joe mulhall

Joe Mulhall: “As pessoas esqueceram-se do que é realmente o fascismo e o que ele carrega”

Há mais de dez anos que se dedica a investigar grupos de extrema-direita no Reino Unido e nos Estados Unidos, infiltrou-se em grupos extremistas e é hoje responsável por operações de vigilância. Em entrevista ao Setenta e Quatro, Joe Mulhall deixou avisos sobre um futuro de violentas disputas contra o ódio e a intolerância com a catástrofe climática que aí vem.

Entrevista
28 Julho 2022

No meio do corredor dos doces e chocolates de uma estação de serviço, Bama sussurrou a Joe Mulhall: “se a guerra civil começar, a primeira coisa que vamos fazer é arrasar as mesquitas”. Aquele miliciano supremacista branco, natural do Alabama, estava apenas a tentar fazer conversa à sua maneira, mas para Joe Mulhall foi um aviso. Poucos meses depois, Donald Trump chegou à presidência dos Estados Unidos da América (EUA).

Há três dias que o antifascista britânico estava no meio do deserto com Bama e os seus companheiros, os Borderkeepers of Alabama (BoA), a tentar intercetar imigrantes sem documentos e traficantes de droga perto da fronteira com o México. Havia sido bem recebido: deram-lhe de comer e de beber, serviram-lhe uísque caseiro e erva americana. Armaram-no com uma Walther PPK (por ser britânico) e o irmão de Bama, Cornbread, até o apresentou à sua mulher. 

Pensava que ia encontrar milicianos rudes, predispostos à violência ao primeiro desafio, mas encontrou pessoas “atenciosas, amigáveis e hospitaleiras”. Só que “também tinham o coração cheio de ódio”, salientou o investigador da HOPE not hate (HNH) ao Setenta e Quatro. “É muito fácil transformarmos essas pessoas em vilões unidimensionais de uma comédia barata, mas a realidade é mais complexa.” 

Não foi a primeira vez que Joe Mulhall se infiltrou num grupo extremista. Tornou-se conhecido ao fazê-lo em eventos e reuniões tanto de movimentos de extrema-direita como de movimentos jihadistas, no Reino Unido. “É quando se acha que mais ninguém está a ouvir que se ouvem as verdades”, contou Mulhall. “Infiltramo-nos para ouvir essas verdades: aquilo em que verdadeiramente acreditam e o que querem fazer em relação a isso, politicamente. É sempre mais extremo.” Mas também o faz para recolher informações e sabotar os seus planos. As suas investigações já ajudaram a evitar ataques terroristas e aceleraram a desintegração de uma variante do norte-americano Ku Klux Klan (KKK). 

"O esquecimento [da história] é uma das principais fontes de alimento da extrema-direita."

Impedir o crescimento da extrema-direita é a razão para a existência da HNH, organização antifascista e antirracista britânica que monitoriza, investiga e tenta sabotar movimentos extremistas no Reino Unido, na Europa e nos EUA. Foi por acaso que Joe Mulhall se lhe juntou em 2010, depois de distribuir alguns panfletos, e hoje é chefe da divisão de investigação da organização. Passou de infiltrado a coordenador de infiltrações, como a que Patrik Hermannson fez por um ano na alt-right norte-americana e que culminou no documentário O extremo da extrema-direita, transmitido na RTP2.

Dez anos depois de se ter juntado ao campo antifascista, Joe Mulhall escreveu o seu livro de memórias dessa última década, Tambores ao longe - incursões na extrema-direita mundial, publicado agora em português pela Temas & Debates. Junta muitas destas histórias numa obra que analisa e explica como chegámos aqui e quais as forças globais que afetam as vidas de milhões de pessoas em todo o mundo. Do Reino Unido à Índia, do deserto do Alabama às margens do Mediterrâneo, a extrema-direita organiza-se em redes transnacionais e está preparada para explorar a catástrofe climática que aí vem. 

Saiu recentemente um relatório da Diem25 que acusa a Grécia e a Frontex de milhares de pushbacks de migrantes que causaram a morte a pelo menos 11 deles. Esteve na Grécia e em Marrocos e diz que a urgência climática intensificará as migrações para Norte e que a extrema-direita está pronta para explorar isso politicamente. Mas parece que são os Estados e as agências governamentais que estão a fazer aquilo que o Joe e a HNH tentaram evitar que radicais de direita franceses fizessem no Mediterrâneo, em 2017, quando sabotaram o navio C-Star. Que sinais isto nos dá para o futuro?

Se olharmos para trás, houve uma retaliação generalizada à chamada “crise dos migrantes”. Embora houvesse muita gente hospitaleira a acolher pessoas, também tivemos casos assustadores de retaliação, como o efeito que essa "crise" teve no crescimento de partidos europeus de extrema-direita. As pessoas estavam com medo, zangadas ou eram simplesmente contra imigrantes, e a extrema-direita aproveitou-se disso. 

Infelizmente, sempre que a extrema-direita ganha força isso puxa o centro político para a direita, especialmente em assuntos como a imigração e o acolhimento de refugiados. Mesmo nos países onde essa extrema-direita não vence eleições, rapidamente começa a guiar as agendas mediática e política em direção a problemas específicos. O resto dos partidos políticos guina então firmemente para a direita numa tentativa de lhes tirar o tapete eleitoral.

"A catástrofe climática já entra na narrativa pré-existente da extrema-direita, será uma mensagem facílima de vender."

Nestes assuntos, como a imigração, os governos (até os sociais-democratas) e os partidos de direita tradicional ficam com medo de serem ultrapassados pelos partidos da direita radical. Então, fazem um esforço excecional para se tornarem mais intransigentes, aplicando legislação cada vez mais cruel e profundamente imoral. É o que temos visto nos últimos dez anos na Europa: a crescente militarização das fronteiras europeias com muros, cercas e arame-farpado. 

No seu livro diz que "a extrema-direita não somente bloqueará ações efetivas contra as alterações climáticas, também está na melhor posição para explorar os seus aspetos negativos". Porquê?

Já sabemos que a migração influenciada pelas alterações climáticas se dirige para norte, não para sul. O número de refugiados climáticos vai aumentar, porque certos lugares se tornarão simplesmente inabitáveis, inclusive no sul da Europa. Durante a crise migratória, a maior parte dessas pessoas fugia da guerra. Vimos como a extrema-direita explorou esses problemas ao reivindicar fronteiras mais fortes e ao apelar à ação contra uma "invasão". 

Quando virmos isso a acontecer novamente, a extrema-direita terá esse histórico de décadas e aproveitará para dizer às populações: "somos nós que vos vamos ajudar a lidar com isto". Também veremos o crescimento do chamado nacionalismo de recursos. A extrema-direita dirá que "temos recursos cada vez mais importantes, como água e terra arável e habitável, e precisamos de protegê-los para o usufruto do nosso povo". A catástrofe climática já entra na sua narrativa pré-existente, será uma mensagem facílima de vender. 

Nos próximos 30, 40 anos milhões de pessoas vir-se-ão forçadas a migrar para a Europa ou a América do Norte. Criar-se-ão padrões migratórios enormes em todo o mundo por causa das alterações climáticas. Em alguns sítios por causa das secas, noutros por causa das cheias. Os problemas vão amontoar-se e a extrema-direita está no melhor lugar para dizer que te irá proteger, a ti e à tua família. Esse será outro problema: tentar que as pessoas, em tempos de crise, se mantenham abertas, solidárias e atenciosas é muito, muito difícil.

Se houver  Estados que assumam a extrema-direita como braço armado na reação às alterações climáticas, não fazendo nada para as mitigar, como se alia a luta antifascista à luta ecológica ou ecossocialista? 

Não acredito, como alguns marxistas, que o fascismo é a expressão mais radical do capitalismo, mas não há maneira de separar o capitalismo do fascismo e do recente crescimento da extrema-direita. A única forma possível de lutar contra o extremismo de direita é, ao mesmo tempo, controlar os excessos do capitalismo ou removê-lo completamente. 

Se olharmos para as causas maiores do crescimento recente da extrema-direita, uma foi a crise migratória e outra a crise económica que começou em 2008 e que atirou milhões de pessoas para a pobreza. Essa crise colocou questões sérias às nossas instituições democráticas e as sociais-democracias não conseguiram responder. 

Por cima disso, está a globalização. Em grandes partes do mundo significou desindustrialização e a terceirização do trabalho para o Sul global. Criou-se uma tempestade perfeita. A extrema-direita, através de fenómenos globais extremamente complexos, saiu da toca. E vieram com a sua solução, que é bastante simples: "temos de garantir que as únicas pessoas que arranjam trabalho, habitação ou cuidados médicos são os nativos desta terra". Mais do que isso, fechar-se-iam as fronteiras para impedir a entrada daqueles que não são "de cá", expulsando também aqueles que já cá estão e não são "parte da nação".

Enquanto não se resolverem os excessos, as contradições e as falhas do capitalismo e das democracias liberais, e os partidos socialistas não conseguirem oferecer às pessoas uma alternativa real e viável, a extrema-direita terá sempre um lugar na sociedade. Tê-lo-à simplesmente porque tem respostas simples para problemas complexos.

Tomemos o exemplo do Reino Unido. A extrema-direita conseguiu mais votos em zonas que votavam, normalmente, no Partido Trabalhista, que não ouviu essas pessoas. Não tornou as suas vidas melhores e muitas pessoas sentiram que não havia alternativa, então viraram-se para a extrema-direita. 

O mesmo aconteceu nos Estados Unidos com Donald Trump. Passei muito tempo no Alabama e no Rust Belt [literalmente, "cintura de ferrugem", a zona industrial do nordeste dos Estados Unidos, em declínio económico e populacional desde os anos 1980]. As causas para a eleição de Trump são mais complicadas do que isto, mas não há dúvida que muitas dessas comunidades sentiram que não tinham alternativa. Aqueles que estavam no poder não os ouviam e Trump dizia as coisas que eles queriam ouvir. Ou seja, enquanto não lidarmos seriamente com o capitalismo e nos livrarmos dele, a extrema-direita estará sempre pronta a aproveitar-se das vítimas das suas consequências.

"A única forma possível de lutar contra o extremismo de direita é, ao mesmo tempo, controlar os excessos do capitalismo ou removê-lo completamente."

Fala também no livro sobre como o seu trabalho antifascista na HNH teve de se adaptar a expressões de direita política que não eram exatamente fascismo, como o partido UKIP. O Brexit e a eleição de Trump mudaram os paradigmas daquilo que seria considerado direita radical. Como é que a luta contra as extremas-direitas mudou nestes últimos 12 anos?

O Brexit não era, intrinsecamente, de extrema-direita, mas, no final, um dos seus grandes elementos era a xenofobia. E certamente inspirou Trump, que por sua vez inspirou [Jair] Bolsonaro. E há este efeito-dominó. Quando um partido de extrema-direita ganha num país, noutro país outro partido de extrema-direita vê que tem hipóteses de ganhar também. Sentem que podem mudar as coisas ao aproveitar um suposto ímpeto sazonal, mas quando chegam ao poder não mudam nada, só fazem pior. 

Ainda assim, esta ideia de que a extrema-direita está em marcha, de que progride, cria-lhes uma certa credibilidade. A grande mudança, creio eu, foi na colaboração. Os partidos de extrema-direita de diferentes países sempre colaboraram, mas é quase incompreensível a forma como a Internet mudou as nossas vidas nos últimos 20 anos. 

Quando comecei, se querias preocupar-te com a extrema-direita, tinhas de saber quem eram os militantes fascistas na tua rua, na tua cidade ou no teu país. E as forças contra as quais lutávamos eram muito tradicionais no estilo e na ação. Havia um líder, as pessoas juntavam-se à organização e, às vezes, iam a eleições. Isso ainda acontece, claro, ainda temos esses partidos. Mas também existe um movimento transnacional de extrema-direita com alcance global.

Chamo-lhes “redes pós-organizacionais”. Na era da Internet podes ter milhares ou dezenas de milhares de indivíduos a colaborar conjuntamente, a partir de diferentes países de qualquer parte do mundo e em tempo real, em questões específicas.  Qualquer pessoa pode fazer isso. A esquerda e os antifascistas podem fazê-lo, mas não o fazem o suficiente e a extrema-direita é muito boa nisso, adotou  desde muito cedo as ferramentas que a Internet punha à disposição. Mesmo se estivermos a falar dos anos 1990, eles foram os primeiros a perceber as oportunidades que a internet dava a pessoas alheadas das discussões públicas. Viram que havia ali a possibilidade de construir os seus próprios espaços e chegar às pessoas sem o aval ou a censura da sociedade civil. 

O mesmo se passou na criação de redes. Viram a oportunidade que tinham para falar com e para pessoas de todo o mundo, de se organizarem para lá das fronteiras nacionais. Isso mudou a maneira como a ameaça da extrema-direita se materializa no nosso quotidiano. 

Se há um jovem na tua comunidade, um de 16 anos que se envolve em política de extrema-direita, provavelmente não foi porque lhe passaram um panfleto na rua. Foi a ver um vídeo online, enquanto nos anos 1990, se querias juntar-te a um grupo de extrema-direita, tinhas de ir bater a uma porta ou escrever uma carta e esperar uma resposta. Além disso, a pessoa que fez esse vídeo pode ser norte-americano, australiano, português ou brasileiro. As formas de radicalização, de organização e de ação mudaram radicalmente. 

Um inglês ultrajado com o facto de se servir frango halal numa escola de Londres, porque não gosta de muçulmanos, poderá ver na sua rede social favorita que também estão a servir frango halal numa escola em Melbourne ou em Sarajevo . Isso cria um sentido de "crise global", um fator de motivação para a extrema-direita. No fundo, angariam essa raiva e aproveitam-na para se organizarem sem fronteiras.

Isso é um grande problema. Monitorizo alguns grupos de extrema-direita no meu trabalho na HNH e nem sei em que país estão, quanto mais onde vivem ou quais são os seus verdadeiros nomes. 

Considerando essas mudanças e a velocidade a que acontecem, como se deixa de estar um passo atrás? Como se previne em vez de reagir?

É uma questão muito difícil de responder e que obviamente já debatemos [na HNH]. Como criamos conteúdo contra-narrativo? Como garantimos que pomos esse conteúdo nas redes a tempo, sempre que há um momento-chave ( como um ataque terrorista), para que não seja ofuscado? Sabemos que nesse momento a Internet será inundada com discurso de ódio, porque, por alguma razão, eles [a extrema-direita] são melhores a criar conteúdo.

Penso que parte do problema é a nossa dependência dos órgãos de comunicação tradicionais. Nós [HNH] somos levados mais a sério do que a extrema-direita quando falamos com um jornal — e com razão. Mas como os jornais falam connosco de uma maneira diferente, acho que isso nos deixou preguiçosos e talvez nos tenha feito pensar que não temos de ir falar diretamente com as pessoas ou criar o nosso próprio conteúdo. 

A outra questão é que ser "anti" qualquer coisa não é suficiente, dizer que não gosto de algo não é suficiente. A direita radical diz: "vamos tornar o mundo melhor, para ti e para a tua família". Isso é realmente motivador. Precisamos fazer o mesmo. Dizer só que "aquelas pessoas são más" não chega. Se queremos mesmo estar nas ruas a lutar com pessoas do nosso lado deveríamos ser capazes de lhes mostrar como é um mundo sem ódio. As pessoas são mais motivadas pela esperança e pelo otimismo que pelo medo e o ódio, sabemos isso — daí o nosso nome: HOPE not hate. 

Falando da sua experiência, como é que se envolveu no antifascismo? Como passou de estar uma banda de indie rock desconhecida algures numa garagem no Reino Unido para acabar no meio de um grupo de milicianos racistas no Alabama, armado e à espera para interceptar migrantes mexicanos? 

É comum, ao falar com ativistas, ouvirem-se histórias extraordinárias sobre algo terrível ou inspirador que lhes aconteceu e mudou a sua vida e os levou ao ativismo. São sempre histórias confortáveis. Para mim, foi um processo muito lento. Tinha acabado o meu curso na universidade e estava numa banda, como disseste. Éramos uma porcaria. Não tinha muito para fazer e aproximavam-se umas eleições importantes no Reino Unido. Interessava-me vagamente por política e comecei por ir distribuir panfletos. Foi por aí. 

Acredito que a maioria das pessoas terá dificuldade em afastar-se do problema da extrema-direita se vir de perto aquilo que ela faz a uma comunidade. Poderia dizer que tenho um avô indiano e que foi isso que me levou ao antifascismo, mas não seria verdade. Quer dizer, eu tenho um avô indiano, mas não foi por isso. Tinha interesse e deixei-me ir. Comecei a bater em portas, a falar com as pessoas da minha comunidade e a descobrir como elas viviam. É uma zona bastante pobre, todas as fábricas fecharam, quase não há trabalho e a extrema-direita estava ativamente a mentir aos meus vizinhos. 

Seria mais difícil para mim não fazer nada em relação a isso, então continuei. Foi bastante gradual, mas de repente passaram-se dez anos e ainda estava a fazê-lo, além de que também é viciante.  É viciante sempre que há uma pequena vitória, sempre que lhes ganhas um bocadinho de terreno.

"Ao estar dentro dos seus espaços, sabemos que mensagens vão usar, que zonas vão escolher e que pessoas vão abordar. Podemos sabotar o seu trabalho ao estar um passo à frente."

É algo que menciona no livro sobre o trabalho enquanto infiltrado. A adrenalina dos momentos tensos, a alegria de um trabalho que corre bem. Porquê a infiltração enquanto método?

Quando a extrema-direita diz algo em público normalmente quer dizer algo diferente. Apresenta uma imagem cuidada ao mundo exterior, mas é quando acha que mais ninguém está a ouvir que se ouvem as verdades. Essa é uma das razões. Infiltramos-nos para ouvir essas verdades: aquilo em que verdadeiramente acreditam e o que querem fazer em relação a isso, politicamente. É sempre mais extremo.

É importante expor isso, porque a extrema-direita ganha apoio e votos precisamente através dessa abordagem polida, moderna e moderada que constrói para alcançar e convencer mais pessoas. É só quando ultrapassas essa camada de aparente decência que podes expor as suas verdadeiras intenções. Há alguns grupos que são abertamente neonazis, claro, mas a maioria da extrema-direita diz que não é racista, "simplesmente não gostamos de imigração descontrolada". 

Quando estás num bar a beber uma caneca e a conversar com um líder de uma organização que diz isso em público e consegues gravá-lo assumindo-se em privado como racista e xenófobo, podes expor não só a sua verdadeira ideologia como os seus planos. Por outro lado, fazemos por combinar a investigação com ações políticas. Queremos conhecê-los, mas também vencê-los politicamente. Se soubermos o que estão a planear podemos organizar campanhas contra isso. Ao estar dentro dos seus espaços, sabemos que mensagens vão usar, que zonas vão escolher e que pessoas vão abordar. Podemos sabotar o seu trabalho ao estar um passo à frente. 

Outra questão é a segurança. Alguns destes grupos são muito violentos e querem fazer coisas terríveis. Nos últimos dez anos, a HNH evitou vários ataques terroristas a mesquitas e sinagogas através da infiltração, ao estar na mesma sala que esses extremistas. É uma combinação de tudo isto, não é só porque dá uma boa história. Embora muitas vezes dê uma boa história. 

Menciona, depois de algum tempo infiltrado no grupo Borderkeepers of Alabama, que começou a sentir alguma empatia com um deles, o “Bama”, porque o tratava bem, o acolheu no grupo e era cuidadoso consigo. Afinal não eram só pessoas más, vilões dos filmes. Alguma vez achou que estivesse “demasiado” infiltrado e que não conseguia lidar com aquilo?  

Era o mais difícil das infiltrações. É fácil dizermos que a extrema-direita é um monstro abstrato e todos os que a integram são pessoas execráveis e odiosas. Há alguns assim, mas a maioria são pessoas normais com ideologias perigosas. 

Se olharmos para trás, os regimes de extrema-direita no século XX doutrinaram milhões de pessoas com essas ideologias. Se queremos fazer alguma coisa em relação a isso não podemos considerar simplesmente que há pessoas particularmente más que se tornam radicais de direita por acaso. Há várias razões para que uma pessoa normal se radicalize.

"A tua vida estar a ser destruída por uma conspiração global criada por uma força omnipotente pode ser reconfortante. A culpa deixa de ser tua."

Depois de ter passado tempo com pessoas assim, teria sido muito fácil dizer que eram pessoas horríveis que diziam coisas horríveis a toda a hora, mas não seria verdade. Muitas vezes eram pessoas atenciosas, amigáveis e hospitaleiras, mas também tinham o coração cheio de ódio por outras pessoas, como muçulmanos e mexicanos.

O mais difícil é ficar a conhecê-los e ganhar a sua confiança, porque acabamos por humanizá-los. E fica mais difícil fazer o nosso trabalho ao percebermos que são humanos como nós. É muito fácil transformarmos essas pessoas em vilões unidimensionais de uma comédia barata, mas a realidade é mais complexa.

Que papel têm tido as teorias da conspiração e os negacionismos dentro dessas organizações? 

Liga-se a algo que disse antes. Há pessoas que estão a passar por situações complicadas, estão num momento da sua vida em que não querem estar. São normalmente homens brancos que procuram alguém em quem pôr as culpas por não terem o estatuto que acham que deveriam ter na sociedade. Sentem-se em declínio e há sempre um "outro" para culpar, normalmente um imigrante. 

As teorias de conspiração criam um conspirador, alguma força secreta e omnipotente. Pode soar assustador, mas também pode ser bastante reconfortante, porque de repente, não estás a ser prejudicado por um governo ou sistema económico. A tua vida está a ser destruída por causa dessa conspiração global criada por essa força secreta e omnipotente. É muito mais compreensível. E se fores o líder de um partido de extrema-direita que não ganha eleições é mais fácil dizer que isso é culpa de uma conspiração global judaica do que admitir que as pessoas não gostam de ti. É fácil arrumar tudo nessa lógica. Tens sempre alguém em quem pôr a culpa do que quer que seja que te aconteça de mal. 

Isso aplica-se também aos jovens que têm levado a cabo vários atentados terroristas por todo o mundo, inspirados por teorias ecofascistas ou conspirações sobre "substituições demográficas"? 

Uma das coisas que se encontra ao monitorizar os canais de extrema-direita onde se encontram esses jovens que depois se tornam terroristas é que passam a ser venerados como heróis. Para um jovem solitário, incapaz, desprivilegiado e irritado com o mundo, a ideia de se passar de um falhado a um herói é bastante apelativa. Basta cometer um ataque terrorista e passa a ser um "herói da raça".

Creio que é por isso que já se criou uma espécie de modus operandi ao incorporar as redes sociais nesses ataques. Fazem transmissões ao vivo, publicam um manifesto nas suas redes sociais, usam certas iconografias, até têm gráficos de contagem de quantas pessoas já mataram até àquele momento, como num videojogo. É uma forma de ganharem o respeito dos seus pares. 

Outra ferramenta é o medo. Grande parte da extrema-direita diz-te: "se não agires, serás substituído". Tu, a tua família, o teu povo. Para muita gente que ouve e aceita essa mensagem, agir significa colocar cartazes, distribuir panfletos ou juntar-se a um partido, enquanto para outros significa pegar numa arma e matar pessoas.

O documentário Undercover in the alt-right mostrou-o do outro lado da infiltração. Como passou de infiltrado a handler [pessoa responsável por gerir o infiltrado]? Qual é a diferença?

Há um prazo de validade para fazer trabalho de infiltração. Grande parte da informação que recolhia não era utilizável porque poderia comprometer o nosso trabalho. Eventualmente, ao publicar o que descobria, deixava de ser viável voltar a fazer uma infiltração no Reino Unido. Depois, fui para os Estados Unidos, porque lá ninguém me conhecia. Passado um tempo, parei de o fazer. Como tinha toda essa experiência fui capaz de ajudar outras pessoas que queriam fazê-lo.

Em termos de diferenças, acho que é pior ser-se handler. Obviamente que não estás a correr os riscos que o infiltrado corre, mas não tens qualquer controlo sobre a situação. Quando és tu podes convencer-te que tens algum controlo sobre como as coisas acontecem. Se estiveres no meio do deserto do Alabama com um bando de racistas armados até aos dentes não tens assim tanto controlo como gostarias de acreditar, mas podes sempre entrar no carro e ir embora.

Quando és o handler de um infiltrado, não podes fazer nada a não ser sentares-te no bar do outro lado da rua e esperar que não haja problema nenhum. Também acabas por ficar bastante próximo do indivíduo com quem estás a fazer aquela infiltração e aí já não queres que se submetam a essas coisas. Não queres sequer pedir-lhes que o façam. Depois, são muitas noites sem dormir e não podes tirar a tarde nem o fim-de-semana. Não podes sequer desligar o telemóvel. Aquilo torna-se a tua vida, todos os dias, enquanto durar a operação. 

Alguns dos métodos da HNH têm sido criticados por serem iliberais, como fazerem pressão para líderes de extrema-direita serem despedidos dos seus trabalhos ou para livrarias não disponibilizarem certos livros.

Não sou liberal, sou antifascista. Costumo defender essas posições com um conceito que já vem da tradição antifascista, a "democracia musculada". Sabemos que o fascismo e os fascistas esmagam direitos, ameaçam minorias, comunidades e a própria democracia, e subjugam povos inteiros. Não trato o fascismo como trataria outra coisa qualquer. 

Posso não concordar com certos conservadores de direita, mas nunca os trataria como fascistas. O fascismo representa uma ameaça particular à democracia e aos seres humanos que vivem nela. A meu ver, podemos tomar ações robustas para a defender e essas ações têm como fim a defesa da liberdade,  são mais defensivas do que ofensivas.

Falo disso no livro: temos de ter a certeza que não vamos demasiado longe e que os fins justificam os meios. Temos de garantir que todos os nossos atos são justificados. Não andamos a telefonar para todo o lado a tentar que toda a gente seja demitida. Ocasionalmente, há táticas que podem ser descritas como ligeiramente iliberais, a que eu chamaria antes “táticas robustas”, usadas com moderação em alturas que achamos fulcrais — como retardar o crescimento de uma organização de extrema-direita, por exemplo.

"É pior ser-se handler. Não podes tirar a tarde ou sequer desligar o telemóvel. Aquilo torna-se a tua vida, todos os dias."

Nos espaços online, é usual lutarmos para que certas pessoas sejam "desplataformizadas" [uma forma de boicote em que determinado indivíduo é removido de uma plataforma (rede social, programa de televisão, etc.) onde partilha as suas ideias e crenças] e que indivíduos de extrema-direita sejam removidos das redes sociais. Quando essas pessoas não são removidas, as redes sociais tornam-se lugares extremamente tóxicos. 

Há todo um rol de indivíduos que se autocensuram não entrando nesses espaços online, como mulheres, minorias étnicas ou pessoas LGBTQ, porque são atacados. Ao remover vários dos militantes  mais ativos é possível ter mais pessoas nesses lugares, havendo mais vozes e enriquecendo a própria experiência real da liberdade de expressão.

Como é que criamos uma sociedade — e os espaços online também contam — pluralista, segura e democrática, que permite a qualquer pessoa ter e usar a sua voz? Essa é a questão. É aí que entra a "democracia musculada", que envolve a supressão de um número minúsculo de indivíduos de direita radical. Não o fazemos somente por discordarmos deles, mas porque é necessário traçar uma linha. Fazemos isso a fascistas, não o fazemos a conservadores de direita ou a pessoas com quem simplesmente discordamos. 

Ao empurrarmos esses indivíduos para fora das plataformas mais conhecidas, eles refugiam-se noutras onde passam a ter mais liberdade para dizerem o que querem e entendem. Como lidamos com isso?

Ninguém que defenda a "desplataformização" acha que o trabalho está feito assim que determinado indivíduo é expulso do Facebook ou do Twitter. Essa é a primeira fase da batalha. A desplataformização reduz o número de pessoas que interagem com conteúdos de extrema-direita, que poderão ser radicalizadas e recrutadas, e o número de vítimas que podem atacar diretamente. 

Precisamos de estar no espaço alt-tech [redes sociais alternativas que se tornaram populares entre pessoas de extrema-direita], tal como as forças de segurança, a fazer a nossa monitorização. Sítios como o Gettr, o Gab ou o Telegram não são mais obscuros que o Twitter. São fáceis de aceder, não são um canto escuro da Internet, e a HNHe está a monitorizar em todos eles.

"Depois de Utoya, Christchurch, El Paso, Poway, Halle e Buffalo quantas mais vezes teremos que assistir a massacres feitos pela extrema-direita até começarmos a levar o problema a sério?"

É nesses sítios que o discurso se torna mais extremo e eles fazem os seus planos. Por outro lado, também significa que não estão num espaço onde podem contactar as suas vítimas, propagar ódio, recrutar outras pessoas e espalhar a sua propaganda a uma audiência alargada onde qualquer um pode dar de caras com ela. É mais seguro ir atrás de alguém a fazer planos no Telegram do que tê-lo nos trending topics do Twitter. 

Claro que há um problema: os espaços alt-tech podem tornar-se mais sustentáveis, grandes o suficiente para que certas figuras tenham o mesmo número de leitores ou seguidores que tinham no Twitter ou no Facebook. O Tommy Robinson tem mais de 200 mil seguidores no Gettr. Já não basta tirá-los de um sítio popular e bani-los para um mais pequeno, porque esses sítios estão a ficar cada vez maiores. Temos de nos preocupar com isso. Muitas dessas plataformas foram feitas de maneira a não haver qualquer moderação e a própria tática da desplataformização também tem um prazo de validade.

Num dos capítulos vai à Índia, em viagem, e acaba por integrar um protesto de jovens muçulmanos contra uma lei que, ao passar, lhes poderia retirar a cidadania. Chama a atenção para o crescimento do nacionalismo hindu. É uma ameaça ignorada?

O meu pai dizia que "ter princípios custa dinheiro". Todos os países ocidentais recebem Narendra Modi [primeiro-ministro indiano] de braços abertos porque a Índia é uma potência mundial em franco crescimento económico e cada um quer um pedaço desse bolo. Chamam-lhe a maior democracia do mundo e ignoram tudo o que se passa lá. Não sei se o conseguiriam fazer se conversassem com alguns dos jovens muçulmanos com quem passei algum do meu tempo lá. Estão aterrorizados. Temem pelas suas vidas ao mesmo tempo que sofrem o perigo de deixarem de ser reconhecidos como cidadãos do país onde nasceram e cresceram.

Se olharmos para alguma da legislação aprovada, ou para a destruição e profanação de templos e locais de culto, torna-se extremamente preocupante. São milhões de vidas afetadas, mas isso continua a ser ignorado pelo Ocidente, em parte por interesses económicos, mas também porque o Ocidente ignora toda a gente. Se isto estivesse a acontecer na Europa, todos os jornais fariam capas e escreveriam sobre isso todos os dias. Mas não, ignoramos o Sul Global — ou o "terceiro mundo" como os jornais ingleses gostam de lhe chamar.

É por isso que queria tornar o livro global na sua abrangência. Toda a gente ficou obcecada com o que se passou nos Estados Unidos com Trump, mas o mesmo está a acontecer no Brasil com Bolsonaro e na Índia com Modi. E o que se passa na Índia ainda vai dar pano para mangas. Quando lá estive estavam a acontecer grandes motins. Foi terrível, e não vai parar. Há um grande caminho pedregoso pela frente para os indianos.

Falando dos Estados Unidos e de Trump, enquanto investigador e historiador da extrema-direita, qual o significado que dá à invasão do Capitólio, em Washington?

Muito simples: temos de começar a ouvir a extrema-direita. Quando eles dizem que vão fazer algo, o  melhor é acreditar. A extrema-direita norte-americana passou anos a dizer que ia fazer um golpe de Estado. Avisaram que estavam a armar-se e a treinar-se e que iriam fazê-lo. Quando aconteceu, toda a gente exclamou: "ninguém esperava isto!". Foi chocante a maneira como aconteceu, mas não foi surpreendente para quem estava atento.

Quando a extrema-direita diz que vai fazer algo abjeto não podemos assumir que são só invenções ou tolices. Quando dizem que têm planos para concretizar um ataque, vamos ouvi-los. Quando um fascista diz que vai matar antifascistas, vamos ouvi-lo — foi isso que aconteceu em Charlottesville [em 2017]. Temos de os ouvir em vez de assumir que estão só a escrever parvoíces na Internet. Ou vai continuar a acontecer. Depois de Utoya, Christchurch, El Paso, Poway, Halle e Buffalo quantas mais vezes teremos que assistir a massacres feitos pela extrema-direita até começarmos a levar o problema a sério?

E a direita parlamentar? Penso especificamente nos casos de Portugal, de Espanha e de Itália. Falámos há pouco dos perigos da crise climática e da tentativa da extrema-direita em aproveitar-se dela. Mas esta extrema-direita tem sido bem recebida pela direita tradicional, porque ou assimila ou alarga o seu eleitorado.

O Chega é um bom exemplo. Se olharmos para o que era escrito sobre a extrema-direita na Europa, havia sempre exceções. O Reino Unido nunca teve extrema-direita parlamentar por causa do seu sistema eleitoral, mas depois o Brexit aconteceu. A Escandinávia era uma exceção, porque eram todos muito liberais, pessoas adoráveis e bem-educadas a viver numa social-democracia funcional, mas depois tiveram o Partido dos Democratas Suecos [SD, partido nacionalista, conservador e anti-imigração]. A Alemanha era uma exceção por causa da memória do nazismo e do Terceiro Reich, mas depois o AfD [Alternativa para a Alemanha, partido nacionalista, eurocético e anti-imigração]  entrou no parlamento.

A Península Ibérica era uma exceção. Tiveram as duas ditaduras fascistas mais longas da Europa, as pessoas estavam entusiasmadas nas suas jovens democracias, mas entretanto apareceram o Chega e o Vox. Não há qualquer lugar imune às políticas de extrema-direita. Neste momento, a linguagem da direita radical é a que chega às pessoas. Não podemos ser complacentes. A Índia é diferente dos Estados Unidos, como o Brasil é diferente de Portugal, mas há algo a acontecer em todos eles: o crescimento da extrema-direita. Já não há exceções.

Essa direita parlamentar também costuma ser conhecida pelo seu populismo. Esta semana, por exemplo, o líder do Chega (que na sua tese de doutoramento critica o populismo penal do pós-11 de setembro) disse que queria que incendiários fossem julgados como terroristas. A extrema-direita precisa cada vez menos de dogwhistles?

Passaram para as primeiras páginas dos maiores jornais, mas ao menos com pessoas como Ventura já sabemos ao que vêm. Afinal, ele é o líder de um partido de extrema-direita. O problema é quando isso passa para a política mainstream.

Uma das coisas que tento fazer no livro é não soar como alguém que está no Reino Unido a queixar-se que no resto do mundo as coisas estão terríveis. Aqui também estão. O nosso governo quer deter  refugiados que atravessam o Canal da Mancha em busca de asilo e colocá-los em aviões com destino ao Ruanda. Já não são dogwhistles, são buzinas e já não vêm só da extrema-direita. Todo o discurso político europeu se desviou para a direita e estas coisas normalizaram-se.

"Não precisas de te infiltrar numa milícia de extrema-direita, podes ir distribuir panfletos ao fundo da tua rua, falar com as pessoas, escrever um artigo ou fazer memes no Twitter."

Há duas coisas a acontecer. A primeira é o mainstreaming. Indivíduos de extrema-direita que estavam nas franjas da sociedade e que entraram na política convencional. Depois, há a normalização da retórica da extrema-direita, das suas ideias e da sua ideologia, mesmo que entrem na política sem os seus militantes. Políticas que há 20 anos seriam tidas como completamente inaceitáveis agora estão a ser propostas por partidos de centro ou de direita e aprovadas por parlamentos de todo o continente europeu.

Quando ouvimos este clamor constante por fronteiras mais robustas, por castigos mais severos para quem tenta ajudar refugiados ou migrantes, sabemos onde isto vai dar: militarização, muros, arame farpado. Acaba sempre da mesma maneira: pessoas negras a morrer no Mediterrâneo. Podemos dizer que são só tentativas de garantir algum eleitorado que lhes escapou, mas há sempre quem acabe morto.

É mais fácil enfrentar neonazis de cabeça rapada e botas que burocratas de fato e gravata que passam leis que matam pessoas no Mediterrâneo?

É muito mais fácil. Quando se parecem com fascistas e agem como fascistas, sabemos que são fascistas e como lidar com eles. Andamos há 100 anos a fazê-lo. Quando o fascismo vem dos parlamentos, de partidos conservadores ou até de partidos sociais-democratas fica mais complicado combatê-lo.

Há, todavia, algumas formas de o fazer. As pessoas que não gostam desse tipo de extremismo são, normalmente, uma maioria. A decisão de enviar refugiados para o Ruanda não é apoiada pela maioria do eleitorado, mas nem toda a gente que se opõe a isso está a fazê-lo vocalmente. Os políticos precisam de entender que não é uma decisão popular. Se, do nosso lado, falarmos de políticas positivas, empáticas, de acolhimento, e construirmos uma maioria atrás delas, os políticos pararão de fazer esse tipo de coisas horríveis, porque acharão que é o que as pessoas querem. O populismo funciona para ambos os lados.

No livro pede desculpa se em certas histórias faz passar alguma vaidade  que sentia sobre aquilo que estava a fazer, mas qual o rescaldo que faz do seu trabalho? Que importância crê que tiveram as suas infiltrações?

Image
tambores ao longe
O livro de Joe Mulhall foi editado em Portugal no passado mês de junho

Sendo honesto, é obviamente vaidoso ter escrito o meu próprio livro. É uma obra sobre forças globais que afetam as vidas de milhões de pessoas em todo o mundo. Pôr-me dentro dessa história com as minhas pequenas experiências é uma coisa arrogante de se fazer, portanto queria ser honesto sobre isso. Lemos livros de ativistas políticos e lá vem o "sou muito humilde". Mas não és, escreveste um livro sobre ti mesmo.

Quis ser minimamente humilde, pelo menos reconhecendo que o meu papel era inútil no grande plano da política mundial, mas há pequenos momentos dos quais me sinto orgulhoso e sobre os quais escrevi no livro. Posso olhar para trás e dizer: "os meus colegas e eu fizemos algo bom". Não acho que seja uma batalha que se possa ganhar. Não nos vamos sentar, um dia, bater palmas e dizer: "ganhámos". Mas podemos lutar. E o livro é sobre isso: o ato de lutar, para que eles tenham a certeza que também não poderão dizer que ganharam.

Queria que o livro também passasse a ideia de que qualquer pessoa pode fazer o que eu fiz. Não precisas de te infiltrar numa milícia de extrema-direita, podes ir distribuir panfletos ao fundo da tua rua, falar com as pessoas, escrever um artigo ou fazer memes no Twitter. Podemos todos fazer qualquer coisa, seja nesta eleição local, seja contra aquele grupo local de neonazis. E é assim que continuamos a ganhar, ao mobilizar-nos, ao ripostar constantemente.

Muitas das coisas que repara ou relembra no livro parecem não estar na nossa memória coletiva enquanto atos de extrema-direita, como o assassinato da deputada trabalhista Jo Cox. Há uma luta também contra o esquecimento daquilo que é a ameaça do extremismo violento?

Acho que é um esquecimento compreensível. Ninguém quer andar constantemente a percorrer uma lista de coisas terríveis na sua cabeça. Mas a amnésia coletiva sobre algumas dessas coisas já não é compreensível. No início do livro falo sobre a decadência do consenso antifascista na nossa sociedade. A presunção de que "antifascista" seria a posição normal para alguém se assumir politicamente erodiu-se em todo o mundo. Isso é esquecimento. Afastámos-nos demasiado do Holocausto, da II Guerra Mundial, e as pessoas esqueceram-se do que é realmente o fascismo e o que ele carrega, o que acontece quando chega ao poder. Então, o antifascismo deixa de ser a posição política padrão e passa a ser mais uma.

Precisamos recordar os crimes do fascismo, precisamos de ensinar o Holocausto para prevenir o negacionismo do Holocausto. O mesmo com o terrorismo islâmico, porque também há lições aí. Não precisamos de acordar todos os dias e percorrer uma lista de crimes cometidos pelo extremismo para garantir que não nos esquecemos de nenhum, mas temos de investir na educação e na memorialização. Temos de relembrar as vítimas, nem que seja durante cinco minutos, para que a memória não se dissipe. É assim que nos inoculamos contra a retórica da extrema-direita. E também é assim que podemos evitar que as pessoas se tornem fascistas. O esquecimento é uma das principais fontes de alimento da extrema-direita.