O imaginário da periferia como zona problemática e perigosa foi instigado ao longo dos anos por uma parte dos órgãos de comunicação social. Os jovens dessas zonas são apontados como potenciais criminosos, e com isso vem a defesa da videovigilância.
Não demora muito até uma breve pesquisa em sites de órgãos de comunicação social resultar no encontro de notícias que caracterizam os bairros da periferia dos grandes centros metropolitanos como perigosos e epicentros de criminalidade. Os seus habitantes são apontados como problemáticos e violentos, e os jovens são, na maior parte das vezes, os alvos dessa caracterização. Ficam no epicentro da vigilância policial.
“É imputada criminalidade aos jovens, sobretudo quando estão em grupo e passam a ser apelidados de gangues”, explicou ao Setenta e Quatro Ana Rita Alves, antropóloga que se dedica ao estudo do racismo e da sua relação com a periferia. Este processo de criminalização, continua, diz a estes jovens que “eles não são sujeitos, mas são eminentemente suspeitos”. Como se a sua identidade e os lugares que habitam fosse critério de criminalidade, argumenta.
Historicamente, “as casas e os corpos são lidos exatamente da mesma maneira, as pessoas eram ilegais porque não tinham autorização de residência ou nacionalidade, e as casas eram ilegais porque não tinham posse de terra nem licença de construção”, considera a autora do livro Quando Ninguém Podia Ficar. Racismo, habitação e território, publicado em 2021. E são esses lugares e esses corpos que precisam de ser vigiados na perspetiva do Estado.
A criminalização pressupõe vigilância estatal, mas, antes disso, é necessária uma constante estigmatização destes corpos e lugares. Nisso os órgãos de comunicação social portugueses desempenharam um papel essencial, argumenta Pedro Varela.
Grande parte destes jovens vivem em bairros na periferia de Lisboa, lugares que, por norma, são chamados de “zonas de risco”, “bairros problemáticos” ou, mais tarde, zonas urbanas sensíveis (ZUS). “Configuram-se como espaços que mantêm a sua forte relevância no aparelho securitário, não apenas pela concentração de grupos e de atividades criminosas, mas também por se assumirem como territórios eficazes para a mobilização de indivíduos com predisposição significativa a ações de subversão contra a autoridade do Estado", lê-se no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2011.
As zonas urbanas sensíveis eram pelo menos até 2016 classificados de acordo com critérios étnicos na avaliação do grau de risco, de acordo com uma notícia de 2019 do Público, que teve acesso a três relatórios de avaliação de ZUS de 2016. O nível de risco pode ser “estável, instável ou problemático”. A PSP, no entanto, não esclareceu nada sobre esta classificação ao diário nacional, nem se estes critérios continuavam a ser usados pelas chefias da polícia na definição operacional destas zonas.
Nos RASI, bem como nos media, as chamadas ZUS são uma espécie de mundo à parte, onde cabe uma ideia de perigo iminente, onde grupos de jovens se concentram para cometer crimes, argumenta Ana Rita Alves. É essa a lógica que torna tão necessária a vigilância dos seus corpos, na periferia e na cidade aos olhos do Estado.
“Os atuais bairros ditos ‘problemáticos’ e as novas franjas da marginalidade sucederam às zonas de concentração de operariado conotadas no século XIX como ‘as classes perigosas’”, escreveu Manuela Ivone Cunha, antropóloga e investigadora no Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA). E, por isso, “o antepassado direto do sentimento de insegurança encontrava-se já no medo moderno gerado pela cidade enquanto espaço predatório, medo esse de ordem distinta daqueles que a urbe induzia antes”, continua a investigadora no ensaio Criminalidade e Segurança, de 2019.
Um dos bairros mais estigmatizados, ainda antes de a Cova da Moura, na Amadora, existir, foi o bairro de Mocambo, criado por decreto real. Surgiu no século XVI na zona a que hoje chamamos de Madragoa, em Lisboa, e foi construído para lá viverem africanos, tanto os livres como muitos escravizados, assentando numa base de segregação racial. “O racismo como nós o conhecemos hoje existe mais ou menos desde o século XV e esse bairro, quando foi feito, já seria um bairro oficialmente segregado para a grande parte da população africana e negra de Lisboa viver”, explica ao Setenta e Quatro Pedro Varela, antropólogo.
Para Ana Rita Alves, outro momento histórico importante é o traçado pelo planeamento urbano do início do século XX em espaços então coloniais, vendo o Outro, o sujeito não-branco, como portador de doenças. “A legitimidade da segregação residencial em espaços então coloniais foi em grande medida legitimada por uma ‘síndrome sanitária’”, explica a antropóloga. "Inicialmente, no decorrer do processo colonial, quando brancos iam para as então colónias e adoeciam, essas doenças eram atribuídas ao meio, a um ambiente ao qual os seus corpos não estavam habituados; mas cedo passou a vigorar a ideia de que eram as pessoas negras, e não o ambiente, a fonte dessa contaminação”.
Foi esta narrativa, explícita ou implícita ao longo de séculos, que esteve, por exemplo, na base de planos urbanísticos segregacionistas, nomeadamente na África do Sul. A ditadura de António Oliveira de Salazar, apoiante do regime sul-africano do Apartheid, não passou à margem desta opção urbanística.
A partir dos anos 1960, uma série de trabalhadores e trabalhadoras cabo-verdianas, na sua maioria homens, foram “recrutados pelo sistema português para virem preencher aquilo que era a lacuna de mão-de-obra deixada pelas emigrações para França”, continuou Ana Rita Alves. Mais tarde, já depois das independências dos antigos países colonizados, milhares de pessoas deles provenientes imigraram para Portugal nas décadas de 1980 e 1990 à procura de uma vida melhor, onde se tornaram a espinha dorsal mal remunerada e desvalorizada da renovação imobiliária portuguesa – a Expo’98, joia do orgulho português no mundo na viragem para o século XXI, foi construída por estas pessoas.
Estas pessoas foram-se fixando em espaços mais periféricos da cidade, ora comprando ora construindo as suas próprias habitações, e esses locais passaram a ser lidos com a mesma racionalidade colonial. Ou seja, a raça foi o principal critério de leitura social destes espaços, aliando-se mais tarde uma política de criminalização, em particular dos jovens negros da periferia. E as expressões vindas do contexto norte-americano, como é o caso de gang, aprofundaram o estigma, a perceção de ameaça.
A criminalização pressupõe vigilância estatal, mas, antes disso, é necessária uma constante estigmatização destes corpos e lugares. Nisso os órgãos de comunicação social portugueses desempenharam – e desempenham – um papel essencial, argumenta Pedro Varela.
Esta estigmatização através da informação nota-se não só através da cobertura mediática de intervenções policiais, por vezes até em direto, mas também na forma como se noticia e nas fontes que se escolhem. Por norma, os argumentos de autoridade são atribuídos às forças de segurança, que são, por vezes, partes interessadas.
Mas esta construção de uma narrativa criminal associada a critérios étnico-raciais surge também em pequenos pormenores: quantas vezes surgem mencionados em notícias sobre assaltos ou furtos, quando não são um elemento essencial para que o leitor ou espectador fique informado – prática que, aliás, viola o Código Deontológico dos Jornalistas.
“Alguém na polícia ou nas entidades responsáveis avaliou a situação concreta daquele bairro? Ao nível da educação, das crianças que estão totalmente desprotegidas? Alguém avaliou isso ou queremos ir pela tendência mais musculada?", questionou Paulo Santos.
Pedro Varela não tem dificuldade em lembrar-se de vários exemplos paradigmáticos que ilustram o papel dos media: ainda no final do século XX, uma capa do Independente dizia ter um “relatório secreto sobre os gangs negros e violentos em Portugal”, representando os jovens dos supostos gangs com caricaturas de macacos; em 2005 o suposto “arrastão” na praia de Carcavelos, mito desmontado num documentário da jornalista Diana Andringa com a SOS Racismo; e dez anos depois a suposta invasão de um grupo de jovens da Cova da Moura à esquadra de Alfragide.
“O arrastão ficou imbricado na memória dos portugueses como um momento de jovens criminosos a tomarem as praias das pessoas brancas”, analisa Pedro Varela. Tanto no caso do “arrastão” como no caso da esquadra de Alfragide foi a voz da autoridade a tida em conta, até os factos a desmentirem. “Na situação da esquadra de Alfragide, as primeiras notícias dizem que os jovens invadiram a esquadra e, mais uma vez, até hoje a memória em Portugal é a de que jovens da Cova da Moura invadiram a esquadra de Alfragide”. E se é nos primeiros dias que as notícias de um acontecimento moldam o imaginário de uma história, é também esse o enquadramento que resistirá ao tempo.
“Essas primeiras notícias têm um impacto tão grande, porque vão ao encontro de um imaginário que as pessoas já têm, que é muito difícil de contradizer”, disse Varela. Não só se provou que o “arrastão” de Carcavelos foi uma ficção como os 17 polícias da esquadra de Alfragide acabaram acusados de racismo, tortura, sequestro, injúria e ofensa à integridade física pelo Ministério Público. Sete deles foram condenados a penas suspensas e um a prisão efetiva de 18 meses – a PSP arquivou em dezembro de 2021 os processos disciplinares a três dos agentes, permitindo-lhes continuar a desempenhar funções.
Mas de onde vem o imaginário do sentimento de insegurança da população branca? Ana Rita Alves refere que esse sentimento reside na história colonial portuguesa ao estar colada à ideia de perigo imposta aos corpos negros pelo colonialismo – não se circunscreve aos seus lugares de residência, é transportado consigo para onde quer que vá. Há, portanto, um imaginário branco, colonial, associado à imagem de pessoas brancas que precisam de ser protegidas – perpetuada nos cartazes de promoção do sistema de videovigilância da Câmara Municipal da Amadora em 2016, por exemplo – e de pessoas negras que precisam de ser vigiadas.
Uma forma de ver as coisas que faz com que Paulo Santos, presidente da ASPP, o maior sindicato de polícias, alerte para o facto de muitas das vezes as autoridades policiais darem “respostas de índole criminal” às denominadas ZUS quando, na verdade, “o que se passa lá deve ser visto do ponto de vista urbanístico e da demografia”, tendo em consideração o papel das escolas, das autarquias, e a proteção das pessoas nesses locais. “Muitas vezes a polícia é chamada a responder a situações que foram causadas por outras componentes sociais e políticas”, disse ao Setenta e Quatro.
“Alguém na polícia ou nas entidades responsáveis avaliou a situação concreta daquele bairro? Ao nível da educação, das crianças que estão totalmente desprotegidas e que depois são putativos criminosos? Alguém avaliou isso ou queremos ir pela tendência mais musculada e alguns maus exemplos que temos pelo mundo fora, que é criar um estado policial e a responder a questões que não são policiais?”, questiona o sindicalista.
É nesse sentido que Ivone Cunha considera que a atividade policial compara estas populações com outras que atraem menos a sua atenção ou que escapem por inteiro. “[O mesmo] acontece com as categorias de pessoas ou zonas que são alvo deste maior controlo: podem, por exemplo, ser mais visadas pessoas estrangeiras, negras, ciganas, jovens e toxicodependentes ou determinados bairros urbanos, o que, a ser o caso, se presta a inflacionar artificialmente o número destas pessoas presentes nas estatísticas de criminalidade, em comparação com o de outras”, analisa. “Quanto mais policiamento proativo, mais criminalidade registada” e, quando assim é, “este policiamento tem efeitos sobretudo no número e no tipo de crimes conhecidos, não no número de crimes cometidos”.
No mesmo ensaio, Manuela Ivone Cunha dá o exemplo de um estudo em meados do século XX, nos Estados Unidos da América, que incidia em “camadas juvenis universitárias de elevado estatuto económico-social”. O estudo mostrou que, “ao contrário do panorama habitualmente traçado pelas estatísticas oficiais da criminalidade, onde estes setores tendem a estar pouco representados ou quase ausentes, o seu comportamento transgressivo não era afinal muito diferente do de jovens de grupos sociais e étnico-raciais menos privilegiados, cujo peso nessas estatísticas eram porém muito superiores”.
E as atenções recaem sobre as zonas urbanas sensíveis, e por isso também a videovigilância. Seja com câmaras fixas, drones ou, agora, bodycams.
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