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Papagaio é lançado em Cabul, no Afeganistão
Angelo Lucas
Angelo Lucas
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Fotogaleria: Já não voam papagaios no Afeganistão

Quando se faz fotojornalismo em países em guerra rapidamente se percebe que é impossível, além de mortalmente perigoso, fazê-lo sozinho. Milhares de afegãos trabalharam para e com um Ocidente em que acreditavam. Todos esses homens e mulheres correm o risco de ser agora considerados colaboracionistas pelos talibãs.

22 Agosto 2021
Angelo Lucas

Entre 2006 e 2009 passei cerca de um ano no Afeganistão a trabalhar como fotojornalista. Quando aterrei pela primeira vez no aeroporto Hamid Karzai, em Cabul, apesar de razoavelmente informado, estava longe de imaginar a realidade que me esperava.

O Afeganistão é um dos países mais pobres e violentos do mundo, onde cerca de dois terços da população vivem com menos de dois dólares por dia, a esperança média de vida pouco passa dos 40 anos e a taxa de mortalidade infantil é aterradora. Não existe praticamente saneamento básico no país. Segundo testes realizados, uma elevada percentagem da poeira no ar é proveniente de detritos fecais de animais e humanos.

O corte desenfreado de lenha, a principal fonte de aquecimento no inverno, coloca o país em risco acelerado de desflorestação e degradação dos solos. Há carência de água potável, desemprego, corrupção generalizada, inflação crónica e um estado de guerra quase constante desde há várias décadas.

E há, claro, o problema da droga – o consumo, além da produção mediática, com o país a fornecer hoje 90% do mercado mundial de heroína. Há poucas estatísticas sobre o número de toxicodependentes de ópio e heroína no Afeganistão, mas estimam-se entre um e dois milhões.

Em Cabul reúnem-se principalmente nas ruínas do que foi outrora o majestoso Centro Cultural, herança da presença soviética entre 1979 e 1989. É um edifício enorme e sinistro, escuro e esburacado, onde decidi ir num impulso, quando um dia passei por ali vindo de uma reportagem. Se calhar motivado pelo facto de toda a gente me avisar para não lá ir. Uma vez no interior tem que se ter cuidado onde se põe os pés, o chão está pejado de agulhas usadas.

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Centro cultural russo em Cabul
O Centro Cultural, em Cabul, é um vestígio da presença soviética no país entre 1979 e 1989 | Foto de Angelo Lucas

Os olhos vão-se habituando à falta de luz e, aos poucos, começam-se a vislumbrar vultos: vêm de todos os lados, curiosos com o visitante inesperado, mas de modo nenhum agressivos. São os residentes do centro, os despojos da sociedade, abandonados, esquecidos e totalmente drogados. Não é possível nenhum tipo de conversa, pois não existe língua comum além dos gestos, mas oferecem comida, posam para fotografias, pedem cigarros (nunca dinheiro) e despedem-se com calor.

Para lidar com este drama, existem poucas soluções no terreno. Organizações não-governamentais (ONG), como a NEJAT e a WADAN, fazem o que podem: providenciam tratamentos médicos, programas de reabilitação e prevenção, e até aconselhamento familiar. No entanto, os problemas com que se debatem, sobretudo a nível de financiamento, fazem com que o seu futuro seja incerto. 

Dizem que fumar Char [haxixe] faz bem. Muitas pessoas dão-no às crianças para adormecer, ou quando têm alguns problemas. Esta é uma convicção assumida candidamente por muitos afegãos.

Neste país, onde as crianças brincam descalças, esfarrapadas e subalimentadas, roxas de frio durante um inverno em que as temperaturas atingem facilmente os -40º (e nos verões + de 50º), é muito difícil viver. Isso mesmo assumia com resignação Shah Mahmood.

O Shah foi o meu primeiro intérprete no Afeganistão. Era um profissional e, nos tempos áureos do controle ocidental, ganhava cerca de 500 euros por mês. Recebia mais, muito mais que a maioria dos seus conterrâneos, com os quais sustentava os pais e os irmãos. “As pessoas normais não têm dinheiro suficiente para sequer alimentar a família”, desabafou. “Eu cá, assim que puder, vou-me embora.”

Milhares de afegãos como Shah trabalharam para e com um Ocidente em que acreditavam. Trabalharam como guias, condutores, fixers (o apoio local de jornalistas e ONG), comerciantes, alojando-os nos seus hotéis, servindo-os nos seus restaurantes, ajudando-os como podiam a integrar-se na sua complexa sociedade e costumes. Todos esses homens e mulheres correm o risco de ser agora considerados colaboracionistas pelos talibãs. Daí às cenas de caos e pânico no aeroporto de Cabul é apenas um esforço de imaginação.

Quando se faz fotojornalismo em países em guerra, em sítios muito distantes da nossa realidade, rapidamente se percebe que é impossível, além de mortalmente perigoso, fazê-lo sozinho. As barreiras culturais, linguísticas e logísticas são praticamente insuperáveis sem uma ponte com esse mundo. Essa ligação tem forma humana e um nome, conhecido por todos os jornalistas que alguma vez pisaram território hostil: fixer.

Tal como o nome indica, um fixer é alguém que providencia, que arranja o que precisamos no terreno. Providencia literalmente tudo, sendo na realidade uma espécie de ama-seca. É intérprete, condutor, guia, amigo, guarda-costas, arranja aquele contato, avisa daquele perigo, desenrasca aquela entrevista. Conhece o restaurante, o atalho, tem o primo, o cunhado, o tio e por aí fora. Os bons fixers passam de jornalista em jornalista e merecem cada centavo que ganham.

O último fixer que me acompanhou no Afeganistão chamava-se Wazir e não exagero ao dizer que nos tornámos como irmãos. Tinha vinte e poucos anos e nunca tinha tido uma namorada, ou sequer beijado uma rapariga, porque não tinha dinheiro para casar!

Cabul não é uma cidade bonita. O chão enlameado está coberto de detritos e a maior parte das habitações mais não são que casebres desconjuntados feitos de lama e tábuas.

Juntos corremos todos os arredores de Cabul no seu velho táxi, que todos os dias tinha uma avaria diferente, mas que nunca parou. Levou-me a todo o lado, inclusive, numa ocasião, a uma aldeia dominada pelo talibã, de onde saímos escoltados pela polícia ao fim do dia. Antes de irmos tentou por tudo dissuadir-me.

Quando percebeu que eu iria de qualquer modo, virou-se para mim muito sério e disse: “se tu vais eu vou. O que te acontece a ti, acontece-me a mim”. Não sei onde estarão hoje o Wazir e o Shah. Não sei sequer se estarão bem. Mas acredito que sim, porque sei que o mereciam. 

Cabul não é uma cidade bonita. Na imensa capital o chão enlameado está coberto de detritos e a maior parte das habitações mais não são que casebres desconjuntados feitos de lama e tábuas. De facto, a cidade mais parece um imenso bairro de lata, pontuado a espaços por alguns prédios antigos a pedirem obras urgentes e atravessada por um rio infecto.

Avistam-se aqui e ali as marcas de uma modernidade incipiente, das lojas de tecnologia (telemóveis e computadores) ou das boutiques ocidentalizadas que espreitam ao lado das padarias que mais parecem pequenas gaiolas. Sem esquecer os talhos que expõem a carne nas ruas. Mas tem um jardim zoológico, onde pontifica um leão que ninguém vê, e um cemitério nos arredores montanhosos, onde às sextas-feiras voam milhares de papagaios.

É nesse dia da semana que, por todo o Afeganistão, milhares de homens e rapazes se juntam em locais onde sopre o vento para a tradicional luta de papagaios, num fantástico espetáculo de cor e animação. Os papagaios, que como quase todas as formas de entretenimento foram proibidas no anterior reinado talibã, voltaram em força após a invasão dos Estados Unidos e seus aliados em 2001. Mais do que uma brincadeira e um desporto nacional, eram um símbolo de liberdade, conquistada com sangue e muito sofrimento. Mas será que era real? Haverá papagaios nos ares de Cabul no futuro próximo?

Fora dos portões da base de Camp Wharehouse, até há pouco a base residente da ISAF em Cabul, fica uma das artérias mais movimentadas da cidade. Todos os dias milhares de carros velhos, mas tão velhos, todos Toyotas, quase todos amarelos, a cruzavam, procurando o melhor caminho entre os inúmeros buracos, a lama e as pedras – o Afeganistão tem pouco mais de dois mil quilómetros de estradas asfaltadas ao todo e mesmo aqui o alcatrão é escasso.

Ao longo das suas bermas perfilavam-se homens de barba e olhar perdido e mulheres de burka com crianças pela mão. Aguardavam pelos seus transportes, ou apenas que o tempo passasse. Construções desconjuntadas onde se vende de tudo; lixo acumulado e ruínas várias também faziam parte deste cenário, comum a quase toda a cidade, herdeira de décadas de guerras e de isolamento.

Um dos grandes problemas por resolver no Afeganistão é o da saúde. Que dizer de um país no qual o maior hospital em Cabul, o Rahman Mina, funciona por boa vontade e a medicamentos fora de prazo doados?

Nesta base, sempre que um militar da ISAF era morto, as bandeiras ficavam a meia-haste. E quase todos os dias era assim que se encontravam. O perigo era real e identificado por siglas: IED (Improvised Explosive Devise), SIED (Suicide Improvised Explosive Device) ou VBIED (Vehycle Born Improvised Explosive Device), entre outras. Referem-se a atentados com explosivos: bombas na estrada, atentados suicidas nas praças com multidões ou carros carregados com explosivos. Também há que contar com os atiradores, fortuitos ou não, abundantes numa terra onde possuir uma arma é uma faceta cultural.

Camp Wharehouse era uma enorme base militar, onde se encontravam estacionados militares de 20 países, entre os quais os portugueses. Lá dentro o dia-a-dia tentava ser o mais descontraído possível, obrigatório dado que sempre que se saía nunca haver a certeza de se voltar. Dentro das suas muralhas havia restaurantes, bares, ginásios e até igrejas. Havia o refeitório português e, como seria de calcular, era procurado por tropa de todas as proveniências, pela fama de se bem comer.

De todas as bases militares “estrangeiras” no país, as mais inesperadas e intensas eram as COP (Combat Outpost) norte-americanas. Sempre bem dentro de território inimigo, distantes das bases maiores e dos centros de apoio logístico, normalmente apenas acessíveis de helicóptero. Funcionavam normalmente a nível de companhia, três a quatro pelotões, cento e poucos a 200 homens, que todos ou quase todos os dias se envolviam em confrontos. Para contrariar um pouco a ideia do conforto e riqueza que se atribui ao exército norte-americano, naquela onde passei mais tempo apenas havia uma refeição quente por dia e duas latrinas para toda a gente – condições duras para homens duros.

Um dos grandes problemas por resolver no Afeganistão é o da saúde. Que dizer de um país no qual o maior hospital em Cabul, o Rahman Mina, funciona por boa vontade e a medicamentos fora de prazo doados? As suas portas são cobertores velhos que dão para salas deprimentes de pobreza e carência. É um hospital surreal, com longos corredores sombrios e farmácias vazias, onde os equipamentos, quando existem, parecem saídos de um filme já antigo e muitas vezes até sem energia elétrica para funcionar. Várias vezes acompanhei forças militares nesse ato de levar os remédios aos que mais precisavam deles. Pelo menos havia remédios.

E, claro, há a questão dos Direitos Humanos, e das mulheres em particular. Numa tarde de inverno, em 2006, conheci de forma imprevista uma afegã extraordinária. A sala era pequena e parcamente iluminada por um único candeeiro a petróleo. Havia almofadas espalhadas pelo chão e numa delas estava sentada a pequena grande mulher, símbolo para muitos e muitas no Afeganistão.

Num país onde as mulheres sempre tiveram um estatuto inferior, Malalai Joya foi delegada na Loya Jirga, a grande assembleia de líderes, e a mais jovem integrante do parlamento afegão. Era também uma figura controversa, uma combatente da liberdade e dos Direitos Humanos que não temia as perseguições dos fundamentalistas. Venceu ainda os prémios Anna politkovskaya e Gwangju dos Direitos Humanos.

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Malalai Joya
A ativista Malalai Joya destacou-se pela defesa dos direitos das mulheres no Afeganistão | Foto de Angelo Lucas

Sempre vigiada de perto por guarda-costas dedicados, a menina de aspeto frágil que sobreviveu a vários atentados não tem papas na língua. “Vivemos sob o poder dos senhores da guerra. Estes criminosos não olham para as mulheres como seres humanos”, afirmou convictamente Malalai. Eram afirmações como esta que provocavam a ira dos seus pares masculinos no parlamento e daqueles que ainda olham para o Afeganistão como a sua coutada pessoal.

“A maior parte das pessoas não tem emprego e muitas morrem de frio. Se nem podemos falar de segurança, como vamos falar dos direitos das mulheres?”, questionou a ativista.

E lá fora, na rua, viam-se por todo o lado os fantasmas azuis, sob os quais imaginamos mulheres por baixo do pano. Antes da retirada em massa e precipitada da presença ocidental, impressionava o número de mulheres que ainda usavam a infame burka. Muitas justificando que era uma forma de se sentirem mais seguras, mas a maior parte por imposição familiar, apoiada numa poderosa tradição cultural. Não é exclusivo dos talibãs. Mas, agora que os fundamentalistas islâmicos regressaram com estrondo ao poder, as poucas mulheres que não o faziam estão condenadas a ter muito em breve que o fazer. Pelo menos por agora ainda não se apedrejam as adúlteras na tristemente célebre piscina de Taipe Bebe Maro.

É assim o Afeganistão. Berço de guerreiros invencíveis, palco de invasões derrotadas, arrastado uma vez mais para as bocas do mundo pelas piores razões. Quando me vim embora em 2009 não havia quase nada além de pobreza e esperança. Havia, ainda assim, barbeiros, fotógrafos e papelarias onde se vendiam revistas com capas feitas de mulheres sorridentes e destapadas. E o Livreiro de Cabul, um homem local muito conhecido chamado Shan Mahammad Rais, dono de uma livraria no centro da cidade e personagem de um livro com algum mediatismo internacional. E pelo menos uma mulher que conduzia de cara destapada e que era subdirectora de um banco. Havia risos.

Agora, com o retorno dos talibãs, tudo isso parece perdido. Mas a paisagem, selvagem, rude, estéril e rochosa, feita de intermináveis desertos castanhos e montanhas que se erguem a mais de quatro mil metros de altitude, é deslumbrante. Como se a natureza se esforçasse por ignorar as memórias e as sombras que nela habitam.

Fotogaleria:

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