Ocupadas maioritariamente por corpos não-brancos, as periferias dos centros metropolitanos são alvo de estigmatização ao serem apontadas como zonas perigosas e os seus habitantes como violentos. Para vigiar, as autoridades têm recorrido a câmaras fixas e a drones. Com a nova lei da videovigilância, chegam também as bodycams.
Estamos em maio de 2021 e o bairro Quinta das Lagoas, no Seixal, está cercado pela polícia. Ninguém pode entrar nem sair. O Grupo de Operações Especiais (GOE) da PSP está no local na sequência de um suposto tiroteio entre moradores. O cerco durava há oito horas quando as autoridades o deram por terminado. A casa sitiada estava, afinal de contas, vazia. Quase ninguém se deu conta, mas, lá em cima, nos céus, drones da PSP vigiavam o bairro.
António Brito Guterres, investigador em Estudos Urbanos e dinamizador comunitário, acompanha de perto a realidade do bairro e, dias depois, contaram-lhe que “estiveram lá os GOE a passear nos telhados e uns quatro drones a vigiar quem estava na rua”. Não foi, no entanto, a única ocasião em que veículos aéreos não tripulados (VANT) foram usados pelas autoridades. O Setenta e Quatro ouviu relatos de várias fontes que garantem que além deste episódio na Quinta das Lagoas, drones da PSP têm sobrevoado o Casal da Mira, na Amadora, e o bairro da Jamaica, no Seixal – este último em novembro, no dia a seguir a demolições.
O conhecimento de uso de drones em bairros da periferia de Lisboa é um segredo mal guardado e a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) já veio dizer que num Estado de Direito Democrático não se pode aceitar a previsão genérica de sistemas de videovigilância. A PSP usa drones nas suas várias operações há pelo menos seis anos, tendo inserido estes aparelhos nas suas Grandes Opções Estratégicas para 2013-2016.
Paulo Santos, presidente do sindicato de polícias ASPP, admitiu ter conhecimento “informal” sobre a “utilização deste tipo de equipamento por parte dos órgãos de polícia em situações muito concretas e muito específicas, e se calhar muitas vezes à revelia daquilo que poderia ser o enquadramento legal”. Mas, continua, não consegue “especificar quais nem há quanto tempo é que foi”. “Apesar de a atual legislação ainda estar a ser aprovada, é verdade que de algum modo a esta parte tem havido a utilização por parte das polícias”, admitiu o presidente do maior sindicato de polícias do país.
Não é o único polícia, no entanto, a admiti-lo. Também o então superintendente da PSP Paulo Manuel Pereira Lucas o fez numa entrevista que deu para uma tese de mestrado de 2015 sobre veículos aéreos não tripulados do Instituto de Ciências Policiais e Segurança Interna. “A utilização de VANT insere-se nas Grandes Opções Estratégicas da PSP para 2013-2016, com o objetivo último de minimizar a necessidade de utilização de mão-de-obra, nomeadamente em tarefas de vigilância discreta e ostensiva e de comando e controlo”, lê-se na entrevista integral dada pelo comandante da Unidade Especial de Polícia (UEP) até abandonar o cargo em 2020. A entrevista está anexada à tese de mestrado Os Veículos Aéreos Não-Tripulados na PSP: Visão Estruturante e Aplicabilidade Operacional, da autoria de Rui Alfaro.
“Apesar de a legislação [nova lei da videovigilância, foi-o a 20 de dezembro de 2020] ainda estar a ser aprovada, é verdade que de algum modo a esta parte tem havido a utilização [de drones] por parte das polícias”, admitiu Paulo Santos, presidente da ASPP.
Há anos que os drones são usados pela PSP, mas foram os estados de emergência sanitária e os confinamentos obrigatórios que permitiram que surgissem de forma mais evidente nas mãos da PSP e até da Guarda Nacional Republicana (GNR). Logo em março de 2020, a PSP e a GNR foram autorizadas a usar drones para controlar as violações ao estado de emergência, argumentando ter assim uma maior perceção do terreno. Por exemplo, 14 drones da GNR vigiaram o cordão sanitário imposto em Ovar.
As lacunas legais foram ultrapassadas com os sucessivos estados de emergência, mas regressaram mal terminaram, até a nova lei da vigilância ser promulgada em contrarrelógio a 20 de dezembro de 2020.
Estando a utilização dos drones inserida num plano estratégico de videovigilância mais alargado, onde se inclui a nova lei da videovigilância, que permite o uso de outros equipamentos (bodycams), faz sentido questionar quais são, afinal, as zonas e as pessoas mais vigiadas. Nem todos os corpos são iguais aos olhos do aparelho securitário do Estado.
Poucos meses faltavam para que José Sócrates conquistasse a maioria absoluta nas legislativas de 2005 quando a primeira versão da lei da videovigilância foi aprovada. O antigo primeiro-ministro não era o único político do Partido Socialista a defender a videovigilância, também Manuel Maria Carrilho, candidato à Câmara de Lisboa nas autárquicas de 2005, exigia “videovigilância nas zonas críticas da cidade”: zonas como o Bairro Alto, a Ameixoeira e o Intendente.
O PS fazia então da tecnologia um pilar fundamental da sua governação, prometendo apontar Portugal em direção ao século XXI, e para isso foi delineado um Plano Tecnológico. Ao início, os portugueses sentiram alguma desconfiança em relação à videovigilância, associando-a a uma ideia de controlo a que não queriam regressar. A memória das perseguições e repressões do Estado Novo ainda pairava, mas, aos poucos, a desconfiança foi-se atenuando, até a videovigilância se transformar numa quase normalidade.
Se acontecia lá fora, por cá poderia acontecer também, sobretudo quando a lei já previa a instalação de câmaras de videovigilância. Carrilho não baixou os braços e foi o primeiro a sugerir a instalação de câmaras nas ruas lisboetas. Nunca até então um candidato a autarca o tinha feito – perdeu as eleições para o candidato do PSD, Pedro Santana Lopes.
O número de câmaras de vigilância nas ruas passou de 38 para mais de 850 entre 2013 e os dias de hoje, com os municípios de Lisboa e da Amadora a serem os mais vigiados.
No ano em que se aprovou a lei da videovigilância, criou-se também o Plano Nacional de Videovigilância que, de acordo com o Jornal de Notícias, permitia “aos municípios instalar câmaras em locais de risco elevado de criminalidade”. Em 2009, começaram a instalar-se de facto os primeiros sistemas de videovigilância e, não muito tempo depois, a CNDP alertou para os riscos da invasão de privacidade deste tipo de câmaras, o que resultou no chumbo de muitos pedidos que foram sendo feitos para a sua instalação.
A Câmara Municipal da Amadora, município que no início dos anos 2000 já era alvo de grande cobertura mediática na sequência de assassinatos de jovens negros e de agentes da PSP, foi uma das autarquias que em 2008 viu recusado o seu pedido de instalação de câmaras de videovigilância pela CNDP. Depois de negado o primeiro projeto da Câmara da Amadora, um segundo foi apresentado onde o pedido inicial da instalação de 113 câmaras descia para 61. Mais uma vez recusado.
A autorização chegou finalmente em 2013 com o terceiro projeto para instalar 103 câmaras. A presidente da Câmara da Amadora, Carla Tavares, do PS, argumentou na altura que as câmaras seriam instaladas em locais com maior índice de “crimes de furto e de roubo”, sobretudo em “zonas urbanas, junto aos parques e meios de transporte”. A autarca esclareceu ainda que “a câmara não tem acesso a qualquer tipo de imagens, que só são visionadas pela PSP”. Funcionariam como “um mecanismo dissuasor”, prometeu.
De acordo com o Público, o número de câmaras de vigilância nas ruas passou de 38 para mais de 850 entre 2013 e os dias de hoje, com os municípios de Lisboa e da Amadora a serem os mais vigiados.
Entretanto, o uso de drones pelas forças policiais, principalmente norte-americanas, caminhava a passos largos, e Portugal não ficou à margem. Desde dezembro de 2013, de quando data o contrato mais antigo de compra de VANT, até aos dias de hoje, a PSP já gastou mais de 457 mil euros, de acordo com a análise do Setenta e Quatro no portal BASE.
Foram estabelecidos sete contratos. Dois desses contratos foram com a empresa portuguesa Tekever, criada por engenheiros, antigos estudantes do Instituto Superior Técnico, um com a empresa Elistair e os outros quatro com a Hanner&Hanniel.
É na loja HP Drones que está a representação nacional da empresa Hanner&Hanniel. Nesta loja vendem-se alguns dos drones possíveis de identificar em diversas fotografias de intervenções da PSP, como é o caso do modelo Matrice 300 Enterprise, fabricado pela DJI. Pode ter até três câmaras acopladas (infra-vermelhos, térmica e com muito zoom) e pode, inclusive, ficar a sobrevoar sozinho em piloto automático. São também utilizados o Mavic2, o Mavic Enterprise e o Mini 2, sendo este último o mais pequeno e que menos barulho faz. Todos voam até um máximo de 500 metros de altitude. Podem atuar de noite e de dia.
Os contratos da HP Drones com a PSP incluem práticas de formação aos agentes no uso destes aparelhos eletrónicos, sabe o Setenta e Quatro. Mas o objetivo passa por os agentes serem autónomos, darem formação uns aos outros, com alguns deles a terem já uma avançada formação no manuseamento dos drones. A PSP detém pelo menos 18 veículos aéreos não tripulados.
Os drones da DJI têm sido uma opção para as forças de segurança também a nível internacional, e são disso exemplo a Alemanha ou os Estados Unidos da América, neste último também para os Serviços Secretos e o FBI. Estes drones “têm tecnologia de ponta” e são bastante mais acessíveis que aparelhos desenvolvidos especificamente para o efeito (como é o caso da Tekever), segundo o Intercept.
De facto, os modelos da Tekever têm um custo bastante mais elevado que os da DJI. Em 2013, o site Mais Tecnologia noticiou que a “compra dos drones foi feita por ajuste direto à empresa portuguesa Tekever, por cerca de 200 mil euros. Os drones adquiridos pela PSP são o modelo AR1 Blue Ray, cada um custa pouco mais de 73 mil euros”. Um Matrice 300 Enterprise, o modelo mais avançado e completo da DJI que as forças de segurança possuem, custa cerca de 20 mil euros já com algumas especificidades extra, o que permite um investimento em mais equipamento, nomeadamente câmaras térmicas e de infravermelhos.
A lei da videovigilância sofreu um total de quatro alterações desde a sua promulgação em 2005.
“Quanto à utilização dos VANT nas funções da PSP, segundo os entrevistados podem ser utilizados em todos os níveis de intervenção, na ordem pública, trânsito, informações e na prevenção criminal em diversas missões”, lê-se na tese de mestrado Os veículos aéreos não tripulados na PSP: Visão estruturante e aplicabilidade operacional, de Rui Alfaro. O objetivo é estarem inicialmente concentrados na UEP (Unidade Especial de Polícia), e futuramente serem distribuídos pelas várias esquadras e divisões, refere a tese. A PSP usa drones nas suas atividades policiais há pelo menos seis anos.
Cristiano Correia, secretário nacional do sindicato de polícias ASPP, recorda-se de uma situação que gerou polémica em 2015, quando a PSP usou drones para vigiar a final da Liga dos Campeões, sem que tivesse autorização da CNPD.
“Ao que parece, [a PSP] terá pedido na altura uma autorização praticamente em cima do dia do evento e acho que essa autorização tinha que ser pedida com alguma antecedência, até para a CNPD poder avaliar e dar parecer”, contou ao Setenta e Quatro o dirigente sindical. “E, ainda assim, a polícia utilizou e acho que no seguimento teve de destruir as imagens. Penso que essa terá sido a primeira utilização, que se saiba, o que não invalida que antes a polícia já tivesse feito uso, nomeadamente para situações criminais, não só para alguma ação que estivesse a decorrer mas também na ação preventiva – às vezes havia vigilância para acautelar meios de prova e outras situações”, acrescenta.
Poucas notícias há sobre o uso de drones pela PSP e uma delas é precisamente sobre como os usou para localizar três homens armados, depois de os seus agentes terem cercado o bairro da Portela de Carnaxide, em Oeiras. A maior parte das notícias são sobre a oposição da CNPD ao uso de câmaras nestes aparelhos pelas autoridades policiais.
Questionado pelo Setenta e Quatro sobre a PSP deter e usar drones, o Gabinete de Imprensa e Relações Públicas da PSP respondeu que a polícia se tem “manifestado apoiante da utilização de meios de observação aérea, dentro de um quadro normativo claro e que permita a utilização deste avanço tecnológico numa lógica de melhoria da eficácia da Polícia”.
“A PSP dispõe de veículos aéreos não tripulados, que são empregues no quadro da segurança pública (apoio a operações de investigação criminal, policiamentos desportivos, etc) e proteção civil (em especial, ações de busca e salvamento)”, disse por e-mail o Gabinete de Imprensa. Referiu ainda que “estes equipamentos são operados por polícias com formação específica ministrada (também) para que as regras de utilização deste tipo de meios e do regulamento geral de proteção de dados seja salvaguardada”.
Porém, questionada sobre a moldura legal pela qual se rege para usar drones, a PSP não deu qualquer resposta, deixando claro não ter mais nada a dizer ao Setenta e Quatro.
O uso de câmaras em drones pelas forças de segurança tem sido um dos maiores pontos de choque entre estas e a Comissão Nacional da Proteção de Dados. Estávamos já em 2019, sete anos depois de se ter lido as primeiras notícias que ligavam os VANT à PSP, quando a CNPD garantiu que as forças de segurança não têm legitimidade para o fazer, uma vez que esta tecnologia “multiplica o espaço sob vigilância para um nível até há bem pouco tempo impensável para as forças de segurança".
Para os defensores da utilização de câmaras de drones pelas forças de segurança antes da nova lei, a sua utilização é legal por se enquadrar no conceito de “câmaras móveis”, descrito na lei da videovigilância (nº1/2005), enquanto os críticos argumentam que não está abrangido pelo espírito da lei por no momento da redação os drones não serem uma realidade nacional. Não houve qualquer reflexão legislativa ou pública sobre o assunto e as gravações com um drone serem totalmente diferentes de uma câmara de filmar banal. Daí que o braço de ferro entre as autoridades e a CNPD seja sobre o processo de autorização para que sejam usados.
A lei da videovigilância sofreu um total de quatro alterações desde a sua promulgação em 2005. Já na sua primeira versão a lei contemplava a utilização de câmaras portáteis (artigo n.° 6), o que à data poderiam ser câmaras de filmar como as que qualquer cidadão pode usar para gravar um vídeo. Para se usarem estas câmaras, as autoridades policiais teriam de pedir autorização à CNPD e, caso a resposta não chegasse em tempo útil, o dirigente máximo da força ou serviço de segurança poderia autorizar a sua utilização, informando a CNPD no prazo de quarenta e oito horas. Se o parecer fosse negativo, o material gravado teria de ser imediatamente destruído - foi o que aconteceu com a final da Liga dos Campeões de 2015.
No final de 2021 foi aprovada uma nova lei da videovigilância, mais ampla, permitindo a utilização de ainda mais câmaras. É aqui que entram os drones e as bodycams. Mas porquê, se Portugal é apresentado no estrangeiro como um país muito seguro? Os dados do Global Peace Index confirmam esta percepção: em 2021 ficou em quarto lugar numa lista de 163 países, quando em 2020 esteve em terceiro lugar.
As taxas de criminalidade têm vindo a descer no país e, diz Manuela Ivone Cunha, a videovigilância não resolve os problemas de fundo: nem erradica a criminalidade nem diminui a sensação de insegurança. Limita-se a demarcar zonas de (suposto) perigo, contribuindo para a estigmatização. Mas as alterações à lei da videovigilância avançaram mesmo assim.
Há muito que se falava da necessidade de a lei da videovigilância ser alterada para acompanhar a realidade, pois a sua última atualização era de 2012. A lei estava no seu caminho, mas o chumbo do Orçamento do Estado de 2021 levou à dissolução da Assembleia da República pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O processo legislativo foi apressado, e a lei promulgada a 20 de dezembro do ano passado.
As propostas de alteração à lei pelo governo de António Costa foram aprovadas em julho deste ano em Conselho de Ministros. Mais tarde, no final de novembro, tiveram a aprovação final com os votos a favor do PS, PSD, CDS-PP, PAN e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues e os votos contra do BE, PCP, PEV, Iniciativa Liberal, da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira e dos deputados do PS Hugo Oliveira, Isabel Moreira, Cláudia Santos e Carla Sousa.
“Foi um daqueles casos em que se legisla à pressa”, disse ao Setenta e Quatro o deputado comunista António Filipe, membro da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. No final de outubro de 2021, Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, pediu que vários projetos-lei considerados prioritários fossem votados antes da dissolução do parlamento. E este foi um deles. Enquanto a nova lei era discutida na Assembleia da República, drones eram avistados no bairro da Jamaica, no Seixal.
“A legislação não é devidamente escrutinada e torna-se confusa, o que é mau até para aqueles que a vão aplicar no terreno, porque a pior coisa é um diploma legal deixar dúvidas, pode até deturpar-se aquilo que era o pressuposto da lei”, acrescentou Paulo Santos, presidente da ASPP. “Quem vai pagar a fatura serão os profissionais no terreno, pois quando não correr bem poderão ser chamados e ter problemas disciplinares”, sugere.
Opinião contrária tem a deputada Isabel Oneto, do PS e também membro da membro da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, ao garantir que a nova lei da videovigilância “teve o seu caminho para chegar à forma que chegou”. Salientou, no entanto, ser necessário existir “uma fiscalização muito rigorosa” e regular, até “para os cidadãos terem a certeza de que os fins para os quais a lei foi aprovada estão a ser cumpridos”. “É o permanente equilíbrio que nós temos de ter em todo o sistema de prevenção criminal”, disse em declarações ao Setenta e Quatro.
Mas as críticas vão além do processo legislativo. “O problema maior desta atualização começa, desde logo, pela enorme extensão das finalidades possíveis, onde cabe tudo”, critica o deputado comunista António Filipe. “Cheguei a dizer no debate [parlamentar] que esta lei permitia a vigilância em duas circunstâncias: por tudo e por nada. De facto, praticamente não fica nada de fora e abre-se aqui a porta para uma utilização da videovigilância praticamente irrestrita porque, no meio daquelas finalidades todas, alguma se há-de encontrar que a permita utilizar”, aponta o deputado.
Na redação inicial da nova lei da videovigilância, proposta pelo governo de António Costa, previa-se a captação de dados biométricos pelas forças de segurança, mas, após severas críticas da CNPD, estas alíneas acabaram por ser excluídas da redação final, ficando com um sistema de gestão analítico. “Numa próxima legislatura talvez se considere que isso é muito importante para a prevenção da criminalidade, do terrorismo, por exemplo, e que se insista nesse caminho. Isto é quase um percurso sem fim até ao Big Brother. Era importante que se pusesse um travão e se parasse para pensar neste tipo de derivas”, alerta António Filipe.
Por agora, no que toca à utilização de drones pelas forças de segurança, a lei promulgada apenas permite que os veículos aéreos não tripulados possam “captar imagens na vertical, para efeitos da visualização dos espaços de enquadramento e que não permitam a identificação de pessoas em particular”.
Garantia legal que em nada tranquiliza António Brito Guterres, dinamizador comunitário, de que as zonas urbanas sensíveis – leia-se bairros sociais – não venham a ser locais de experimentação com drones. “Normalmente, os bairros sociais são espaços de treino de novidades táticas e instrumentais da polícia”, ressalva.
A construção da ideia de periferia vigiada pressupõe também que se distinga entre “estar na cidade” e “ser da cidade”, explica ao Setenta e Quatro Mamadou Ba, dirigente do SOS Racismo. “A opção da videovigilância cria uma dicotomia entre ser da cidade e estar na cidade. Faz com que a maior parte das pessoas racializadas sintam que estão na cidade, não que são da cidade; porque se tu és da cidade, as pessoas respeitam-te. Estares na cidade é como se estivesses de passagem, então tens de ser vigiado. E isto cria também um sentimento de revolta, como é óbvio”, garante o dirigente antirracista.
Esse marcador social, continua, “reforça a ideia de que tu não és desse sítio, por isso é que as pessoas te tratam como um forasteiro, sempre a ser vigiado, do qual é preciso desconfiar, e alimentam o sentimento de não-pertença, de distanciamento, o que não cria nenhuma fluidez nem com o território, nem com a sociedade maioritária”.
Daí que a vigilância seja “um instrumento de catalogação, de seleção e guetização e, ao mesmo tempo, de repressão”. “Quais são as pessoas que é preciso vigiar para termos paz social? São aquelas que não são consideradas, originariamente, parte do tecido nacional. E todo o discurso sobre a perigosidade de determinados espaços e corpos foi potenciado com essa ideia de legitimar o reforço da vigilância”, critica Mamadou Ba. “A vigilância não é só para prevenir desacertos de relações económicas, sociais e políticas, é também para poder selecionar quem é que o Estado pode reprimir quando achar que esta pessoa ou este grupo de pessoas está a infringir determinados códigos de convivência social. Essas pessoas, a maioria das vezes, são negros, ciganos e migrantes”.
Em Portugal, ainda que não seja teoricamente possível identificar as pessoas, têm sido feitos alertas por parte de quem lida com a mistura das realidades das câmaras fixas com a das câmaras acopladas em drones.
Elementos do BOPE, força especial da polícia militar brasileira conhecida por atropelos aos direitos humanos, deram em 2008 formação técnico-tática a agentes da PSP (que se dirigiram ao Brasil) e, em 2010, Portugal comprou cinco blindados para a Cimeira da NATO que não chegaram a tempo do evento. No seu primeiro ano de vida, foram utilizados apenas três vezes – uma na Amadora, outra em Setúbal e por fim em Odivelas, sempre na zona metropolitana de Lisboa – no que foi encarado como táticas semelhantes às praticadas pelo brasileiro BOPE. A força especial brasileira é considerada uma das mais capazes em termos de combate urbano, nomeadamente nas favelas.
No Reino Unido, a polícia tem usado drones para reforçar o confinamento, reunindo “dados sobre pessoas, como os lugares que elas visitaram”, escreveu Birgit Birgit Schippers no site académico The Conversation. Como exemplo menciona a polícia de Inglaterra, que tem usado as gravações de drone para “localizar pessoas que tenham visitado um parque nacional durante o período de confinamento” e, apesar de não poder identificar os seus rostos, “na teoria pode ligar os dados ao sistema CCTV que está equipado com tecnologia de reconhecimento facial, utilizada para identificar indivíduos”.
“Quais são as pessoas que é preciso vigiar para termos paz social? Aquelas que não são consideradas, originariamente, parte do tecido nacional. E todo o discurso sobre a perigosidade de determinados espaços e corpos foi potenciado para legitimar o reforço da vigilância”, critica Mamadou Ba.
A seu ver, estes mecanismos de vigilância não se podem tornar uma prática recorrente e indiscriminada, isto se queremos “garantir o respeito pelos direitos humanos”. Caso contrário, “os drones podem tornar-se uma peça fundamental de uma arquitetura de vigilância que pode durar no futuro”.
Preocupação semelhante tem Alexandre Guerreiro, especialista em Direito e Segurança Internacional, ao garantir ao Setenta e Quatro que o prazo de 48 horas para as forças de segurança saberem se poderão ou não guardar as imagens recolhidas com câmaras em drones (artigo 9º, alíneas 5 e 6) pode vir a ser algo “muito pernicioso”. “O problema aqui é que até haver uma decisão, quer positiva quer negativa, as imagens foram captadas e foram conservadas, e isto pode tornar-se muito pernicioso”, explica o ex-espião do SIED, referindo que muita coisa pode acontecer em 48 horas, inclusive as imagens poderem ir “parar a canais de televisão e depois ninguém sabe como é que foram lá parar”.
Para o especialista em Direito, a autorização deveria depender da CNPD e não de um membro do governo, uma vez que é necessária uma resposta célere, e não ser dada a posteriori. “Isso vai permitir a possibilidade da direção de cada esquadra da PSP poder indicar aos seus elementos ‘vamos gravar porque isto é uma situação urgente, e se eles invalidarem, apagamos’”, critica. “Naquelas 48 horas, a polícia pode ver as imagens, pode atuar em função delas, mesmo que não exista qualquer tipo de infração, e pode ser usada para fins pessoais, dos próprios agentes ou até mesmo de terceiros.” Mas, garante, as 48 horas legais podem ser bem maiores na prática, caso um fim-de-semana se intrometa.
A CNPD também não perdeu a oportunidade de contestar no seu parecer estas novas alterações, garantindo que estas não cumprem as exigências mínimas num Estado de direito democrático. "Os termos amplos e imprecisos com que vem prevista a utilização, pelas forças e serviços de segurança, de sistemas de vigilância através de câmaras fixas e câmaras portáteis – estas últimas podendo estar incorporadas em drones e nos equipamentos dos agentes (bodycams) –, indefinidamente para qualquer das finalidades admitidas na proposta, com a possibilidade generalizada de utilização de tecnologias de inteligência artificial e de reconhecimento facial, não cumpre as exigências mínimas num Estado de direito democrático para a restrição legislativa de direitos fundamentais", escreveu a CNPD no seu parecer.
O órgão responsável pela defesa da privacidade dos cidadãos criticou ainda que "os sistemas de videovigilância já existentes, seja pela ausência de regras e critérios claros e uniformizados quanto à sua utilização, seja pelo desrespeito da parca regulamentação existente, seja pela falta de meios para o controlo efetivo, por parte das forças de segurança, dos equipamentos e da sua utilização, não se têm mostrado aptos à prossecução das finalidades visadas”.
Apesar do parecer da CNPD, houve uma maioria de deputados a aprovar o texto final da nova lei da videovigilância, o que, na opinião do deputado comunista António Filipe, representa mais um episódio de desvalorização do órgão cuja principal responsabilidade é proteger a privacidade. “Mantém-se uma desvalorização da CNPD enquanto autoridade nacional nesta matéria. Essa desvalorização não começou agora”, disse ao Setenta e Quatro.
Para o deputado comunista, este processo de desvalorização teve início no seguimento da polémica sobre as câmaras de vigilância que a Câmara da Amadora desejava instalar nos espaços públicos do concelho. “A CNPD considerou que era excessivo, que era desproporcionado, e isso levou a que houvesse uma alteração da lei no sentido de deixar de ter uma posição vinculativa na matéria”, contou.
A antiga secretária de Estado-adjunta da Administração Interna discorda e garante que o parecer da CNPD “é sempre importante”. “Porque é a entidade independente que salvaguarda a utilização dos dados pessoais, portanto é sempre importante ouvir a CNPD. A CNPD fez algumas observações, umas com razão, outras sem razão, houve situações que tinham escapado na feitura da lei e corrigiu-se, e foi um contributo importante para o texto final”, disse Isabel Oneto.
Desde a morte do afro-americano George Floyd, asfixiado por um polícia em Minneapolis, nos Estados Unidos, em maio de 2020, que o debate sobre as bodycams chegou a um novo patamar. Além dos registos feitos por civis que chegaram às redes sociais, as filmagens da bodycam de Derek Chauvin, o agente que matou Floyd, permitiram um olhar aproximado da sua atuação e, inclusive, acesso à reação após o afro-americano ter seguido numa ambulância.
“É a opinião de uma pessoa”, disse quando confrontado por uma testemunha com o abuso que acabara de cometer. “Tínhamos de controlar este gajo porque ele é um gajo grande, parece que está metido em alguma coisa.” Chauvin foi condenado a 22 anos de prisão efetiva.
No caso norte-americano, as bodycams dos agentes das forças de segurança estão permanentemente ativadas. Por um lado, permite que se registem todos os acontecimentos, mas, por outro, significa que todas as pessoas que passarem por um agente estarão a ser filmadas.
Em Portugal, explica a deputada do PS Isabel Oneto, as bodycams “são só para situações em que possa haver necessidade do uso da força policial”. “A utilização das bodycams no uniforme ou equipamento dos agentes, primeiro depende da autorização, e depois, citando a lei, ‘a captação de imagem e som apenas pode ocorrer no caso de intervenção das forças de segurança, quando esteja em causa a ocorrência de ilícito criminal, situação de perigo, emergência ou alteração da ordem pública, devendo o início da gravação ser antecedido de aviso claramente perceptível”, continuou, referindo ser “preciso fazer-se o regulamento desta utilização” e que o legislador já tem indicações sobre quais os limites da mesma.
“Acho que isto se afigura bastante perigoso e, no caso das bodycams, não deixa de ser interessante que se proponha a sua utilização por parte de agentes de autoridade quando existem pelo menos dois processos de criminalização de pessoas que recolheram imagens de intervenções policiais”, alertou Ana Rita Alves.
Importa lembrar que em 2018, depois da suposta “invasão” à esquadra de Alfragide, o Diário de Notícias avançou que “a divisão da PSP da Amadora pode ser a primeira no país a utilizar bodycams nos patrulhamentos de rua, principalmente nas designadas zonas urbanas sensíveis, onde estão bairros como a Cova da Moura, Estrela d’África e 6 de maio”. Na altura, uma fonte da Direção Nacional da PSP disse que “estas câmaras são fundamentais para fazer prova, tanto de uma má atuação do polícia como dos cidadãos, e têm um inegável efeito dissuasor para tentativas de manipulação dos factos”.
O deputado comunista volta, mais uma vez, a discordar da narrativa securitária, salientando que a introdução das bodycams no debate público “criou um problema que não havia” e que pode vir a criar mais problemas aos agentes das forças de segurança do que aqueles que deveriam resolver.
Paulo Santos, presidente do mesmo sindicato (ASPP), ressalva que atualmente estão a tentar perceber se, “tendo em conta a realidade da PSP e as suas necessidades, é imperioso investir e colocar a tónica da intervenção policial com base nesses equipamentos”. Segundo sabe, “cada bodycam custa cerca de 100€” e o investimento representará “uns bons milhões” no universo da PSP. Crítica semelhante fez em 2013 o então dirigente da ASPP Paulo Rodrigues sobre a compra de drones: “comprar drones é como comprar um Ferrari e não ter onde dormir”.
Tanto Paulo Santos como Cristiano Correia concordam que, para situações específicas, a utilização de uma bodycam ou de uma câmara por parte de uma autarquia poderá “ter um efeito dissuasor de putativos criminosos”. No entanto, parece estar a passar-se “para um patamar de um complemento que deveria existir, mas descurando aquilo que é a base da atuação e do serviço da PSP”.
Na perspetiva de Paulo Santos, a bodycam poderá comprometer a atuação dos agentes e uma eventual sanção pela sua não-utilização significa falta de conhecimento do terreno. E dá como exemplo o material que um polícia já carrega consigo – um bastão extensível, um cacetete, gás pimenta, algemas, arma de fogo –, a que se vem juntar agora uma bodycam. Numa situação de nervosismo e com tanto equipamento, um agente vai conseguir lembrar-se da bodycam?, questionou.
se as bodycams dão sinais de avançar, a concretização da lei “que o governo aprovou relativamente às infraestruturas e equipamentos” da PSP está bem longe, “abaixo dos 10%”, disse o secretário nacional da ASPP.
Uma dúvida que parece ser legítima. Isabel Oneto explicou que as bodycams só poderão ser usadas em situações necessárias e os agentes terão de avisar no início de cada gravação que vão começar a gravar. Antes da ativação da câmara, existe um período de salvaguarda de dois minutos para dar contexto à eventual gravação. Caso não seja ativada, o registo automático vai sendo apagado.
No que concerne ao acesso às imagens, a deputada do PS diz que “o aparelho em si tem de ser lido num sistema a que só determinadas entidades nas forças de segurança têm acesso”. “O agente da polícia chega à esquadra, coloca a bodycam lá no local próprio, e ele não consegue, mesmo que queira, ter acesso às imagens, só destruindo o aparelho. Não tem acesso às imagens, já que estas são guardadas e só superiormente, se houver alguma situação em que seja necessário visualizar as imagens, é que elas são descodificadas por um outro aparelho”.
Porém, pelo menos para já, este procedimento não está contemplado na lei, enquanto as bodycams poderão chegar em breve ao terreno. A presença de empresas vendedoras destes aparelhos na feira de segurança Segurex, em novembro de 2021, na FIL, mostra que este caminho está a ser feito. Resta saber quando os agentes começarão a usá-las.
No caso de serem os próprios agentes a decidir quando ligar a câmara, as narrativas continuarão a ser contadas na sua perspetiva, alerta Ana Rita Alves. A antropóloga questiona até que ponto não poderá existir uma manipulação da história, já que são os agentes que têm os meios de gravação são os decisores do momento, e possuem “a tutela das imagens”. “Acho que isto se afigura bastante perigoso e, no caso das bodycams, não deixa de ser interessante que se proponha a sua utilização por parte de agentes de autoridade quando existem pelo menos dois processos de criminalização de pessoas que recolheram imagens de intervenções policiais”, alertou.
Não é com toda a confiança que o presidente da ASPP aceita as bodycams, mas parece conformar-se. “Se me perguntar se faz sentido esse investimento, à luz da realidade dos orçamentos da polícia e das suas necessidades, obviamente respondo que não. Mas aquilo que se tem de perceber é que se é necessário, se é útil e se há um estudo que possa justificar essa aquisição, avance-se”, disse Paulo Santos. E se as bodycams dão sinais de avançar, a concretização da lei “que o governo aprovou relativamente às infraestruturas e equipamentos” da PSP está bem longe, “abaixo dos 10%”, acrescenta o secretário nacional da ASPP.
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