Afeganistão

Ricardo Alexandre: "O jornalismo de guerra é cada vez menos interessante"

O jornalista lançou este mês o livro Breve História do Afeganistão de A a Z. Em entrevista ao Setenta e Quatro, Ricardo Alexandre relembrou a estadia marcante como correspondente de guerra da RTP no país, o que mudou nas redações desde aí e a importância de não abandonar o povo afegão.

Entrevista
17 Fevereiro 2022

No final de 2001, o mundo estava com os olhos postos no Afeganistão. Os talibã recuavam, a Aliança do Norte avançava e a invasão norte-americana estava iminente. Centenas de jornalistas tentavam chegar a Cabul o mais depressa possível e por qualquer meio ao seu dispor. No dia 19 de novembro, na estrada que liga Jalalabad à capital, quatro jornalistas foram sequestrados por um grupo de homens armados.

Julio Fuentes, María Grazia Cutuli, Harry Burton e Azizula Haidari seguiam em direção a Cabul numa coluna de vários automóveis. Foram mortos a tiro e os seus corpos mutilados encontrados no dia seguinte.

Ricardo Alexandre, jornalista, atual diretor-adjunto e editor de política internacional da TSF, havia feito o mesmo caminho uns dias antes. Após alguns dias sem saber como fazer para entrar em Cabul, teve “o rasgo” de se meter num autocarro de passageiros com vários colegas portugueses. Funcionou, mas também podia ter corrido mal. 

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Ricardo Alexandre
Ricardo Alexandre é jornalista há mais de 30 anos. 

O antigo editor de política internacional da RTP cobriu vários conflitos em vários lugares no mundo nos últimos 30 anos. Passou pela Palestina, por Timor-Leste, pela Ucrânia, e especialmente pela Jugoslávia, onde acompanhou de perto a guerra civil nos anos 1990. 

Pouco menos de 20 anos depois de ter percorrido a perigosa estrada que o levou a Cabul, o jornalista português assistiu de longe ao retorno do domínio talibã, algo que não considera nem inesperado nem inevitável.

De uma insónia e de uma tentativa de entender que nova etapa começara no país naquele 15 de agosto de 2021, nasceu uma Breve História do Afeganistão da A a Z, lançado este mês. Numa interseção entre história e jornalismo, Ricardo Alexandre organiza milénios de História e décadas de conflitos de maneira enciclopédica “para facilitar a leitura e a consulta”, aludindo, pelo meio, a entrevistas que o próprio conduziu, de 2001 para cá, e às suas memórias e notas de reportagem no terreno.

À conversa com o Setenta e Quatro, explicou como “carregou” o livro com várias dimensões, da ciência política à sociologia, para escapar a uma abordagem simplista. Falou-nos do que viu e ouviu naquele país da Ásia Central que andou “de ditadura em ocupação e de ocupação em ditadura” e do que mudou em 20 anos na maneira de fazer jornalismo de e sobre guerra.

Para Ricardo Alexandre, o retorno talibã é uma clara derrota para uma comunidade internacional que poderia ter feito muito mais para a impedir. Sem deixar de insistir no que já se sabe que foi mal feito, considera que agora é necessário “pragmatismo” para proteger o povo afegão e “garantir que o país não colapsa”.

Sei que já falou disto muitas vezes, mas gostava de ir ao início, de entender como o livro acabou por acontecer. Sei que começa numa noite de insónia e que veio de enxorrada.

Sim, de certa forma foi. Convém dizer, antes demais e enquanto jornalista há mais de 30 anos, que nunca gostei de estar a vender banha da cobra. Não sou um especialista no Afeganistão. Com o livro publicado é possível que olhem para mim enquanto tal. 

Se há alguma área do mundo que estudei a fundo, e na qual poderia ser considerado especialista, com todas as aspas, seria a região dos Balcãs. E mesmo assim... Publiquei um livro sobre os Balcãs, fiz uma tese de mestrado e outra de doutoramento sobre os Balcãs, fui para lá inúmeras vezes, falo um bocadinho a língua local. 

Mesmo com isso tudo, se hoje em dia me fizessem uma série de perguntas sobre os Balcãs, teria de ir estudar, teria de ir preparar-me, porque com a quantidade de informação que circula à nossa volta, principalmente para quem é jornalista, estamos constantemente afogados em coisas. Não temos condições para estarmos focados num assunto e sermos especialistas nele e em tudo o que estiver relacionado com ele.

Portanto, este livro não é uma tese de doutoramento, não é o livro definitivo sobre o Afeganistão. É um livro que resulta de duas ou três coisas diferentes. Primeiro, de perceber que era importante o que estava a acontecer a 15 de agosto [de 2021, quando os talibã entraram em Cabul]. Perceber o culminar, nesse dia, daquilo que já se sabia que poderia estar para acontecer – porque se sabia.

"Houve uma altura em que mesmo os talibã poderiam ter sido chamados ao processo de reconstrução do país: depois de terem sido derrotados."

Depois, toda a informação que estava disponível sobre o assunto, cruzando-a com o investimento que tinha feito anos antes em livros e publicações académicas sobre o Afeganistão. E isso tudo misturado com a minha própria experiência no terreno.

Fui em novembro de 2001 assistir à queda dos talibã e agora os talibã estavam a regressar ao poder. Assisti à esperança das pessoas perante a queda do regime, ouvi as expectativas e os anseios das pessoas sobre aquilo que iria ser o futuro do país. Agora vimos algo que seria, se não uma machadada final, pelo menos um rude golpe nessas expectativas e nesses anseios. No fundo, foi o cruzamento dessas várias dimensões que me levaram a escrever.

Lá está, num momento de férias, em que tinha mais disponibilidade, em que estava a dormir menos, e como às 4h da manhã não é uma boa hora para ir para a praia, comecei a escrever. Quando acabei as férias não tinha o livro feito, mas já tinha uns 200 mil caracteres. Entretanto, contactei a editora, eles mostraram-se interessados e assim foi.

Como é que decidiu esta disposição alfabética? Foi para afastar do livro essa visão de livro definitivo ou tese de doutoramento?

Pretendia que fosse uma coisa simples, de fácil consulta. Partindo do princípio que muitas pessoas não terão vontade ou disponibilidade para ler o livro todo, mas que pontualmente poderão precisar de alguma coisa que está neste livro. Quem quiser saber mais sobre os talibã não precisa de ler o livro todo – gostava que o fizessem, mas não precisa. Basta ir à letra T e ficam a saber alguma coisa sobre eles. Alguma coisa mais que aquilo que possa estar numa pesquisa feita no Google. 

A mesma coisa em relação a Jalalabad ou a Cabul, ou às mulheres afegãs. Ainda que o exercício tenha sido algo difícil, porque não é por ter os talibã na letra T que eles não percorrem o resto do livro de uma forma ou de outra. Não é por falar em Cabul na letra C que Cabul não deixa de estar presente ao longo de variadíssimos momentos do livro. Cruzar essas coisas, editar repetições, ao mesmo tempo ser redundante naquilo em que era forçoso sê-lo, obrigou a isso. 

Mas a ideia, no fundo, foi essa: facilitar a vida às pessoas, permitir que o livro possa ser encarado não só como um objeto de leitura, mas também como fonte de consulta direta e específica. 

O livro tem muitas notas memoriais, de reportagem, mistura uma linguagem mais enciclopédica ao falar da geografia ou da orografia com a própria história do país. Esta mistura foi para facilitar a leitura, como disse, ou a forma que encontrou para contar estas histórias do seu jeito? 

Para facilitar, sim, mas também a partir de alguma curiosidade que sempre tive e tenho pelas coisas da História. O Jornalismo não é História. A História tem pressupostos científicos balizados e claros e isto não é um livro de História, mas não faz sentido fazer jornalismo quando se está a retratar uma realidade política de um determinado país sem ter em conta a história. A história tinha que estar lá. 

Depois, o facto de a minha formação de base ser em Sociologia. A Sociologia ajuda-me a dar importância às várias dimensões dos comportamentos dos indivíduos em sociedade e não ficar apenas pela espuma dos dias.

Os próprios estudos académicos mais recentes em relações internacionais fazem-me atribuir um bocadinho mais de importância do que é habitual a um tipo de leituras menos óbvias e tentar, sempre que acho que se justifica, dar alguma substância mais teórica a determinados fenómenos. No olhar puramente jornalístico ou são notícia ou não são notícia, não sendo não interessam. Quis tentar ver além disso. 

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ricardo alexandre
Ricardo Alexandre publicou este mês Uma Breve História do Afeganistão de A a Z, pela Oficina do Livro.

Como foi voltar aos blocos de notas?

Foi muito interessante. Sinceramente, foi aquilo que mais me deu gozo. Pela situação em si, de ter condições de poder recuperar uma série de coisas que poderiam estar, vagamente, na minha cabeça e outras de que já não me lembrava. Depois, perceber a riqueza que poderia trazer para aquilo que estava a escrever. Quando comecei a escrever o livro estava só a basear-me naquilo que estava a ler no momento, na atualidade, naquilo que todos estávamos a ver no momento e mais alguma coisa e que eu, por ter mais algumas fontes, poderia saber procurar melhor. Mas não tinha os blocos de notas de há 20 anos comigo.

Esse trabalho foi carregado depois, digamos assim. Voltar a isso foi muito curioso, perceber, "ok, com isto vai ficar uma coisa em condições". Até para perceber que, 20 anos depois, com a forma como hoje se trabalha, diferente da da altura, com a internet que temos hoje, há determinadas coisas que não teria feito da mesma forma. E chegas à conclusão: "isto podia ter sido feito tão melhor do que foi".

Deu um novo sentido às notas? Sentiu que havia nelas alguma narrativa que se provou errada?

Não tanto um sentido, mas mostrou-me uma forma de fazer as coisas. É preciso ver que quando trabalhei no Afeganistão, no terreno, aquelas semanas todas no Paquistão, o meu trabalho foi sobretudo para noticiários de televisão. Peças de dois minutos para a hora do almoço e do jantar. Não havia diretos intermináveis, como hoje. Era só fazer reportagem: ter uma reportagem pronta ao fim do dia e outra de manhã. Fazer duas reportagens por dia naquele contexto já era óptimo e foi isso que fomos conseguindo fazer. 

Mas é um tipo de escrita que quando olhas à distância, com um pouco mais de experiência, vês e pensas: "se calhar isto é um bocadinho simplista demais". Posso ter sido demasiado simplista na forma como expliquei isto ou aquilo, como observei esta realidade ou aquele problema. Mas acho que é natural, não me envergonhou olhar para aquilo.

Diz a certo ponto que "não há estatística que valha ao povo afegão". A maneira como vai pontilhando a descrição factual com episódios que lhe aconteceram, com coisas que viu e outros relatos, dá mais dimensões ao livro.

A ideia foi essa e fico feliz que assim seja. E não foi só com aquilo que vi na altura, foi também a forma como olhei para os acontecimentos de 15 de agosto em diante e, bastante importante, as conversas que fui tendo com pessoas que estiveram lá ou eram de lá.

Quem acompanhou minimamente, ao longo dos anos, o que aconteceu no Afeganistão não se surpreendeu com o que aconteceu a 15 de agosto. É evidente que quando estava para acontecer eu sabia a que portas havia de bater para falar com as pessoas. Foi o que fui fazendo nos programas da TSF. Tinha o mínimo de fontes para isso, opiniões de especialistas, verdadeiros especialistas.

Também diz que "nada deve dissuadir o jornalismo de questionar os propósitos de qualquer guerra" e fala da guerra do Afeganistão – ou da ocupação americana – quase como uma escola de repórteres de guerra. O que mudou de lá para cá no jornalismo de conflito?

Acho que é cada vez menos interessante. É cada vez mais difícil tu poderes estar por tua conta e risco a observar os vários lados de um conflito. Tornou-se também mais perigoso porque os jornalistas deixaram de ser vistos como elementos neutros. Desde logo, são considerados por partes de organizações terroristas ou extremistas como alvos a abater. E, quando só tens condições mínimas de segurança, se estiveres inserido dentro de um contingente militar torna-se mais seguro, mas também é mais uma responsabilidade que esses militares têm. 

Aprecio o esforço de quem, a nível militar, gere esse tipo de coberturas. Independentemente de os jornalistas saberem com o que contam quando estão ali, os militares também sabem que durante aquelas semanas que têm ali outros profissionais estão responsáveis por eles. 

E que nós, jornalistas, não estamos preparados como eles para aquilo que estão lá a fazer, que é combater numa guerra. Para eles não deixa de ser complexo e acho que é um "esforço" – lá está, com as aspas todas, porque eles também ganham com isso.

"Era a primeira vez desde as guerras em África que havia tropas portuguesas no estrengeiro. Andava tudo doido com a Bósnia. Chegámos a ser 20 jornalistas portugueses em Sarajevo."

E se for ao contrário? E se eu, por um conjunto de circunstâncias, tiver uns contactos que me permitem estar próximo dos talibã ou da Al-Qaeda ou do Daesh? Vamos supor. Não tendo eu qualquer atividade terrorista, nem perfilhando qualquer ideia extremista, mas imaginando que consigo ter acesso a uma organização dessas e ver um determinado conflito do lado deles. Garanto que na mesma altura passo a ser um alvo a abater também pelas forças militares convencionais que os estão a atacar. Não me vão querer poupar mesmo sendo jornalista. 

Portanto, deixámos de ser vistos como elementos neutrais. Temos menos margem, movimentos mais limitados. Isso empobrece o trabalho que se pode fazer. Outra coisa que não ajuda muito a quem gosta ou gostaria de fazer esse tipo de coisas – e eu ainda gosto – é que a tecnologia veio atrapalhar-nos um bocadinho.

E sendo a dimensão de risco elevada, sendo o custo natural e igualmente elevado – na situação em que a maior parte das empresas está, é sempre muito elevado – e depois percebendo que, "mas calma, se a ideia é ouvir os afegãos, eu consigo-os ouvir por WhatsApp ou por Zoom". Fazem-se as entrevistas na mesma e os entrevistados contam o que está a acontecer.

Deixa de ser o nosso olhar, um olhar independente, culturalmente português, ligado ao nosso tipo de realidade. Mas a verdade é que conseguimos fazer muita coisa sem levantar o rabo da cadeira. Isso tornou as empresas mais acomodadas, menos disponíveis para arriscar.Se por um lado nos dá ferramentas que há 20 ou 30 anos não tínhamos, por outro lado também faz com que as empresas de comunicação pensem duas, cinco, dez vezes antes de mandar alguém para lá. Ponderam sobre o que é que ganham com isso, quanto é que custa e qual o risco.

A questão na Ucrânia, por exemplo. Sei que alguns camaradas meus, felizmente, foram para lá e já temos tido reportagens da Ucrânia, mas na verdade ainda não aconteceu nada. E é natural que, da parte de empresas, que não são empresas públicas, haja mais cuidado. Valerá a pena estar a apostar naquilo quando ainda não aconteceu nada? Gasta-se o tiro em pólvora seca ou vai-se guardar a aposta para quando estiver alguma coisa a acontecer? Este tipo de decisões, informadas pelo risco e pela segurança, pelos constrangimentos financeiros e pelo desenvolvimento tecnológico, prejudicaram imenso aquilo que eram tradicionalmente as coberturas em cenários de conflito.

Fica tudo destilado ao facto?

Ainda que não fique, fica-se pelas reações, pelas emoções, pelas opiniões e pelas vivências das pessoas que estão lá. Mas estás a ver as coisas pelo olhar dos outros, não pelo teu olhar.

Quando foi para o Afeganistão, foi com um repórter de imagem e com um intérprete, mas refere no livro que a CNN, por exemplo, levava umas 20 pessoas. Qual era o esforço, em 2001, de ter um enviado especial num cenário de guerra?

No geral, as empresas de comunicação social tinham mais saúde financeira – ou não tinham, mas não se importavam muito e mandavam gente na mesma. O melhor exemplo é o da Bósnia. É o que ilustra melhor o que foi o jornalismo nos anos 1990 e na primeira década deste século. 

A Bósnia foi importante porque foi a primeira guerra que nos entrou pelas televisões à hora do jantar, com imagens muito marcantes, muito duras. Crimes cometidos contra populações civis, aqui muito perto, na Europa, e tudo isso nos entrou pelos olhos adentro. Depois, porque as tropas portuguesas vão para lá em janeiro de 1996 e morrem logo dois militares por causa de uma mina anti-pessoal, mais uns que ficam feridos num acidente. Há ainda pequenos focos de conflito, há os sérvios bósnios a serem corridos dos bairros à volta de Sarajevo e que ao saírem pegavam fogo às suas casas. Havia uns tiroteios esporádicos, havia snipers.

"Em Cabul, não se percebia se tal prédio havia sido destruído pela NATO, pelos talibã ou pelos soviéticos. Aquele era mais um capítulo na destruição do país."

Há militares portugueses a ir para lá, é o poder simbólico disso é que faz a diferença, porque foi a primeira vez que houve contingentes militares portugueses a ir para o estrangeiro depois das guerras em África. 

Era a primeira vez que as tropas portuguesas iam para um cenário de conflito. Já não era uma guerra aberta, mas era um conflito. Isso resulta no quê? Resulta em chegarmos a ser uns 20 jornalistas portugueses em Sarajevo numa altura em que estavam uns três espanhóis. E os espanhóis tinham lá tropas, também. Comparemos a dimensão do país, a força das empresas de comunicação social, e tínhamos 20 portugueses e três espanhóis. Andava tudo doido com a Bósnia.

Havia história para 20 jornalistas?

Sim, ou repetíamos histórias. Ou fosse o que fosse, tudo quanto era rádio ia para lá, tudo quanto era jornal, televisão. Faziam-se rotações de equipas em que se acumulava uma semana. Ou seja, uma equipa chegava e a outra antes de ser rendida ficava lá mais uma semana. Isto seria impensável hoje em dia.

Já não aconteceu no Afeganistão.

Já não, ainda assim, quando entrei em Cabul, no nosso autocarro ia a RTP, a RDP, o Jornal de Notícias e o Diário de Notícias. Outros jornais foram por outros caminhos, a SIC e a TVI foram por outros caminhos. Apesar de tudo, íamos. Hoje [depois da queda de Cabul] ainda ninguém foi ao Afeganistão. Percebo a questão da segurança, acho relevante, mas não é mais nem menos seguro que para outros meios de comunicação. Já vi reportagens em Cabul feitas pelo El País, do La Vanguardia, do Le Figaro, do Le Monde, de jornais belgas, suíços, italianos.

É a economia? É a rentabilidade? É menos interessante uma catástrofe humanitária que uma guerra?

São a economia e as opções editoriais. Sendo diretor de internacional, gostava de ter jornalistas meus fora do país a fazer reportagens em todo o lado. E não é por falta de vontade. É por saber as condições que temos ou deixamos de ter para isso. 

Mas no outro dia fiquei surpreendido quando vi, numa televisão portuguesa, um enviado especial na Dinamarca, porque a Dinamarca tinha levantado as restrições e as medidas de confinamento. Não vou dizer que não é relevante, mas é disto que estamos a falar. Não vi se foi tudo para Marrocos naquele fim-de-semana por causa da criança que caiu ao poço. Mas nesse tipo de coisas aposta-se logo. Um país do norte da Europa levanta as medidas de confinamento e põe-se uma equipa lá, mas para fazer uma reportagem em Cabul não? 

Esse silêncio em relação ao Afeganistão é constrangedor?

Não acho que seja, porque há outras formas de continuarmos a fazer coisas. Seja pelas pessoas que chegaram entretanto, e ainda bem que as recebemos, seja pelas condições tecnológicas que temos para ouvir as pessoas. No livro falo com uma pessoa que estava no vale de Panshir, na chamada resistência ao talibã. Consegui falar com ela por WhatsApp. Mandei-lhe o link do trabalho que fiz e ele agradeceu. Isto era impensável há 20 anos. Isso ajuda-nos, se quisermos, a manter a atenção sobre um determinado assunto. Agora é evidente que é diferente. 

Há 20 anos quando lá chegou, o Afeganistão já era um assunto particular para si?

Quando George W. Bush decide invadir o Afeganistão por ser um porto-de-abrigo da Al-Qaeda e do Bin Laden, fui uma das pessoas na RTP que se ofereceu para ir. Depois foram feitas determinadas opções, não fui o primeiro a ser escolhido, havia na altura mais um ou dois repórteres no terreno da RTP, que estavam a tentar entrar por outro lado do país. Não conseguiram [entrar], nós conseguimos.

A partir do 11 de Setembro [de 2001] começa-se a acompanhar o Afeganistão com outra atenção, que não se tinha desde, provavelmente, o início da invasão soviética. Todos aqueles anos 1990 de guerra civil que destruíram o Afeganistão cá passaram ao lado. Há claramente um crescendo de importância a partir do momento em que os talibã começam a cometer aquelas barbaridades a partir de 1996.

E ao chegar lá qual era a sua expectativa? Não só em termos de reportagem, mas também em relação à invasão e ocupação americana.

Nenhuma. Estava demasiado preocupado que o trabalho de televisão corresse bem. Era um jornalista já com alguma experiência em conflitos internacionais, em rádio. Além dos Balcãs, já tinha estado em Timor-Leste logo após os massacres, tinha estado na Palestina, mas foi tudo para rádio. Portanto, era a minha primeira cobertura no estrangeiro, a sério, para televisão.

"A educação das mulheres foi um dos trabalhos que deu frutos. E elas não vão permitir que se volte atrás."

Tinha mais a preocupação com as questões técnicas, saber fazer bem as coisas para televisão, – como estar a entrevistar uma pessoa e pegar no microfone com a mão certa ou estar na câmara em condições – do que saber no que é que aquele país ia dar.

Lembro-me de chegar e ver uma tal dimensão de destruição que não percebia de onde é que ela vinha. Não sabia se o prédio tal tinha acabado de ser destruído pela NATO, se foi destruído antes pelos talibã, ou se foi destruído na guerra civil ou pelos soviéticos nos anos 1980. 

Perguntava: "a NATO bombardeou isto?", e o tradutor dizia: "não, não, aquilo já está assim há não sei quanto tempo, quando saí do país há dez anos aquilo já estava assim". Era mais um capítulo na história de destruição do país, era aquilo que estávamos a viver ali. E era, sobretudo, a esperança dos afegãos: daquela vez é que seria diferente, daquela vez é que se iria erguer o país. 

Depois, movimentos muito controlados. Tínhamos muita dificuldade em circular na cidade, muito pouca iluminação à noite, muita incerteza sobre quem é que eram as pessoas armadas à tua frente e que te pediam, por alguma razão, para parar.

Fala sobre alguns episódios, especialmente daquele na estrada Jalalabad-Cabul em que vários jornalistas foram executados. 

Sim, morreram pessoas. Não queria dizer que foi por algum descuido, mas é evidente que se estás num sítio em que não tens segurança garantida em toda a estrada, em que se sabe que há grupos que podem ser talibãs ou de uma fação diferente daquela com que entraste no país, que podem estar a controlar determinados sectores de terreno, parece-me muito pouco precavido ir alugar jipes com vidros fumados, novinhos em folha. Não sei se foi a atitude mais sensata, mas a posteriori é sempre fácil falar.

Tive o rasgo de pensar numa coisa diferente. Estava há um ou dois dias a ver autocarros a entrar naquela estrada com passageiros e com mercadoria e pensei: "se levam estas pessoas também levam outras". Se fôssemos discretamente lá dentro seria a melhor forma de chegar a Cabul. E revelou-se assim. Também podia ter corrido mal. Também podíamos ter ido em jipes com vidros fumados e não ter acontecido nada.

Ali alguém mandava? Havia algum tipo de autoridade?

Não. Na estrada Jalalabad-Cabul ninguém mandava. Os líderes Pashtun que nos receberam em Jalalabad diziam que só controlavam até à saída da cidade e que depois estaríamos por nossa conta e risco. Em Cabul havia a Aliança do Norte e alguma influência das forças multinacionais que estavam a chegar, porque os norte-americanos tinham estado a bombardear, não estavam lá metidos ainda de uma forma muito evidente.

Houve o regresso dos senhores da guerra. Uns controlavam Cabul, outros Jalalabad. Não havia sequer um mínimo conhecimento da situação para se saber com quem é que se ia falar em cada zona, isso não existia.

No meio disso tudo, da invasão, do retorno senhores da guerra, ao fim de décadas de destruição, como referiu, onde é que ficava o povo afegão? 

Acho que vale a pena recuar a uma história que está no livro, uma entrevista a uma activista da RAWA [Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão], a Marina. Em Cabul, já uns dias depois da queda dos talibã, conseguimos marcar uma entrevista com ela num hotel e ela apareceu de burca integral. Perguntei-lhe: "não quer tirar isso? Não pode? É opção?", e ela responde: "mas porque é que hei-de tirar? Porque os talibã foram embora? Os tipos que vocês puseram aqui no lugar deles eram os mesmos que oprimiam as mulheres antes dos talibã terem chegado, portanto, para nós, não muda nada". 

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ricardo alexandre
Ricardo Alexandre em reportagem para a RTP no Afeganistão, em novembro de 2001.

É esse tipo de olhar muito a preto e branco que muitas vezes temos em excesso e que não nos permite ver além das fachadas, perceber esse tipo de nuances. Para aquelas pessoas não mudou muito.

É verdade que alguns progressos foram feitos ao longo de 20 anos. Na educação, na saúde, na capacitação das pessoas. Não podemos estar aqui a dizer que "em 20 anos não fizeram nada e agora foram embora". Não estaremos a ser justos.

Alguma coisa foi feita, nomeadamente na educação das meninas e das mulheres. Foi feito um trabalho interessante que estava a começar a dar frutos. Provavelmente alguns desses frutos ficaram e elas não vão permitir, tanto quanto puderem, que se volte atrás. 

Isso não quer dizer que mesmo nestes 20 anos pós-talibã as mulheres não continuassem a ser discriminadas no seio da família, nas comunidades. Ou pelo poder político que, para agradar à comunidade internacional, aprovava leis no parlamento que depois ficavam à espera de regulamentação que nunca chegava.E, portanto, não entravam em vigor e tudo continuava como a tradição e a religião queriam. E isso deixa as pessoas na mesma vulnerabilidade.

Agora, com o que aconteceu depois de 15 de agosto, é claramente mais difícil para toda a gente no que diz respeito às liberdades fundamentais e aos direitos humanos. 

Cometeram-se erros.

Cometeram-se erros, sobretudo em dois níveis – e acho que não estarei a falhar em nada de fundamental. Um, independentemente da dimensão securitária ter sido muito importante nos primeiros anos [da ocupação] – era preciso garantir segurança à população civil e a quem tenha ido lá garantir o fim das hostilidades – essa aposta foi excessiva, multimilionária. A dimensão securitária acabou por descurar o investimento na transformação do país.

Em dois, três, quatro, cinco anos é difícil mudar a paisagem social de um país, mas talvez em 20 seja possível fazer alguma coisa. É possível dar a volta ao sistema de ensino, ao sistema de saúde, talvez até ao sistema político. 

Nós conseguimos sempre encontrar exemplos positivos. Vou dizer uma coisa e se calhar alguém vai ler e dizer, "não, mas atenção que isso foi feito" e pode ter sido feito. Mas foi-o a uma escala muito pequena: houve algum programa – por parte dos países europeus, mais ricos, uma coisa em massa, como objectivo político – que trouxesse um avião de jovens líderes afegãos e lhes desse formação política em democracia, boa governança, respeito pelos direitos humanos, transparência, responsabilidade política, essas coisas todas.

"Os afegãos sabem o que querem da democracia. Para isso não é preciso tirá-los do país e dar-lhes cursos. É preciso dar-lhes os instrumentos para se organizarem."

Um programa de formação de um ano ou dois, ou o que fosse preciso, para tentar que depois eles fossem os novos actores políticos. Será que países como os EUA, Reino Unido, França, Alemanha, países com a democracia mais consolidada e com mais peso económico, se tivessem apostado nisso não teriam conseguido outro tipo de resultados?

Esse é um dos lados. O outro é que as tentativas de reconciliação e diálogo foram sempre muito fracas, muito frágeis. E havia uma altura em que mesmo os talibã poderiam ter sido chamados ao processo. Essa altura seria depois de terem sido derrotados. Não quando começaram a ganhar terreno e a refazer todas as suas ligações regionais e a avançar em direcção a Cabul, aí era tarde demais.

Aí, cruzando-se isso com uma presença militar norte-americana já muito longa, com muitos caixões a chegar a casa, com [Barack] Obama a dizer que era preciso começar a reduzir [a presença militar], com [Donald] Trump a alinhar no mesmo discurso e a passar à ação, aquilo que aconteceu com a atual administração era quase uma inevitabilidade.

No livro também é dito que "ninguém precisa de ensinar aos Afegãos o que é a democracia", porque sabem o que é a democracia: estradas, escolas, hospitais a funcionar... 

Aliás, é uma antiga jornalista que diz isso. Eles sabem o que querem da democracia, só não estão dotados dos instrumentos e das práticas para a poder exercer. Foi nisso que falhámos todos. Uns mais que outros, mas falhámos. O que as pessoas pensam que a democracia lhes dá é uma coisa que está mais ou menos disseminada em todo o mundo. 

O que é que as pessoas querem de uma democracia? Viver melhor. Poderem garantir para os seus aquilo que é o funcionamento normal de uma sociedade, dar as satisfações elementares e menos elementares ao que as pessoas anseiam, para poderem ter uma voz. 

Para isso não é preciso tirar as pessoas do Afeganistão e dar-lhes cursos. Mas ao dar-lhes instrumentos para se organizarem e pôr todo o esse sistema a funcionar, talvez já precisem de uma formação que nunca tiveram, porque andaram quase de ditadura em ditadura. De ditadura em ocupação e de ocupação em ditadura. 

Também fala dos presidentes norte-americanos que diziam que estavam ali a fazer nation building, mas depois diziam que já não estavam. Esse mito caiu de podre ou realmente nunca houve um esforço para construir uma nação afegã? 

Eles diziam que era o que estavam a fazer, mas será que é verdade? Em que é que apostaram para isso? O que foi efetivamente feito? Ninguém tem dúvidas que houve uma série de empresas de contractors que ganharam rios de dinheiro com isso. E também sabemos de algumas ligações dessas empresas a congressistas importantes, a determinados elementos importantes, nomeadamente, da administração republicana de George W. Bush, nos primeiros anos. Isso é inegável.

"Em cinco anos é difícil mudar a paisagem social de um país, mas talvez em 20 seja possível dar a volta ao sistema de ensino, ao sistema de saúde, até ao sistema político."

Depois, acho que é muito narrativa. E carta de intenções. Mas no terreno provou-se frágil. De facto, estruturalmente, não conseguiram mudar muito o país. As elites políticas corruptas continuaram a ser as mesmas. Basta ver que alguns dos personagens que estiveram agora no fim deste regime eram exatamente os mesmos que estavam em 2001. Abdullah Abdullah já estava lá em 2001. [Hamid] Karzai atravessa todo este período de 20 anos de uma forma ou de outra como presidente ou influenciando decisões

Não houve sequer uma renovação. Nós sabemos que isto não é fácil, não é? Estamos numa sociedade democrática, num país desenvolvido, na Europa, e sabemos o quão difícil tem sido mudar as elites políticas, e quando mudam normalmente não é num bom sentido. Jamais seria fácil. Poderíamos todos ter feito muito mais.

Logo naquela semana de 15 de agosto começou-se a dizer que os EUA nunca deviam ter saído, que deviam voltar, que aquele país sozinho não se levantaria. Como é que a comunidade internacional poderia ajudar sem voltar a uma ocupação militar ou a um projeto civilizacional neocolonial?

A partir do momento em que os talibã começaram a avançar como avançaram ou tínhamos que ter garantias – mas como ter essas garantias? – mais claras e mais sólidas de que eles iam cumprir uma série de compromissos que assumiram nas negociações em Doha. Ou então era recuar, não levantar o dispositivo militar e travá-los. Mas como? Armar ainda mais o outro lado, dar-lhes apoio militar e prolongar a guerra civil? 

Isso era o que os dois partidos políticos nos EUA não queriam, nem Trump o queria, mesmo com a transição de administrações. Ninguém quer, ao fim de 20 anos, continuar a receber caixões em casa. 

Foi uma derrota? 

Claro. O ministro Augusto Santos Silva, numa das entrevistas que me deu na TSF, creio que coloca bem a questão quando assume que foram cometidos erros e que a forma como as coisas acabaram por acontecer obriga a repensar missões futuras. Obriga a pensar na forma como estamos, a NATO e a comunidade internacional, a fazer as coisas em novas missões. 

Provavelmente teremos que pensar em intervenções mais holísticas, que sejam mais transversais em termos de, sim, garantir a segurança, mas ao mesmo tempo fazer mais em relação à reconstrução do Estado e no apoio à sociedade civil. E tem de ser uma coisa feita concomitantemente, não pode ser por etapas. Não pode ser: "agora durante um ano ou dois garantimos a segurança, depois há eleições e depois das eleições eles governam-se sozinhos". Tem sido esta a lógica e é uma lógica que já se provou errada.

"Neste momento, há 20 milhões de afegãos em situação grave de fome. O mundo não pode abandonar o povo afegão. E os talibã não vão deitar fora a ajuda internacional."

No fundo, ela faz a crítica à forma como as missões de implementação da paz são montadas e organizadas, dando exemplos positivos de casos que tiveram bons resultados, porque as coisas foram feitas de forma diferente, desmontando também alguns mitos à volta de algumas intervenções, nomeadamente em Timor-Leste. E foi sempre uma lógica de abordagem top-down, de fora para dentro, sem envolver os atores locais. Eu cito uma autora, uma professora que conheci em Nova Iorque durante os meses que estive lá como visitante na Universidade de Columbia, a Séverine Autesserre. Ela tem um livro extraordinário chamado The Frontlines of Peace. Faz uma crítica muito contundente à maneira como nós organizamos as missões internacionais sem ter em conta os atores locais.

Essa já era uma tendência que começava a ganhar espaço e reconhecimento na academia, de novas formas de pensar estas coisas. Acho que o Afeganistão nos veio mostrar que realmente é preciso pensar estes assuntos de forma radicalmente diferente.

Incluindo líderes tribais, a resistência...

Toda a gente. Capacitando as populações de outra forma, começando a incutir na educação os valores da não discriminação, da tolerância, da igualdade, da diversidade. 

Mas, mais urgentemente, com as secas, a fome, a crise energética. Neste momento, seis meses depois da queda de Cabul, o que é fundamental fazer nos próximos seis?

O fundamental é garantir que o país não colapse. E para isso é preciso – e é isto que está a começar a ser feito, felizmente – que a comunidade internacional perceba que não pode abandonar o Afeganistão. Não abandonar o Afeganistão é não abandonar o povo. Encontrar formas de a ajuda começar a chegar com mais força ao país, admitindo que não o possam fazer diretamente, porque isso significaria reconhecer o regime. Mas é preciso que aconteça, senão o país afunda-se. 

Temos quase 40 milhões de pessoas em situação de fome. Nesta altura já estão 20 milhões em situação de carência grave. E o regime sabe que precisa de ajuda internacional. Os talibã não vão deitar fora a ajuda internacional se ela chegar através de agências não-governamentais. Se o regime lhes garantir condições de segurança, para que funcionem no terreno, porque precisa delas, a ajuda vai chegar. 

Por exemplo, 70% do investimento em saúde pública que chegava ao Afeganistão já era via ONG, antes da chegada dos talibã. Há áreas em que se calhar a situação não mudaria assim tanto, mas a ajuda tem que continuar a chegar. O país não tem condições para subsistir sozinho, nesta altura, sem ajuda. 

Tem que haver um recuo no moralismo para haver ajuda mais concreta?

Sim. E temos de ser mais pragmáticos. 

Voltaria lá?

Sim. Não sei se vale a pena voltar hoje ou para a semana. Não haverá muito mais para contar do que aquilo que outros já contaram e aquilo que já sabemos. Daqui por uns tempos gostaria de voltar lá para ver a diferença. Para ver se já é possível um Afeganistão diferente. Para ver como é que o Afeganistão consegue viver com este tipo de poder político e em que condições.