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Johny Pitts: “É ridículo que europeu ainda seja sinónimo de branco”

Seis meses de viagem pelas periferias europeias resultaram no seu livro Afropeu - A diáspora negra na Europa. Johny Pitts tentou construir um mosaico da "negritude que viaja connosco", ancorado no desejo de forjar "laços de luta e solidariedade contra os legados de opressão e divisão do colonialismo".

Entrevista
7 Julho 2022

Já passaram dez anos desde que Johny Pitts, escritor, fotógrafo, apresentador de televisão e radialista, atravessou o Eurotúnel em direção a Calais com a ideia de só retornar a casa meio ano depois. Foi logo nesse primeiro momento, na pequena cidade portuária francesa onde um acampamento de refugiados e migrantes veio a receber o topónimo pouco inocente de “A Selva”, que reconheceu as ambiguidades que o acompanhariam em toda a viagem. 

Os guardas fronteiriços franceses olhavam-no com desconfiança à chegada à Europa continental. Interpelaram-no bruscamente em línguas partidas, como se não fosse ali o seu lugar. Mas os portões da fortaleza europeia abriram-se calmamente ao vislumbre de um passaporte britânico. Como disse em entrevista ao Setenta e Quatro, “a negritude move-se connosco”.

Seguiram-se Paris, Bruxelas, Moscovo, Estocolmo, Marselha e Lisboa. Pitts partia da sua periferia de infância a norte de Sheffield (e de uma Londres que considera insuportável) em direção às periferias de outras cidades europeias. Tinha intenção de documentar, a partir de baixo, a interseção que nelas se dá entre África e Europa: as semelhanças e as diferenças, as continuidades e as desavenças, as heranças dolorosas do colonialismo e as resistentes culturas que aí florescem - híbridas, subversivas, futuristas e utópicas. O resultado foi o seu livro AfropeuA diáspora negra na Europa.

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Johny Pitts é natural de Firth Park, arredores de Sheffield, Reino Unido. 

Para o autor britânico, Afropeu é uma “antítese para o absolutismo étnico”. Um conceito tornado premissa para um livro de viagens que depois se transformou também num longo ensaio histórico e sociológico sobre as comunidades subalternas que povoam as franjas literais e figuradas das nossas metrópoles. Ainda que admita a fluidez do termo e a sua fragilidade, usa-o como signo do futuro otimista que deseja deixar para as suas filhas numa Europa mestiça onde “alcançamos juntos aquilo que o capitalismo nos prometeu e nunca conseguiu garantir”. 

Disse em várias entrevistas, ao falar deste livro, que o título Afropeu nasceu de uma vontade de construir um sentido de identidade "sem hífenes", sem distância entre "africano" e "europeu". O que significa ser afropeu e como se constrói este afropeanismo?

Para mim era importante tentar encontrar uma maneira de celebrar e expressar as minhas múltiplas alianças sem estar constantemente a escolher entre uma ou outra, ainda que não ande por aí a dizer às pessoas que sou "afropeu". Se alguém me perguntar de onde sou conto-lhes a história toda. 

Uso "afropeu" como portal para um mundo fantástico. É um espaço imaginário onde tento estabelecer ligações entre diferentes culturas e histórias, que há tanto tempo estão em conflito, para as reconciliar e as transformar em algo coerente.

Há palavras que conseguem materializar certas coisas, evocando-as. E eu gostava da ideia de não ser anglo-isto ou afro-aquilo. Sou afropeu. Ambos, juntos como um. Sou uma mistura de todas essas coisas e todos nós somos, de alguma maneira, mestiços. "Afropeu" pareceu-me uma forma elegante de expressar isso numa palavra. 

A palavra surge a partir do trabalho da artista belgo-congolesa Zap Mama. Servia para descrever a sua música, a fusão de diferentes estilos num som coeso. Depois, percebi que a palavra começou a ser usada como uma espécie de marca e que passou a meter diretores de arte e fotógrafos de moda .

Ao tentar aplicá-la a experiências de vida, a palavra desfez-se. Na realidade, a viagem do livro sou eu a perceber que esse conceito se estilhaçou em mil pedaços e, depois, a tentar montar tudo de novo, como um mosaico que celebra o quão desigual tudo é, com as suas complexidades e lacunas, mas que também é coerente, apesar de não ser o que idealizei no início. No final, descrevo isso como uma "bricolage de negritudes". É como se o livro fosse um falhanço feliz.

Viajou pela Europa, de Bruxelas a Moscovo, passando por Estocolmo e Lisboa, durante seis meses. Encontrou mais exemplos dessa coesão que refere ou de conflito, atrito e resistência?

Para ser sincero, encontrei muito de ambos, mas basta ir às redes sociais para encontrar trolls que acham que não é possível ser europeu e negro. É uma maneira tão simplista de ver as coisas. A minha mãe é branca, o meu avô lutou atrás das linhas do inimigo na II Guerra Mundial. A minha família passou por muitos dos indicadores tradicionais de "europeidade" que as pessoas adoram louvar, mas eu, por causa da tez da minha pele, já não posso ser europeu? É tão redutor, tão ridículo, que "europeu" ainda seja sinónimo de "branco". Ainda há essa resistência.

O conceito de branquitude é muito frágil?

Sim, especialmente neste momento. É interessante entender como as noções de branquitude foram mudando ao longo do tempo. A certo ponto, se fosses judeu não eras branco. A Europa moderna foi buscar noções de branquitude à Grécia Antiga, mas se hoje fores um grego na Suécia talvez já não sejas branco o suficiente. 

Durante muito tempo os irlandeses não foram admitidos dentro da categoria de "branco", os nómadas roma ainda não são. Até pessoas que se acham brancas são, muitas vezes, impedidas de participar na ideia de "branquitude". No Reino Unido, até ao início dos anos 1970, havia sinais à porta dos pubs a dizer "interdita entrada a negros, cães e irlandeses". E é assim que funciona a supremacia branca: é algo em constante movimento que tem de descartar certas pessoas para criar uma elite apurada.

Isso torna-me muito consciente da fluidez do conceito "afropeu". Não quero ser demasiado prescritivo sobre quem é ou não afropeu, porque é algo que está constantemente a fazer-se e a refazer-se. Tem que funcionar como antítese para um absolutismo étnico.

Escreveu no livro que sempre esteve "nas periferias da identidade". Sendo natural dos subúrbios de Sheffield, no Reino Unido, identificou essa sua experiência periférica noutros locais ao viajar pela Europa?

Sim, esta foi uma viagem por periferias subjetivas e literais. Cresci nos arrabaldes de Sheffield, num bairro muito pobre mas multicultural. Onde quer que fosse, ao viajar pela Europa, conseguia perceber logo quando estava em "casa", num sítio como aquele de onde venho, mesmo que lá nunca tivesse estado. Há certos sinais, certas cores, tipos de lojas e negócios. Era imediato.


"Na Cova da Moura sente-se o peso da história de exploração e imperialismo na criação da experiência negra na Europa"

Também há a periferia figurativa. A certo ponto percebi que a minha Sheffield nunca era incluída na narrativa oficial da cidade, nem fazia parte da sua identidade muito centrada na indústria metalúrgica. Há um filme muito famoso sobre Sheffield, chamado Full Monty [Ou Tudo Ou Nada, em Portugal], sobre seis metalúrgicos que ficam sem trabalho - depois de a Margaret Thatcher arruinar a indústria - e decidem tornar-se strippers. A maior parte desse filme foi rodada onde eu cresci e conseguiram não incluir qualquer pessoa negra. Nem uma, é incrível!

Comecei a ver isso em todo o lado, especialmente nos guias para viajantes. Há certas iconografias usadas nesses guias que nos encorajam a imaginar quando pensamos em Portugal, em Itália ou nos Países Baixos. Precisava de olhar para lá disso e encontrar as zonas que não eram incluídas nessas brochuras para turistas.

A história de Lisboa está intimamente ligada aos seus próprios guetos muçulmanos, judeus e africanos, mesmo que isso seja uma nota de rodapé nos guias turísticos. Sentiu esse peso da história quando visitou a Cova da Moura? 

Sim, completamente. Como já disse, consigo reconhecer "casa" em lugares onde nunca estive. Acabava sempre por ir a estas zonas periféricas e não só sabia como agir, como sentia que já conhecia os sítios. Na Cova da Moura foi diferente, não é nada como o sítio onde cresci.

Entrei lá com um tipo chamado Jacaré que me mostrou o bairro e me encorajou a tirar fotografias, mas foi uma das poucas vezes na minha viagem em que me senti desconfortável. A certo ponto percebi que, ali, era eu o turista e que não poderia entender realmente o que se passa.

Foi importante ir lá, claro, porque estava a escrever um livro sobre a Europa negra. Andava à procura de pedaços geográficos que falassem não só da experiência negra na Europa, mas também da história do colonialismo europeu. Na Cova da Moura sente-se o peso da história de exploração e imperialismo na criação dessa experiência. 

Não era suposto este livro falar assim tanto de história. No início, queria que fosse um retrato contemporâneo. Levei anos depois da viagem a construir um sentido para tudo aquilo que vi, porque percebi que para dar sentido ao momento presente é necessário entender a história. Essa história ainda está viva em muitos sítios que visitei, como na Cova da Moura.

Isso também se pode reconhecer, por exemplo, no suposto atrito que existe entre cabo-verdianos e angolanos. Encontrou outros exemplos destes atritos pela Europa? 

Incomodou-me ver essas desavenças que parecem ser ainda perpetuadas. O mesmo acontece em França: há uma divisão entre martinicanos e senegaleses, malianos ou congoleses. As pessoas da Martinica são tratadas como estando mais próximas de serem francesas. 

O colonialismo não dividiu apenas os brancos dos negros. Também dividiu as comunidades negras em diversos grupos considerados, hierarquicamente, mais ou menos europeus. Vemos isso acontecer em todo o lado. No Reino Unido, há pessoas de certas partes da Índia que se sentem mais britânicas que pessoas do Bangladesh ou da Nigéria.

Era isso que a noção de political Blackness queria abordar nos anos 1980 para unir as pessoas. Podias ser paquistanês, iemenita ou jamaicano, mas sob esta noção de "negritude política" forjavas laços de luta e solidariedade contra os legados de opressão e divisão do colonialismo. Perdemos entretanto essa noção, mas creio que esteja, de alguma maneira, a voltar. 

Agora, a minha preocupação é a forma como funcionam os algoritmos e os nossos vieses de confirmação. Está toda a gente à procura do seu quinhão, fomos separados das nossas lutas comuns. Precisamos regressar à noção de solidariedade internacional que tanta falta nos faz. Suponho que a palavra "interseccionalidade" tente ir buscar essa ideia. Se fores uma mulher, se fores trans, se fores negro, há certas coisas em comum nessas realidades que se podem usar para nos unirmos contra o domínio masculino, heteronormativo e branco.

"O colonialismo não dividiu apenas os brancos dos negros. Também dividiu as comunidades negras em diversos grupos considerados, hierarquicamente, mais ou menos europeus"

Outro exemplo foi a tragédia do incêndio da torre Grenfell, em Londres [a 14 de junho de 2017]. Mostrou as divisões na nossa sociedade e como certas comunidades são negligenciadas pelo Estado. Também aconteceu em Marselha quando um bloco de apartamentos no bairro africano se desmoronou. O mesmo se passou no desastre do bairro Bijlmermeer, em Amesterdão, em 1992, quando um avião se despenhou contra um edifício parcialmente ocupado por famílias do Suriname, uma ex-colónia neerlandesa. Se não fores considerado europeu, não recebes o mesmo respeito, nem qualquer tipo de simpatia, nem és tratado como humano. É o fio que liga todas essas tragédias. 

Mas nem tudo é negativo. Na Cova da Moura vi uma resistência incrível, vi subversão e sentido de comunidade. E há algo que só percebi quando estava a escrever o livro, mas que sempre me espanta: há cultura. O sítio onde eu cresci chama-se Firth Park. Era um sítio complicado, com os seus problemas. Tive amigos assassinados e outros que estão na prisão por homicídio. Mas havia cultura, havia graffiti, música. Aquela zona estava viva, percebes? Às vezes olho para certos sítios onde a classe trabalhadora é mais branca e mais de direita e não há música.

Não quero ser redutor, mas a música sempre foi uma maneira de as comunidades negras transmitirem as suas ideias sem chamar a atenção dos poderes dominantes. Mesmo que as palavras não estejam lá, há um sentimento codificado e partilhado. Isso eu encontrei em quase todas as periferias onde estive: arte e criatividade enquanto parte central da experiência negra.

Por falar nisso, descreve uma viagem de comboio em França em que um grupo de homens, turistas ingleses, entra na carruagem onde estava e começa a importunar os outros passageiros, inclusivamente dirigindo-lhe comentários racistas. Comentou que para os ingleses brancos viajar parece ser "uma continuação da miséria doméstica por outros meios". Acha que há um ressentimento cultural por parte da Europa que se afigura como branca?

Isso é uma coisa muito britânica. O império ainda é uma coisa que nos assombra e os britânicos, onde quer que vão, esperam que as pessoas se curvem perante si e a sua cultura. E não, não me escapa a ironia de estarmos a conversar em inglês, mas há uma hegemonia cultural que viaja connosco.

Não é que não haja uma cultura branca ou que pessoas brancas não produzam cultura, mas há certos estratos da sociedade que se recusam a participar na criação de cultura. O Jonathan Meades [escritor e cineasta inglês] disse algo como "a única arte que vale a pena é a arte mestiça". Só podes fazer arte e cultura se estiveres aberto a diversas influências, senão não estás a criar algo substancial.

"Na Cova da Moura vi uma resistência incrível, vi subversão e sentido de comunidade"

O escultor Arthur Dooley, de Liverpool, dizia que não há alguém cuja cultura seja tão fácil de roubar que aqueles que não sabem que têm uma. Vejo isso nos meus amigos brancos vindos da classe trabalhadora. Sheffield costumava ser uma cidade bastante socialista, com uma cultura centrada na metalurgia e nos sindicatos. As pessoas trabalhavam muito, mas trabalhavam juntas e produziam cultura. O thatcherismo e o capitalismo neoliberal destruíram as fundações industriais da cidade e substituíram-nas por centros de call center e centros comerciais. Não podes construir cultura com isso. As pessoas foram roubadas da sua capacidade de produzir cultura.

Mas também afirma que a "Europa destrói através da assimilação". Já há alguns anos que vemos, sobretudo na música, a incorporação e apropriação de géneros e ritmos africanos ou periféricos na cultura mainstream, sempre mediada pela hegemonia branca. Isto é o mercado a agir através das pessoas ou vê honestidade neste tipo de expressões culturais?

Às vezes o capitalismo assemelha-se a uma inteligência artificial. Creio que nem as pessoas no topo da cadeia poderiam, se quisessem, pará-lo. De certa maneira, as forças do mercado funcionam para lá do que é humano. Tenho andado a ler o trabalho do Mark Fisher sobre o realismo capitalista, no qual ele diz que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. A certa altura escreve sobre o Kurt Cobain e como o seu fim era o único fim possível. O Kurt dizia "que se foda a MTV!" e a MTV respondia "fixe!", porque podiam vender aquilo, comoditizá-lo.

É isso que acontece com muita da arte subversiva: é saturada e radicalmente comoditizada. Neste momento, parece não haver qualquer tipo de alternativa e creio realmente que as pessoas não percebem que o estão a fazer. Lembro-me de ver um anúncio que usava partes do discurso do "eu tenho um sonho" do Martin Luther King para vender telemóveis. E tenho a certeza que alguém pensou, honestamente, "o Luther King é muito bom, isto vai ter um impacto na sociedade".

Senti isso com o aproveitamento do movimento Black Lives Matter. Depois da morte do George Floyd houve umas quantas grandes empresas que entraram em contacto comigo: Google, Disney, Vodafone. Nem sei se é cínico. Às vezes será, mas nem sei se eles sabem que estão a ser cínicos. Acham que têm de fazer alguma coisa e atiram dinheiro. E acabam por esvaziar tudo, não sobra nada real.

"A música sempre foi uma maneira de as comunidades negras transmitirem as suas ideias sem chamar a atenção dos poderes dominantes"

Isso é preocupante. O Mark Fisher faz essa pergunta: o que será do mundo quando a juventude já não for capaz de nos surpreender? Quando não houver maneira de escapar do sistema ou sequer fazer algo que o desafie? E conclui que vivemos num sistema fechado, em que o futuro foi cooptado e já não há como escapar.

Mesmo este livro, que no Reino Unido foi publicado pela Penguin Books, faz-me pensar que sim, é fantástico que o livro venda e ganhe prémios, mas o que é que o livro faz? A quem é que serve? Muda alguma coisa? Ainda não sei. A única coisa que posso esperar fazer é contar histórias que desafiem a história hegemónica, tentar mudar a maneira como as pessoas querem estar no mundo. Mas não posso evitar que este "afropeu" seja comodificado. Já fui contactado com uma proposta para um perfume "afropeu". Não dá para escapar.

Então qual o futuro para o "velho continente"? Há lugar para otimismo e utopias?

Não me considero otimista, mas tenho de ter esperança, até porque tenho duas filhas. Os últimos dez anos foram loucos. Vai demorar algum tempo até percebermos o que nos aconteceu na década de 2010, começando na crise financeira e terminando na pandemia, mas parece que as pessoas estão a acordar para a ideia de que nada poderá continuar como antes. Os anos 2000 foram tempos absortos em que toda a gente acreditava no progresso.

Agora, porque voltaram os tempos difíceis, talvez haja alguma mudança, mas não sei que tipo de mudança será exatamente. Depende de como lidarmos com a emergência climática e com todas as catástrofes que nos esperam. Tanto pode dar em movimentos por direitos civis como em guerras civis. É a noção de "capitalismo tardio": faz parecer que estamos no fim de algo, mas não sei se vem aí algo novo. 

Há algum tempo que vivemos numa terra de mortos-vivos e sinto que haverá algum tipo de despertar coletivo, só não sei quando. Espero que não tenha de ser traumático. O que quer que seja, será nas franjas das cidades que se sentirão primeiro os problemas que nos irão afetar a todos. As periferias são incubadoras do futuro.

Há uma passagem no seu livro onde assiste a uma cerimónia protocolar em Clichy-sous-Bois, arredores de Paris, em memória de dois rapazes mortos durante uma perseguição policial, e nota a vacuidade do discurso dos dirigentes políticos, dirigido apenas à comunicação social. Qual deve ser o papel das comunidades negras perante uma sociedade que coopta e neutraliza as suas reivindicações?

Fui a muitos eventos políticos em que as pessoas só queriam mesmo divertir-se. Queriam ouvir música negra, dançar e acreditar que tudo vai ficar bem. É a prevalência da ideia de que tudo se deve resumir a sáris, chamuças e tambores de aço, o que explico no livro. E tem de ser mais que isso. 

Mesmo acreditando que as comunidades negras são cinicamente usadas na política, também temos de acreditar nalguma agencialidade. Não acredito em sociedades separatistas, não é o meu estilo. Não quero sociedades separadas por fatalismo, quero uma sociedade dinâmica e multicultural. Percebo, claro, que algumas comunidades negras se fechem nelas próprias, mas não quero desistir da ideia de que as populações negras podem ser uma parte significativa da Europa, até para lá dos nossos próprios interesses. 

No outro dia ouvia um podcast com Tony Blair e Bill Clinton e só conseguia pensar que há toda uma parte da nossa sociedade politicamente ignorante, sem qualquer ideia do que se está a passar com as pessoas no mundo real. E foi isso que vi em Clichy-sous-Bois: os políticos precisavam passar uma mensagem aos jornalistas e só isso importava. Há mais cuidado com a maneira como as coisas parecem ser do que com o que elas realmente são.

"Há algum tempo que vivemos numa terra de mortos-vivos e sinto que haverá algum tipo de despertar coletivo, só não sei quando"

Tentei combater essa tendência com este livro, tirar essas ideias de dentro das instituições. Claro que também o fiz por necessidade pessoal, mas precisava de falar sobre o que acontece nas ruas e mostrar narrativas contraintuitivas. Conhecer pessoas com as quais não marcaria uma reunião num gabinete em horário de atendimento, mas que encontraria num hostel ou num café de forma aleatória. Foi aí que descobri todas estas histórias que não fazem parte de uma narrativa oficial e que, para mim, são muito mais atraentes e entusiasmantes. 

Já fiz esta viagem há dez anos e é interessante o quão prescientes foram algumas das conversas que tive nesses seis meses. Quando estás a ser honesto, quando escreves o que aconteceu e não o que querias que acontecesse, quando ouves aquilo que as pessoas estão realmente a pensar, é por aí que a luz entra. Não é pelos veículos oficiais, nem pelos espaços online. Temos de escapar das nossas bolhas.

Há uma exceção interessante à sua viagem pelas periferias: na Bélgica foi aos arrabaldes de Bruxelas visitar um museu colonial que pertence à casa real belga. Como foi essa experiência?

Foi fascinante e inquietante, porque consegui visitá-lo mesmo antes de o fecharem para obras de renovação. Era uma de duas ou três pessoas dentro daquele sítio enorme com um cheiro intenso a morte e animais empalhados, onde se podia caminhar através do colonialismo belga. 

Tenho de falar sobre As Aventuras de Tintim. Foi uma das coisas que me fez querer ser escritor, em criança. Como o Tintim, queria viajar pelo mundo e salvá-lo através da minha escrita, mas depois percebi que tudo aquilo foi escrito de uma perspetiva colonialista. É colonialismo. O Hergé, como o Leopoldo II, nunca foi ao Congo. As ideias e as imagens do Tintim no Congo são baseadas naquilo que Hergé viu nas suas visitas àquele museu.

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A tradução portuguesa de Afropeu teve a sua primeira edição no passado mês de junho.

O vilão desse livro, um homem essencialmente maléfico que se vestia de tigre para matar pessoas, foi literalmente desenhado a partir de uma estátua que está nesse museu. Essa personagem tornou-se um estereótipo racista para o africano que não se deixava submeter, o selvagem, o canibal. 

É interessante como estas narrativas históricas foram e são usadas para controlar a maneira como olhamos para as coisas. Dizem que a história é escrita pelos vencedores, e durante mais de um século os belgas contaram a sua versão e ensinaram-na nas escolas, mas quando começamos a olhar para estas narrativas com um olhar crítico vemos que eles próprios também se comprometem. Denunciam, talvez sem perceber, as coisas horríveis que fizeram. 

Nesse livro, o Tintim mata um elefante e tira-lhe as presas, esfola um macaco e veste a sua pele, e era suposto estas coisas parecerem divertidas. Mas podemos reavaliar estes materiais, estes espaços, para tentar tirar alguma verdade de dentro de tanta obscuridade. Foi o que tentei fazer quando lá estive, naquele espaço usado para celebrar tanto mal: tirar outros tipos de conhecimento dali. 

E essa é a utilidade da literatura de viagem. A maior parte dos escritores de literatura de viagem vêm de um certo contexto, normalmente norte-americano, e escrevem de uma maneira quase neocolonialista. Ser um viajante negro permite-te entrar em certos espaços e contar uma história diferente. Gostaria que este livro encorajasse mais pessoas de cor a viajar e a contar as suas histórias sobre aquilo que viram. 

Teve oportunidade de visitar Belém e os monumentos aos Descobrimentos em Portugal?

Não, mas quero muito. E a questão é: o que fazemos a sítios como esse? Pensei muito nisso quando visitei o museu colonial na Bélgica. Quando deitaram abaixo a estátua de Edward Colson [aristocrata britânico, traficante de pessoas escravizadas no século XVIII] pediram a minha opinião e respondi que achava ótimo. Mas devem todas estas estátuas ser derrubadas? Talvez não, pode haver uma reapropriação desses espaços. Encorajo a minha filha mais velha a olhar para esses locais como uma herança, a olhar para o paisagismo fascista ou os monumentos ao esclavagismo e pensar em fazer algo mais interessante que destruí-los.

Sinto que por toda a Europa se está, de alguma maneira, a tentar fazer isso. Pelo menos a tentar trazer o passado colonial à discussão, fazer-se uma reavaliação, mas muita gente fica na defensiva.

O colonialismo foi a primeira grande campanha de marketing. Toda a gente quer ser o herói da história e foi-te dito que, efetivamente, tu e os teus compatriotas são os heróis da história. Há aquela frase bíblica, "a verdade te libertará". Mas primeiro vai enervar-te. É horrível pensar que tudo aquilo em que acreditavas afinal não aconteceu bem assim e que, na verdade, foi muito mais complicado. Mas a verdade torna tudo mais interessante. A complexidade é muito mais rica, mas - e isto é algo que vem da cultura do capitalismo neoliberal - estamos obcecados com a felicidade e pela sua procura. 

A melancolia pode ser um espaço interessante de habitar. Não temos que andar sempre à procura de felicidade, porque isso acaba por ser a raiz de muita infelicidade e desonestidade. Tentar lidar com essa melancolia — lembro-me da “melancolia pós-colonial” do [sociólogo britânico] Paul Gilroy —, viver e movimentar-se nela pode ser uma situação interessante. Sais do outro lado uma pessoa mais sábia.

"Ser um viajante negro permite-te entrar em certos espaços e contar uma história diferente"

Se aceitarmos que a vida é difícil, ela pode tornar-se menos difícil. No final do livro, o conceito de "afropeu" havia sido desafiado inúmeras vezes e eu próprio já não sabia o que significava, mas nessa melancolia final houve um momento de profundidade. E é isso que precisamos de fazer com todas as nossas histórias problemáticas. Nem todos fomos heróis, mas sejamos honestos em relação a isso e tentemos seguir em frente todos juntos.

Mas muitas pessoas acharão que é um ataque à sua história e identidade.

Nessa discussão toda a gente terá que abdicar de alguma coisa. No Reino Unido, em 2015, as famílias descendentes de esclavagistas do século XIX ainda recebiam indemnizações por "perdas materiais" pela abolição do tráfico de pessoas escravizadas. Temos de falar sobre estas coisas, sobre reparações. Há pessoas que terão de abdicar de algum poder, de alguns privilégios.

Grande parte da reação negativa vem precisamente de quem não tem poder e tem poucos privilégios. Fala muito da noção de "culpa branca" no seu livro, de quem acha que o racismo não existe no seu país e de quem "não vê cor". Sente que a sua ideia de uma Europa mestiça incomoda as pessoas brancas, até as que se dizem anti-racistas?

Os Países Baixos, por exemplo, são um país onde isso que referes é bastante visível, mas têm aparecido vários jovens ativistas que tentam lutar contra coisas como o Zwarte Piet, uma personagem inspirada na caricatura racista dos bonecos golliwog e que persiste nas tradições de Natal do país. 

Muita gente acha que é inocente e há quem diga que criticar uma tradição em que as crianças fazem blackface é arruinar-lhes o Natal. Agora dizem que é negro porque caiu da chaminé abaixo, mas não é. Todas as referências históricas que temos dizem que foi inspirado na figura de um servo mouro - uma pessoa escravizada, basicamente. E quando beliscas essa suposta inocência, quando tentas mostrar que não é bem assim e desafiar essa inocência branca, o Estado responde violentamente, mostra as suas verdadeiras cores.

Voltemos à questão do "sari, das chamuças e dos tambores de aço". É como diz no livro, há coisas que são permitidas, como fazer música e jogar futebol, mas se uma pessoa negra se mete a fazer política ou ativismo já não é bem-vinda.

Sim, é tudo muito superficial. É outra versão de ter um amigo negro. Como é que uma nação pode ser racista se tem jogadores de futebol negros na sua seleção nacional? Mas quando queremos realmente mudar as coisas e deixamos as pessoas desconfortáveis já é um problema. 

Penso muitas vezes na minha própria história, especificamente no meu pai. Quando ele veio dos Estados Unidos para o Reino Unido toda a gente o adorava. Nunca teve problemas, nunca sofreu um ato de racismo — e estamos a falar da Inglaterra de 1970. Ouvia dizer, "o Richard é fixe, ele é norte-americano", ao mesmo tempo que se queixavam dos jamaicanos ao fundo da rua. 

Percebi com o meu pai que não havia uma história partilhada para as pessoas se sentirem desconfortáveis ao pé dele. Ele era "da outra banda" e até podiam falar sobre como os Estados Unidos são tão racistas. Passa-se o mesmo comigo quando vou aos Estados Unidos. A negritude move-se connosco. Quando vou aos EUA sou tratado de forma muito diferente dos meus primos que são norte-americanos. Assim que alguém ouve o meu sotaque e percebe que sou inglês já não há desconforto.

"O colonialismo foi a primeira grande campanha de marketing. Toda a gente quer ser o herói da história e foi-te dito que, efetivamente, tu e os teus compatriotas são os heróis da história"

Todavia, creio que as coisas estão a mudar. Há mais discussão, ainda que o caminho seja longo. Falei dos problemas da Internet, mas é lá que estas coisas também podem ser neutralizadas. Antigamente, se querias dizer alguma coisa era através da mediação de uma editora discográfica, de uma publicação ou da BBC. Agora está a haver um acerto de contas. 

Acha que a contracultura está a voltar?

De certa maneira, sim. Voltando à noção de realismo capitalista, depende se essa cultura acaba comoditizada. Mas algo está a acontecer. Não consigo perceber se é algo bom ou mau, mas está definitivamente algo a acontecer. 

Quando tentei arranjar financiamento para fazer este livro, há dez anos, antes da viagem, ninguém se interessou. Não havia apetite, diziam que era um assunto de nicho. Foi através do trabalho de pessoas que fizeram um esforço maior do que o meu que este livro pode agora ser visto como oportuno e com algum tipo de relevância cultural. Com todas as coisas horríveis que aconteceram nos últimos dez anos abriu-se um espaço para estas histórias saírem da penumbra. 

Acha que conceitos como "afropeu" ou ferramentas de análise como a interseccionalidade podem ajudar nesse trabalho, apesar de serem potencialmente cooptados?

Sim, creio que sim. O afropean.com acompanhou a escrita do livro, ainda que funcione a meio-gás, e nunca teve publicidade. É um espaço virtual onde as pessoas podem partilhar as suas próprias histórias. Não é propriedade de ninguém e é um sítio onde a informação é grátis. Quero mantê-lo assim. A L'Oreal está sempre a pedir-me para fazer publicidade, mas não quero vender o creme facial deles no meu sítio. 

Um dia destes estava a falar com um amigo de infância, que vive aqui em Portugal, sobre como Sheffield mudou. Ele dizia que quando se fecharam as minas o argumento do executivo da Thatcher era que a indústria estava a dar prejuízo e já não era viável nem lucrativa. Ao comentar isso com o pai, que era mineiro e esteve nos piquetes de greve, o pai respondeu-lhe que eles não estavam a lutar pelo lucro, mas pela comunidade. É embaraçoso, fomos criados para pensar assim, sempre com a ideia que algo tem de ser lucrativo, e não que são as comunidades que têm de ser preservadas. Não me quero vender. Tenho de fazer muitas coisas ao mesmo tempo para me sustentar, mas consigo manter o privilégio de não me vender.

Como bem diz, é um privilégio que a maior parte das pessoas não tem, porque foi alienada do seu trabalho e da sua comunidade. Não será parte do racismo e em particular da ciganofobia uma expressão de um certo ressentimento por essa alienação?

Sheffield tem uma grande comunidade roma. Essas pessoas passam o dia na rua, as crianças andam sempre a correr, descalças, de um lado para o outro. E oiço outras pessoas, ingleses brancos, a dizer que aquilo é nojento e miserável, mas depois a garantir que antigamente é que era bom, nos anos 1950 ou 1960, que "não tínhamos dinheiro, mas as pessoas conheciam-se, podias deixar a porta de casa no trinco". Se formos ver fotografias de Sheffield nessa altura, é como os roma vivem agora. Há aí qualquer coisa, não há? 

Uma maneira possível de desafiar o capitalismo é levar a sério as coisas que o neoliberalismo promete, mas que falha em conseguir entregar. Já deveríamos todos trabalhar 16 horas por semana, as máquinas deveriam trabalhar por nós. Mas não, trabalhamos mais do que nunca.

Se vires um anúncio de um carro que te mostra cinco amigos a conduzir pelo deserto e a viver os melhores dias das suas vidas, o anúncio não é sobre o carro. É sobre estar com amigos. Se pararmos para pensar nestes símbolos prometidos pelo capitalismo e arranjarmos outras maneiras de chegar a eles, que realmente nos façam chegar a eles, talvez seja possível escapar.