres, o líder histórico da ASPP.
No comunicado, o movimento culpou os próprios polícias pelo seu fracasso. “O Movimento Zero despede-se hoje (IN)CONFORMADOS dos COVARDES!”, lê-se. “A culpa da ausência é de todos aqueles que esperam que as conquistas sejam alcançadas sentados no conforto do lar, na praia, no café, enquanto fazem mais um remunerado ou apenas arranjam uma desculpa esfarrapada para justificar a sua falta de comparência.”
O próprio parceiro do Movimento Zero admite a inescapável fraqueza do movimento. “Uma coisa sem rosto e sem poder negocial ou institucional para colocar ações [judiciais]”, diz Pedro Carmo, presidente da OSP. “Naturalmente, o movimento não o pode fazer em representação dos polícias.”
O que não parece ter fim é o trauma de Rui Moniz. Os oito polícias de Alfragide foram condenados a pagar 70 mil euros às vítimas, mas a maior parte deste dinheiro ainda está para ser entregue.
Condenado a cinco anos de prisão, com pena suspensa, Luís Anunciação é o único que ainda não pagou a sua parte: 50 mil euros.
Lúcia Gomes garantiu-nos que a proposta avançada por Anunciação era insultuosa: “Digamos que quando alguém se propõe a pagar uma quantia muito pequena…”.
“Uma indemnização de 50 mil euros para um ordenado de 1350 euros” é difícil de pagar, defende Carolina Caçador, advogada de Anunciação. “Neste último ano o chefe recorreu a métodos para apresentar uma proposta mais sustentada.”
Mas nem é isso que parece atormentar Rui Moniz, que emigrou. Agora sempre que passa pelo Aeroporto Humberto Delgado, tem de reviver o horror por que passou em 2015. Já lá viu o chefe Anunciação duas vezes. “Fui acompanhar um primo meu ao aeroporto, depois quando entrei dei de cara com ele”, conta. “Fiquei em choque. Foi bem complicado.” Ao contrário da PSP, Gonçalo Gaspar confirmou-nos que Anunciação trabalha no Aeroporto de Lisboa.
Apesar das saudades que tem da Cova da Moura, Rui não quer voltar a Portugal. Tem medo. “Começaram a passar por mim, a ameaçar-me, a chamar-me nomes”, revela. Quem? “A polícia.”
Com Cláudia Marques Santos, Paulo Pena e Ricardo Cabral Fernandes. Este trabalho foi feito em colaboração com o Consórcio de Jornalistas de Investigação. Diana Matias (SIC), João Venda (SIC) e Rita Murtinho participaram na produção deste trabalho.
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