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Foto: Annie Spratt

Tânia Gaspar: “Os jovens estão numa encruzilhada: não há emprego e quando há os salários são maus”

A psicóloga, coordenadora do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis, considera que a pandemia mudou a postura das empresas em relação à valorização da saúde mental dos trabalhadores, mas que não bastam "atividades avulsas". E chama a atenção para os problemas dos jovens: sem autonomia e perspetivas de futuro, poderão cair numa "profunda crise de identidade".

Entrevista
13 Julho 2023

No passado mês de maio, o Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis (LABPATS), criado em março de 2022, publicou um relatório sobre o seu primeiro ano de pesquisa em empresas portuguesas. Foi perguntado a mais de 1800 trabalhadores se as chefias valorizam o seu bem-estar no local de trabalho ou se se sentiram exaustos nas quatro semanas anteriores.

Os resultados, ainda que não surpreendentes, não foram animadores. Cerca de 40% dos inquiridos não se sentem respeitados no local de trabalho e mais de metade sente que o seu trabalho não é valorizado. Quase 80% apresenta um dos vários sintomas de burnout e mais de 15% dizem sentir-se alvo de abuso físico ou psicológico.

Tânia Gaspar, psicóloga, coordenadora do estudo e fundadora do LABPATS, repara que já há muito “os psicólogos chamavam a atenção para o problema do burnout, mas ninguém lhes ligava”. Terá sido a pandemia a mudar essa postura, quando a saúde mental dos trabalhadores passou a ser um assunto premente e incontornável.

A psicóloga, também professora universitária e doutorada em Gestão, crê que as empresas perceberam que os seus resultados não serão tão bons “se as pessoas não estiverem bem”, mas ressalva que “há um imenso caminho a percorrer”. “A saúde mental e o bem-estar dos trabalhadores são questões mais profundas” que fazer um “‘dia da felicidade’ ou um workshop de mindfulness”, diz.

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tania gaspar
Tânia Gaspar é doutorada em Psicologia e em Gestão e mestre em Saúde Pública. É psicóloga clínic​​​​​a, professora na Universidade Lusófona, e foi investigadora principal para Portugal do estudo Health Behaviour in School-Aged Children da Organização Mundial de Saúde.

Gaspar começou por estudar a saúde física, psicológica e social dos jovens, no âmbito de um projeto da Organização Mundial de Saúde (OMS), e depressa percebeu que,para ter uma visão mais completa daquilo que influencia a saúde dos jovens teria de estudar também os pais e, depois, a relação destes com o trabalho. 

Sobre o momento de crise que atravessamos, avisa que “será importante estudarmos o seu impacto no aproveitamento escolar” e que os jovens estão mais tristes e mais preocupados. Sentem ansiedade sobre o futuro: os salários são maus e as rendas são altas. Há promessas de liberdade, mas não há garantias de autonomia. Têm “um horizonte gigante à sua frente, mas os caminhos para lá chegar estão cortados.”
 

O trabalho do Laboratório parte, sobretudo, de uma abordagem sobre a saúde mental dos trabalhadores. Porquê?

A OMS define "saúde mental" de forma muito interessante. Não fala de "doença mental". A pandemia ajudou a clarificar que não precisamos de estar doentes para não estarmos bem e a OMS diz que precisamos de sentir que estamos a contribuir para a sociedade para nos sentirmos bem mentalmente. Isso inclui as nossas tarefas familiares e laborais, mas também sermos capazes de nos adaptar a situações novas e de nos relacionarmos empaticamente com os outros.

Tudo isto deve ser promovido desde a infância. Como psicóloga, comecei por coordenar o Health Behaviour in School-aged Children, um estudo da OMS que investiga a saúde dos jovens até à universidade e que depois se alargou para incluir jovens em idade universitária. Tentamos ter uma visão global do jovem: da sua saúde física, psicológica e social em relação a diferentes contextos, como família, escola, amigos. 

A maioria dos jovens não sabe como gerir as suas competências sociais e emocionais e não tem confiança nas suas próprias capacidades. Isso faz com que raramente encarem os desafios com que são confrontados. Esses jovens vão crescer e acabarão por entrar no mercado de trabalho inseguros e pouco autónomos. 

Depois, decidimos estudar os pais. São os pais quem mais influencia o bem-estar dos filhos e esses pais são trabalhadores. Por sua vez, aquilo que mais influencia a saúde de um adulto, a par da família, é o trabalho. Foi aí que chegámos ao Laboratório, que agora coordeno, e que rebatizámos recentemente de Laboratório Português de Aprendizagens e Trabalho Saudáveis. 

A questão da aprendizagem é central de duas formas. Primeiro, inclui os jovens em formação. Depois, incluirá a aprendizagem ao longo da vida, fundamental e inescapável, com o constante evoluir das tecnologias e a consequente adaptação ao mercado de trabalho. Hoje, um adulto tem de estar sempre a adquirir novas competências e conhecimentos, especialmente em relação a tecnologias. Fenómenos como o "tecnostress" (stress relacionado com a introdução a novas tecnologias) e a adição digital são novos problemas de saúde com os quais também temos de saber lidar.

O relatório do Laboratório foi notícia por constatar que os trabalhadores portugueses estão em grave perigo de "burnout", mas isso não é necessariamente algo novo.

Há muito que os psicólogos chamavam a atenção para o problema do "burnout", mas ninguém lhes ligava. Se a pandemia trouxe alguma coisa boa, foi a valorização da saúde mental dos trabalhadores. As empresas perceberam que não terão resultados tão bons se as pessoas não estiverem bem. E as novas gerações de trabalhadores valorizam empresas que tenham essas preocupações como imagem de marca. Está a haver uma mudança de paradigma, até por uma questão de competitividade.

Obviamente que há um caminho imenso a percorrer. Muitas organizações deixam-se ficar por atividades avulsas. Há um "dia da felicidade" ou um workshop de mindfulness. Isso não basta, a saúde mental e o bem-estar dos trabalhadores são questões mais profundas que isso. É preciso haver mudanças institucionais. Felizmente, tenho visto isso acontecer cada vez mais.

A pandemia mostrou que, afinal, havia outras formas de trabalhar.

E há uma tendência para o ignorar e se voltar ao que era antes, mas as pessoas já não querem. Ou já não conseguem. Houve uma série de profissões, tradicionalmente desvalorizadas, que mostraram a sua natureza fundamental durante a pandemia. Hoje, esses trabalhadores entendem quando estão a ser desvalorizados e facilmente mudam de emprego. Um ordenado mínimo é um ordenado mínimo, não têm grande coisa a perder, então procuram um local onde sejam tratados devidamente.

Depois, os jovens perceberam que podem perfeitamente trabalhar a partir de casa e já não querem ir todos os dias para o escritório. Se os tentam obrigar, despedem-se. Se vão a uma entrevista de emprego, incluem-no nos seus critérios.

No relatório, entendemos que o ideal é a situação híbrida. São os trabalhadores que trabalham parte do tempo em casa e outra parte no local de trabalho que relatam maior bem-estar. Traz o melhor dos dois mundos. Não deixa de haver contacto com os colegas e as chefias ao mesmo tempo que se pode gerir melhor o trabalho, incluindo o doméstico, e o lazer. 

Ao mesmo tempo, o trabalhador sente que a empresa confia nele e na sua competência, e pode sentir-se mais realizado na sua autonomia. Pode parecer óbvio, mas ninguém quer sentir-se apenas como uma roda na engrenagem. O trabalhador quer ser visto como uma pessoa.

"Vários trabalhadores queixaram-se de nunca terem sido chamados a dar uma opinião, a serem ouvidos. Falar com as pessoas vale mais que uma festa."

Muitas empresas, ao invés de melhorarem as condições de trabalho ou a salubridade dos ambientes de trabalho, inventam "dias de pizza" e atividades semelhantes. No relatório, porém, está bastante claro que os trabalhadores sabem o que é preciso para que um ambiente de trabalho seja mais saudável. Porque há esse desfasamento?

Os empregadores ainda não estão suficientemente sensibilizados sobre a relação entre o bem-estar do profissional e um melhor rendimento económico-financeiro. No doutoramento que fiz em Gestão construí um modelo estatístico que prova isto. Se a cultura organizacional for mais centrada no bem-estar, se houver menos riscos psicossociais no trabalho, se o profissional estiver mais envolvido, há melhores resultados para a empresa. Profissionais mais felizes, mais dinheiro. É uma linguagem que o management compreende, porque uma empresa tem de dar lucro.

Uma pessoa satisfeita, que vai trabalhar feliz, é mais eficiente e a qualidade do seu trabalho será superior. Esta relação está estabelecida. É muito fácil constatá-lo empiricamente. Mas não está suficientemente comprovado para que as empresas invistam nisso, pegando num pedaço dos seus lucros para tornar os seus profissionais mais felizes. Ainda acham que o trabalhador é um número e que se não está a funcionar basta mudar o trabalhador.

Por outro lado, as empresas que já perceberam que vale a pena não sabem como fazê-lo. Então fazem uma festa, uma atividade. Nós temos um manual de boas práticas, que pode ser descarregado gratuitamente no site, que explica as mudanças organizacionais que podem ser feitas. É algo que tem de fazer parte da cultura da empresa. Vários trabalhadores queixaram-se de nunca terem sido chamados a dar uma opinião, a serem ouvidos. Falar com as pessoas vale mais que uma festa.

O LABPATS trabalha diretamente com as empresas?

Sim. Aplicamos um questionário construído através de um modelo da OMS e avaliamos a empresa. Devolvemos o relatório com recomendações sobre o que achamos que deve ser trabalhado. Algumas empresas pedem a nossa ajuda para fazer uma intervenção e, aí, fazemos uma avaliação qualitativa. Fazemos grupos de referência — desde a senhora da limpeza até ao administrador — e um retrato de todas as funções e hierarquias da empresa.

Entrevistamos as pessoas e tentamos perceber o que é importante para elas. E fica claro porque é que há dificuldades de comunicação dentro das empresas. Quem está nos níveis superiores da hierarquia tem uma visão estratégica da empresa, não se preocupa com o funcionário que tem a esposa doente ou tem de tomar conta da filha. O funcionário, por sua vez, que não tem essa visão estratégica, tem a sua perspetiva e não está necessariamente preocupado com o lucro e os acionistas, não participa nessas decisões estratégicas.

As lideranças intermédias acabam por ser sacrificadas no meio de tudo isto. São, muitas vezes, trabalhadores que foram promovidos das hierarquias inferiores e que sentiram na pele as dificuldades desses funcionários, mas que passaram a uma posição em que são pressionados pelas hierarquias superiores a trabalhar para atingir objetivos. É difícil gerir isso.

E que pode dar naquilo a que chama de "lideranças tóxicas".

Uma liderança tóxica acaba por prejudicar toda a equipa, porque legitima determinados comportamentos, que depois serão replicados, como a desvalorização e a humilhação. Estas pessoas agem assim porque não têm nem competências nem autonomia ou poder de decisão. Então, ficam frias, defensivas e hostis.

Uma liderança deve ser assertiva. Não deve ser agressiva nem passiva. Se for passiva com a hierarquia superior, esta vai pedir-lhe sempre mais. Se for passiva com os trabalhadores, rapidamente deixa de ser líder. Se for agressiva, criará sempre mal-estar, de ambos os lados. Se estes líderes tivessem mais capacidade de gerir as suas emoções, lidar com estes desafios e depois comunicar tanto com as chefias como com os trabalhadores de maneira mais assertiva e aberta, evitavam-se imensos problemas. Se tivesse de escolher um ponto único de intervenção nas empresas, seria nas lideranças intermédias.

Os valores elevados nos indicadores de sintomas de "burnout" também advêm daí?

São um reflexo do trabalho, claro, mas também da própria sociedade. Estamos a passar por uma altura complexa da nossa existência. Passámos por uma pandemia. Lidámos com isso, mas mexeu em algo estrutural. Muitas certezas deixaram de o ser e isso cria desassossego.

Vários fatores influenciaram a forma como se lidou com isso. O género é um deles. As mulheres sofreram mais com a pandemia. Primeiro, a maioria continuou a trabalhar: nas caixas dos supermercados, nos lares, nos hospitais, nas escolas. Depois, as que ficaram em casa levaram com uma sobrecarga de trabalho doméstico. Também foram mais as mulheres a ficar sem trabalho ou a ter cortes de vencimento.

Outro fator foi o estado de saúde mental antes da pandemia. A OMS diz que cerca de 20% das pessoas tem problemas de saúde mental diagnosticados. Haverá muito mais pessoas com problemas ligeiros de saúde mental. Essas pessoas estão mais frágeis e têm menos robustez para lidar com isso. Quem tinha ansiedade, fobia social ou perturbações obsessivo-compulsivas sofreu muito. Muitas pessoas tiveram imensa dificuldade em desconfinar.

O trabalho prestado durante a pandemia também foi um fator. Para determinadas pessoas terá sido uma experiência pouco gratificante. Uns ficaram em casa sem nada para fazer, sem saber o que fazer com o seu tempo. Outros ficaram a trabalhar em casa sob grande pressão. Muitas empresas assumiram posturas pouco éticas no controlo dos trabalhadores, de maneira quase persecutória, como, por exemplo, registar o tempo que alguém estava offline ou ausente do computador. As condições habitacionais também tiveram grande peso. Houve mais conflitos familiares e muitas pessoas não tiveram a possibilidade de ter e estar no seu espaço.

"Não nos perguntamos como é que as pessoas estão a gerir o aumento brutal do custo de vida. Uma pessoa trabalha e não consegue ter a sua autonomia. Isso tem um impacto emocional."

Já é possível avaliar os impactos da atual crise na saúde mental das pessoas?

Não percebo como não falamos mais disso. Os portugueses não têm grandes poupanças, não há muita folga, e não nos perguntamos como é que as pessoas estão a gerir o aumento brutal do custo de vida. Como é que uma família comum consegue pagar o dobro da renda? Admira-me esta situação ainda não ter tomado proporções mais graves.

Na crise de 2010 sentimos isso na universidade: os alunos deixaram de ir às aulas. Os pais não tinham dinheiro para pagar as propinas. Outros trabalhavam para pagar os estudos e ficaram desempregados. Neste momento, ainda não vejo isso. O sistema está a conseguir ajustar-se, mas espero que seja sustentável e não algo que nos rebente na cara mais à frente.

A economia é uma parte basilar do nosso bem-estar. As nossas necessidades básicas têm de estar satisfeitas e muitas pessoas não estão a conseguir fazê-lo. E não estamos a falar de pessoas desempregadas, mas de pessoas que trabalham, às vezes casais em que ambos trabalham e não estão a conseguir safar-se. Isto cria uma situação complexa em termos de valores: uma pessoa trabalha e não consegue ter a sua autonomia. Isso tem um impacto emocional.

Os jovens, por seu lado, estão a estudar também com o objetivo de garantir a sua autonomia. Que mensagem lhes estamos a passar como sociedade? O abandono e o insucesso escolar podem bem aumentar a médio ou longo prazo. Será importante estudarmos o impacto desta crise no aproveitamento escolar.

Se olharmos para os motins que estão a acontecer em França, reparamos que aqueles jovens têm baixa escolaridade e que não têm trabalho. Não têm nada a perder. Era bom aprendermos alguma coisa com isso. Como vou convencer um jovem a estudar se a escola está desligada da realidade e os professores estão desmotivados? Como o levamos a desenvolver competências que o possam tornar num profissional se não garantimos que ao trabalhar ele vai conseguir a sua autonomia?

O que dizem os estudos sobre a saúde mental dos jovens?

Os jovens não estão bem. Estão mais tristes, mais preocupados. Há a ideia de que os adolescentes só não pensam no aqui e no agora, mas isso não é verdade, eles têm pensamentos muito sérios sobre as coisas e também sentem ansiedade sobre o futuro.

Estamos numa fase de transição societal. Há 20 anos, os papéis de género estavam muito bem estabelecidos. Havia uma diretriz sobre o que fazer da vida: ter um trabalho, uma casa e uma família. Isso já não existe. O que não seria necessariamente mau se essa liberdade viesse com oportunidades. 

Não há emprego, e quando há os salários são maus, não vão conseguir sair de casa dos pais. Os miúdos acabam por ficar ainda mais tramados. Há um horizonte gigante à sua frente, mas os caminhos para lá chegar estão cortados. Isso cria uma profunda crise de identidade. Não estamos a fazer um bom trabalho.