Bruno Neto

Bruno Neto passou três meses em Kandahar, no Afeganistão, a coordenar equipas de ajuda humanitária | Foto de Rafael Medeiros

Bruno Neto. "Os Estados Unidos não estão a ser responsabilizados pela morte de 75 mil civis" no Afeganistão

O coordenador da ONG Intersos não vê “qualquer impacto positivo” na ocupação de 20 anos do país asiático. Critica os gastos de biliões de dólares em armas e equipamento militar e a falta de investimento em hospitais e em escolas.

Entrevista
30 Agosto 2021

Esteve três meses a coordenar equipas da ONG Intersos em Kandahar, a segunda maior cidade do Afeganistão, e acompanhou de perto o avanço dos talibã. Bruno Neto não poupa nas críticas a 20 anos de ocupação denunciando que “a nossa visão é muito deturpada por discursos cheios de nada”, por termos caído “na conversa de um etnocentrismo baseado numa pseudo superioridade ocidental”.

O trabalhador humanitário, de 40 anos e que se dedica a garantir cuidados de saúde aos afegãos, é perentório ao dizer que “não é à bomba que se leva direitos humanos ou democracia”. “Não vi qualquer impacto positivo [na ocupação], porque depois de tantos biliões gastos continuo a não ver hospitais, escolas, investimento no país”, disse em entrevista ao Setenta e Quatro.

A estratégia dos EUA foi mais de conflito do que de reconstrução e cooperação, o que deu “espaço para que houvesse este reforço dos talibã, de crescimento e de amadurecimento, por não ter havido uma cooperação real”. Os EUA, continua Bruno Neto, causaram a morte a 75 mil civis e não estão a ser responsabilizados por isso.

Os fundamentalistas islâmicos tomaram o poder e milhares de afegãos querem sair do país por correrem perigo de vida. Milhares de afegãos foram retirados via ponte aérea no aeroporto de Cabul pelas tropas dos EUA e seus aliados, mas milhares ficarão para trás. E a Europa fecha-lhes a porta.

“Quando vemos o Estado português a dispor-se a receber 50 refugiados [o governo disse entretanto ter resposta para acolher 300] e o Uganda a receber dois mil numa primeira fase, pergunto-me onde estão os valores da Europa”, desabafou o coordenador humanitário.

Estiveste vários meses no Afeganistão em missão humanitária. Como foi a tua experiência no terreno?

Foi incrivelmente intensa, porque quando tu vais para um país novo, mesmo que em situação de emergência, há sempre um tempo de adaptação. Uma das coisas mais complicadas foi o clima. Quando estás a viver num país como Portugal, que tem humidade… em Kandahar era humidade zero. O corpo precisa de tempo para se habituar. Normalmente, além do corpo, também nós precisamos de nos adaptar. 

Estava com essa vontade quase antropológica de chegar e de ter o meu tempo para me adaptar, mas basicamente aterrei e cheguei ao escritório por volta das 11 horas da manhã. À uma da tarde tinha havido a conquista de territórios por parte dos talibãs de uma das zonas onde estávamos a trabalhar. Portanto, foi chegar e mãos na massa, a adaptação foi no processo do trabalho. Foi intensíssimo, não houve muitos momentos para pensar noutras coisas, pois estávamos a trabalhar entre 12 a 14 horas diárias, e sempre a acontecer qualquer coisa. Acordava todos os dias por volta das 5h30 e até durante a noite recebia mensagens ou e-mails de coisas que tinham acontecido.

A ONG Intersos, que tem 400 funcionários, nunca parou de trabalhar mesmo quando os territórios onde estava eram conquistados pelos talibã.

Absolutamente. O nosso propósito no Afeganistão é claro e foi também clara a forma como sempre o apresentámos: emergência é emergência, tu não estás lá para mudar o mundo, não vais lá para mudar sistemas, mas o objetivo principal é teres o mandato para o qual estás contratado que seja executado. Estamos a trabalhar em emergência, a apoiar as pessoas desde a saúde mais básica até saúde de intervenção cirúrgica. A partir do momento em que fomos bastante claros sobre os nossos mandatos com qualquer entidade que tenhamos reunido, a nossa ajuda e trabalho foram sempre bem-vindos, por se chegar a milhares de pessoas prestando um serviço que infelizmente o Estado não podia prestar. 

Para garantir que a tua ONG continuava a trabalhar no terreno tiveste de negociar com os talibã. Temos muito aquela caricatura dos talibã, do fundamentalistas islâmicos, apresentados como pessoas irracionais. Como fizeste para dialogar com eles? 

Aqui falarei no plural. Não negociei, negociámos enquanto organização. A negociação não foi tanto haver uma grande negociação, mas basicamente aquilo que disse: apresentar os nossos projetos e encontrámos do lado de lá pessoas habilitadas para os discutir.

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Bruno Neto
Para Bruno Neto, a Cimeira das Lajes fez com que a Europa se entregasse às constantes invasões de países do Médio Oriente | Foto de Rafael Medeiros

Comandantes de topo da província de Kandahar?

Eram representantes designados para falar connosco. Todos eles, ou pelo menos a maior parte, eram pessoas ligadas à parte da saúde, pessoas que poderiam discutir os projetos. Foi basicamente igual a apresentar os projetos às entidades governamentais. São conversas mais ou menos técnicas em que se vai aos detalhes, de tentar perceber o que determinado projeto se pode complementar, que serviços precisamos. Foi sempre muito ligado às atividades que já estávamos a fazer. Ou seja, nada mais foi requerido e toda a conversa foi bastante profissional, objetiva e técnica. 

Acho que esse é um dos grandes erros destes últimos 20 anos de uma presença de forças externas no país: o facto de haver sempre uma generalização de que os talibãs são aqueles senhores que estão lá na montanha quando não o são – também o são, mas não apenas. Nestes últimos 20 anos houve um reforço, uma capacitação, uma evolução e hoje o que estamos a ver enquanto comunicação formal é quase como se fossem uma entidade política. Fizeram promessas, demonstraram que queriam determinadas coisas. Agora, é como tudo na vida, política é política. Há quem cumpra e quem não cumpra, há quem execute melhor e quem execute pior, e neste momento estamos num ver para crer. Estamos expectantes que as coisas prometidas se cumpram. 

Entre 1996 e 2001, quando os talibã estiveram no poder antes da invasão dos Estados Unidos e aliados da NATO, havia poucas, mas havia, ONG a trabalhar no terreno. Acreditas, com base na tua experiência e nessas negociações, que é possível, depois de algumas semanas ou meses, da estabilização da situação, trabalhar no terreno?

Não vou querer falar pelas outras ONG, não sei qual o relacionamento ou processos. Sei que da nossa parte continuamos a trabalhar, pediram-nos para continuarmos a trabalhar, por ser realmente reconhecido que aquilo que estamos a fazer é para o bem do povo do Afeganistão. Fomos convidados a não parar de trabalhar, inclusivamente para o reforçarmos.

Uma das comunicações feitas pelos talibã é que serão bem-vindas as entidades externas que venham para ajudar. Naturalmente que para se trabalhar num país, os governos desses países, independentemente de qual, têm de aceitar que estas entidades venham, têm de perceber que aquilo é de facto importante para o país e visão de governação, se encaixa nos propósitos, se não há duplicação de serviços, se vai complementar ou se se pode readaptar. Qualquer organização governamental ou não-governamental que queira ir para o Afeganistão terá de apresentar os seus propósitos e projetos e depois poderão ou não encaixar naquela que será a visão deste novo governo. 

"A Cimeira das Lajes veio abrir a porta para que os extremismos e populismos de extrema-direita entrassem."

O Afeganistão já vivia uma crise humanitária, mas desde junho/julho que se tem agravado. Segundo a ONU, são 18 milhões de pessoas em risco de caírem em pobreza extrema.

Sendo muito sincero, uma das coisas que temos ouvido nos media, sejam nacionais ou internacionais, é que com a saída dos EUA e da NATO vai haver um impacto muito grande. Não vi também qualquer impacto positivo [na ocupação], porque depois de tantos biliões gastos continuo a não ver hospitais, escolas, investimento no país. Ou seja, dentro das cidades há bastante pobreza, fora das cidades há bastante pobreza. Não há serviços, não há condições. Portanto, aquilo que estaremos a fazer nos próximos tempos é basicamente aquilo que estivemos a fazer antes. Agora, claro, naturalmente que com o embargo de dólares dos EUA vai haver menos dinheiro a entrar no país. Mas o que já havia não era minimamente positivo. 

Os EUA disseram há poucos dias que foram para o Afeganistão para se protegerem e não para proteger o Afeganistão. Como vês a estratégia de ocupação norte-americana e dos seus aliados?

O resultado está à vista. Não houve basicamente uma grande resistência por parte das forças armadas afegãs nem do próprio povo à reentrada dos talibã na vida política e no dia-a-dia. É o melhor resumo de como os talibã chegaram ao poder de forma tão fácil. Segundo o discurso oficial de Joe Biden, pouco depois da tomada de Cabul, o objetivo era o de acabar com a Al-Qaeda. Não sei o que terminou, acho que foi exatamente o contrário.

Para já, houve espaço para que houvesse este reforço dos talibã, de crescimento e de amadurecimento, por não ter havido uma cooperação real. Ou seja, não é à bomba que se leva direitos humanos ou democracia. Não houve mais que esta estratégia, pois em termos práticos, a partir do momento em que há uma entidade externa que vai para outro país fazer aquilo que fez, é responsabilidade deles.

Os Estados Unidos não estão a ser responsabilizados: morreram 75 mil civis e não há responsabilização, são danos colaterais, não há aqui nenhum crime contra a humanidade. Uma das coisas interessantes é estarmos todos muito preocupados com os talibãs, mas há uma entidade que provocou 75 mil vítimas civis, fora os amputados e etc, e ninguém condena, e está tudo muito bem.

A preocupação agora é a de os EUA saírem. A nossa visão é muito deturpada por discursos cheios de nada. O programa de drones do Obama foi uma barbaridade, bombardeou mais que o Bush. Temos uma entidade externa que foi para outro país de uma forma legalizada segundo interesses que eu enquanto humanista jamais conseguirei entender. E o maior choque é que nós, Portugal, participámos e fizemos parte de tudo isto. Quando ouvimos declarações oficiais há uma minimização destes últimos 20 anos e uma visão completamente deturpada, uma vez mais pelas nossas entidades oficiais, por alguns dos nossos ministérios, que dão a entender que muita coisa ficou construída. Convido-os a todos a irem ao Afeganistão, serei o guia. 

A invasão e ocupação teve várias narrativas ao longo do tempo. Primeiro foi para combater o terrorismo, perseguir a Al-Qaeda e acabar com o santuário do terrorismo no país, a segunda foi do state-building e de levar os direitos humanos e a democracia e, mais tarde, a narrativa dos direitos das mulheres. Houve um relatório da CIA, revelado pelo WikiLeaks, a dizer que uma das estratégias de relações públicas era como a invasão e ocupação foram benéficas para as mulheres afegãs. Viste melhorias? Ou na imprensa focamo-nos muito nas cidades e pouco nas zonas rurais?

Mesmo nas próprias cidades, à exceção de Cabul, alguma ocidentalização veio por causa do acesso à Internet e não tanto por programas reais. Vivo em Kandahar, a segunda maior cidade do país, e por questões culturais e religiosas muitas das mulheres continuam a usar abaya [roupa tradicional muçulmana que cobre o corpo da mulher] e burka na rua. Não sei do que estás a falar. Em termos de direitos, não sei, sinceramente não sei. 

Uma análise que também se ouve de analistas norte-americanos é que a saída dos EUA e a chegada ao poder dos talibã pode ser uma maçã envenenada. Os EUA bloquearam as verbas no Tesouro, o FMI as suas tranches e está a haver uma fuga de cérebros.

Por aquilo que se percebe, vai haver um conselho tribal, onde as diversas tribos do Afeganistão estarão representadas, e será um desenho parecido a outros países onde existe uma organização tribal. Isso é uma questão interna. Depois temos essa tal maçã envenenada que é a forma de os EUA fazerem política aos seus inimigos. Tendo nós o caso de Cuba, onde existe um embargo económico há décadas, vai depender das negociações, que ainda não estão fechadas.

Ainda vai correr muita tinta. Na semana passada, Reino Unido, Alemanha, Canadá e EUA propuseram apoiar os talibã na formação do novo governo e os talibã recusaram. Estão a tentar entrar e a fazer parte dos processos, que é aquilo que deviam ter feito de forma real de há 20 anos para cá. E aquilo que fizeram foi tudo artificial, quem ganhou dinheiro foram os contractors dos EUA e da NATO e a oligarquia afegã. 

Havendo ou não embargo, vai trazer possíveis processos. Se, por um lado, houver embargo, também será um problema para os Estados Unidos. Quem estará na linha da negociação são países como a China e a Rússia. Portanto, se calhar não interessa assim tanto haver um grande embargo. Acho – espero eu – que já começaram a perceber que quanto mais isolam determinados países, provavelmente esse país trará piores problemas.

Lá está, será uma decisão dos EUA de como querem fazer parte do futuro daquela região, não apenas do Afeganistão. De um lado temos o Irão, do outro o Paquistão e acima temos a Rússia com todas as ex-repúblicas da União Soviética que estão relativamente alinhadas. Será uma escolha dos EUA. 

Ainda antes de assumirem o poder em Cabul, os talibã começaram a ser conhecidos como os talibã 2.0. Foi uma estratégia para romperem com o isolamento internacional?

Sem dúvida. Antes de terem tomado o país já havia reuniões formais com outros países numa clara projeção da política externa do Afeganistão. Reuniram com o Irão, Rússia, Paquistão, China. Estes dois pontos são claros. Ainda que haja muita gente a dizer que é a mesma coisa, não, não é. Pode ser parecido, mas é por outros lados. É outra forma de governar, e sem dúvida nenhuma com um discurso político muito bem organizado e estruturado. Ainda ontem fizeram uma comunicação oficial a aconselhar as mulheres para que ficassem em casa por os seus guerrilheiros ainda não terem sido orientados a lidar com mulheres. Isto é uma coisa que nós em 2001 jamais ouviríamos. É um novo discurso.

Não pode ser só propaganda?

Pode ser tudo. Neste momento toda a gente está expectante com o que aí vem, está naturalmente a acompanhar de muito perto o que está a acontecer e o que virá será complexo, relativamente diferente a 2001. Agora, a dimensão é que é muito difícil de medir. 

Os talibã são mais um movimento religioso de guarda-chuva do que propriamente um movimento homogéneo, apesar de ser verticalmente estruturado, e tem vários grupos e fações. Os talibã podem entrar em choque interno?

Neste momento tudo é possível. Houve sem dúvida nenhuma uma união em alguns níveis para esta tomada e que todo este momento de negociação interna de quem vai gerir o governo, será importantíssimo. Havendo claramente diferentes fações e grupos, não vai ser fácil. 

Além das questões tribais. 

Por isso é que estão a ser convocados anciões de várias representações do Afeganistão. Foram buscar de forma muito inteligente Hamid Karzai [foi entretanto posto em prisão domiciliária] e figuras que poderão de alguma forma intermediar estas questões. Haverá sempre negociações, como nós tivemos com a criação de governos de partidos. 

Algumas das cidades foram entregues aos talibã pelos governadores sem qualquer tipo de combate, suspeitando-se que essas entregas estavam acordadas há semanas. 

Muitas das entidades governamentais tentaram garantir, como continuam a fazer, um lugar em termos provinciais e nacionais. Houve muitos atores do antigo governo ou das instâncias governamentais a aproximarem-se dos talibã para ficarem com possibilidade de abertura: para não lhes acontecer nada e para continuarem a gerir determinadas pastas, fossem provinciais ou nacionais. 

Muitos milhares de afegãos querem sair do país, mas a Europa não os quer receber. O Paquistão tem mais de 1,5 milhões de refugiados e o Irão 700 mil. Como vês esta recusa da Europa?

Há uma grande distância entre aqueles que foram os valores e fundamentos da construção da Europa no pós-II Guerra Mundial para aquela que é a realidade neste momento. Quando vemos o Estado português a dispor-se a receber 50 refugiados [o governo disse entretanto que tem resposta para acolher 300] e o Uganda a receber dois mil numa primeira fase, pergunto-me onde estão os valores da Europa, da União Europeia. São os tais valores que nos levam a tantos outros sítios e a sermos eurocêntricos e etnocêntricos, a considerarmo-nos superiores a outros povos e que devemos participar nestes processos de levar direitos humanos a países que estão em desenvolvimento ou em crises humanitários. 

"Quando se apanha um imigrante considerado ilegal é devolvido, quando se encontra um diamante sem registo ninguém o devolve ao Congo ou a Angola, fica cá."

De uma Europa em que sempre quis acreditar, na qual estive envolvido no início dos anos 2000, quando falávamos como uma Europa com programas de jovens e de intercâmbio de um espírito não multicultural, mas inter-cultural, passamos para uma que deixa entrar com facilidade extremismos e populismos que quebram todos esses valores das fundações. 

A minha opinião sobre isto é de tristeza e desencantamento. Mas há muita gente e movimentos sociais que querem essa Europa, esses valores. Ainda que tenha esta tristeza e desencantamento, não quero deixar de continuar a ter um pouco de esperança que possamos reconstruir essa Europa.

Ainda achas que é possível? Vivemos numa Europa com cada vez mais muros e fronteiras militarizadas. 

Para mim a Cimeira das Lajes é um dos momentos-chave da Europa. A Europa nesse momento perdeu-se e entregou-se por completo ao non sense e incompetência existencial dos EUA, concordou num dos piores momentos históricos do planeta: as constantes invasões de todos os países do Médio Oriente. Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria. Se nessa altura já havia algumas incongruências em termos de política, para mim a Cimeira das Lajes veio abrir a porta para que os extremismos e populismos de extrema-direita entrassem.

Entregámo-nos, não questionámos e esquecemo-nos das nossas raízes. E este é o problema de base de qualquer individuo: a partir do momento em que esquece as raízes e de onde vem, e nós esquecemo-nos. Entregámos os nossos valores a uma guerra que não conseguimos comprar. A Cimeira das Lajes foi o momento em que o mundo [ocidental] se assumiu. O mundo mudou a partir desse momento.

Falas do esquecimento dos nossos valores, mas houve resistência. A França, no que diz respeito ao Iraque, entrou em choque com os EUA e com a Alemanha, o primeiro grande choque do eixo franco-alemão, houve manifestações anti-guerra massivas por toda a Europa. Milhares de pessoas manifestaram-se contra esse novo patamar do belicismo ocidental. 

Sem dúvida. São essas pessoas com quem continuo a falar e a pôr as minhas sementes, e a tentar conquistar outras. Agora, há duas coisas. Para já, não vejo a questão [de acolher] dos refugiados afegãos como uma solução: sim, devemos aceitar, mas também não devemos entrar em histerismo de caridoso. Devemos ajudar os países para que as pessoas tenham condições para ficar nos seus países, que tenham economias. Tudo aquilo que o mundo ocidental expolia de África faz com que, com toda a naturalidade, as pessoas não tenham condições para terem uma vida digna lá. Portanto vão para os países que lhes retiram as riquezas.

Como diria um amigo meu, quando se apanha um imigrante considerado ilegal é devolvido, quando se encontra um diamante sem registo ninguém o devolve ao Congo ou a Angola, fica cá. Temos de ter em consideração que os refugiados são em grande parte uma consequência das políticas de desenvolvimento financeiro e económico das grandes potências.

Ou seja, neocolonialismo e imperialismo. 

Absolutamente. Como nós só analisamos as consequências, não temos a noção. Por exemplo, agora, com a tomada de Cabul, só se fala do presente, como se fosse tudo uma coisa que aconteceu agora. "Isto foi tão rápido". Não, não foi rápido, nós é que não estávamos a olhar, porque temos de olhar para o que acontece naquele lado, uma desgraça, depois outra desgraça acolá. Há tantas desgraças que perdemos o foco. Quem fala agora do norte de Moçambique? Já está tudo bem? Não, mudou [o foco], já chateia. Precisamos de notícias novas, de animação. 

"É falacioso pensarmos que os direitos humanos são a solução para tudo. Temos é de garantir, dentro das nossas possibilidades, que as pessoas e as comunidades possam viver o melhor possível."

Achas que vivemos tempos de desumanização?

Sim, de desumanização e de um etnocentrismo bárbaro. Há uma desconsideração sobre o outro, e este outro é aquele que com a minha experiência de ir trabalhar com os outros vejo que não são mais que os eus. Quando trabalho com agricultores da Mongólia, da América Central ou do Congo é a mesma coisa que estar a trabalhar com os meus avós e a sua horta. A sua vida é toda igual: é a relação deles com os elementos naturais, é a preocupação em regar, é no final do dia conseguirem apanhar umas couves para comer. A base humana é toda a mesma. 

Pelo facto de termos aceite irmos na conversa de um etnocentrismo baseado numa pseudo superioridade ocidental, que nem sei o que é, faz com que nos tenhamos juntado e aberto a porta a estes tais movimentos e a esta tal sensação de segurança baseada nas inseguranças que nós causamos. Torna-se num ciclo que só tende a piorar. Temos uma sociedade que está cada vez mais fechada sobre ela própria. As comunidades passam a ser virtuais, os movimentos e as ações passam a ser simbólicos, vivemos num simbolismo com uma base virtual e ideológica muito só de sofá. A partir do momento em que a construção societária não passa pelos valores do Maio de 68, da questão do bairro, da comunidade…

A exacerbação do individualismo e o desligamento com o coletivo.

Sem dúvida, e os direitos humanos não são mais do que isso. Os direitos humanos aparecem como resposta aos totalitarismos, são baseados no individuo. E esta é também uma visão ocidental que nós tentamos impor noutros países. Se a partir do momento em que temos uma Carta dos Direitos Humanos que fala de comunidade uma ou duas vezes, em que a base da devoção é o individuo, como é que queremos criar um sentimento de comunidade?

Quando dizemos que a minha liberdade vai até onde começa a do outro é mentira. Não vai nada. Não vivemos numa bolha e nesta bolha não posso dizer tudo o que quero. Vivemos numa bolha de pseudo liberdade, por isso é que somos tão bons nas redes sociais. Temos uma visão de construção da sociedade que não é a mesma em termos etnológicos e comportamentais de outros povos.

Como é que podemos fortalecer os direitos humanos na prática sem os impormos?

Não ter os nossos documentos como verdades absolutas. Ou seja, até a própria implantação dos direitos humanos deve ser adaptada. Uma vez mais, há países em que para aquelas pessoas o bem comum é mais importante que o bem do indivíduo.

Por exemplo, vamos para África e fazemos o apadrinhamento de crianças. Estamos a conspurcar aquelas comunidades. Porque se toda a gente era pobre e em vez de as ajudarmos metendo lá um poço, uma escola ou outra coisa, apadrinhamos aquela criança e não a outra ao lado que tem um sorriso mais feio – não podemos apadrinhar por depois aparecer mal nas fotografias. Uma passou a ter muitas coisas e a outra continuou a não ter nada. Na nossa caridade estamos a individualizar e a criar fraturas nas próprias comunidades.

A nossa visão não está mais certa que a visão dos outros. É falacioso pensarmos que os direitos humanos são a solução para tudo. Nós temos é de garantir que dentro das nossas possibilidades, sendo bastante humildes, as pessoas e as comunidades possam viver o melhor possível. Primeira pergunta, podemos ajudar? Temos moral para ajudar? Como vamos ajudar?

Mas para isso temos de perceber quem está do outro lado, as suas visões, qual a relação com aquele Deus ou deuses, ou porque há homens e mulheres que gostam de fazer aquilo. Devemos apoiar e dar ferramentas, mas não somos moralmente superiores para dizer aos outros que o que andam a fazer está tudo mal quando nem os compreendemos, nem nos sentámos a comer do mesmo prato. Não é pela imposição que se vai mudar a mentalidade das pessoas, é pela cooperação, pela interajuda.