João Seixas

Economista e geógrafo com múltiplos interesses pelas questões das metrópoles, João Seixas acredita que estamos num momento de profunda transformação.

João Seixas: “Um dos elementos mais ricos que uma cidade pode ter é a mistura”

Depois de décadas dedicadas ao crescimento urbano, vivemos um momento de profunda transformação. A era digital em muito contribuiu para esta mudança. Ao mesmo tempo, vivemos uma crise habitacional que condiciona a forma de viver nas metrópoles portuguesas, ainda muito centralistas. Sobre tudo isto e muito mais, falámos com o investigador João Seixas.

Entrevista
4 Fevereiro 2022

Há uma cidade que se esconde do nosso olhar. Há um ritmo que exige outro tipo de leitura e uma observação mais aprofundada. João Seixas, professor e investigador, faz desse olhar um modo de vida, tanto na carreira académica como no seu papel como cidadão ativo. 

Com uma licenciatura em Economia, é doutorado em Geografia e tem um mestrado em Planeamento Urbano. É professor na Universidade Nova nas disciplinas de Planeamento Urbano e de Políticas de Cidade. Lisboa é a cidade que habita e estuda. Mas todos os fenómenos relacionados com as metrópoles o interessam, especialmente no que toca ao direito à cidade e expansão de qualidade de vida para todas as zonas urbanizadas, da Costa da Caparica ao Cacém. 

Desenvolve um amplo trabalho de base científica e académica, mas interessa-se bastante pela pedagogia e divulgação social. É por isso que leva os seus alunos num comboio da Fertagus para visitar o Pinhal Novo, e que faz parte do corpo ativo da livraria Ler Devagar, com inúmeras atividades, é autor do podcast Ritmos da Cidade e de diversos ensaios.

O livro que publicou mais recentemente chama-se Lisboa em Metamorfose, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Nesta obra, além de encontrarmos uma descrição histórica e social de Lisboa, temos também o retrato de uma cidade em profunda transformação. João Seixas faz uma leitura destes tempos, deste novo ciclo que a capital atravessa. Na sua opinião, é necessária uma nova interpretação e mudança de paradigmas nas instituições. Se não for por via da reforma política, será por via da pressão cívica. 

“Lisboa tem extraordinárias potencialidades e exasperantes fragilidades”, diz. E agora estão mais acentuadas. Num futuro totalmente novo, já não é tanto o crescimento urbano que nos deve preocupar. São as outras mudanças dos tecidos sociais e ecológicos, e é disso que também falamos nesta entrevista. 

Podemos começar por falar do podcast que criou, Ritmos da Cidade? O que o levou a fazer isso e que retorno criativo tem dado? 

Foi um convite do coordenador da Rádio Antecâmara, que é o arquiteto Pedro Campos Costa, cuja atividade gosto muito. Achei interessante fazer o podcast, considero que os temas da cidade e os temas urbanos são questões que no nosso país precisam de muito maior divulgação e mais conhecimento. Isto faz com que tenhamos de trabalhar em vários segmentos. 

Vivemos num país que ainda percebe muito mal as suas cidades e os seus territórios em geral. Isto é uma área que, como ensaísta, me interessa bastante. Sinto que temos responsabilidades, face a um mundo em profunda mudança neste momento. Uma das componentes é a divulgação, incluindo das perguntas e dúvidas que se têm sobre como está a sociedade, como é que estão os territórios.

O podcast é aparentemente mais ligeiro, mas acaba por não ser, porque procurei interligar as questões urbanas com as vivências de pessoas. Há sempre entrevistados que são residentes ou mais íntimos de determinado bairro, determinada zona da cidade, e falo com essas pessoas sobre o que sentem por estar ali, quais são os seus ritmos, por isso é que chamei Ritmos (da Cidade). Interessa-me muito ver a cidade de forma espaço-temporal, não apenas nos espaços mas nos tempos.

Tem sido então não só um trabalho de divulgação como também um meio de obter informação. Cada entrevistado traz algum sumo.

Claro. Acredito que cada vez mais precisamos muito de divulgação e debate, das nossas questões e das nossas dúvidas. O mundo está a mudar muito, e deixa muita gente com um misto de receio, de preocupação, de incompreensão… Ao mesmo tempo, creio que é muito importante divulgar histórias. 

Estou a falar com uma jornalista que sabe isso até melhor do que eu. Numa época em que há também uma grande tendência para o tribalismo, sobretudo tribalismo digital, é muito importante divulgar histórias de outros. Essas histórias são a minha componente de geógrafo interligada com as experiências nos territórios dos outros, para percebermos como é que todos estamos em comunidades que se cruzam e como tudo junto deve ser potenciado como uma enorme riqueza. 

"O que me interessa mais numa cidade, à primeira análise, é perceber os ritmos entre as pessoas, as atividades e diferentes formas de estarem nela."

Porque é que Portugal percebe mal os seus territórios? Isso é uma perspetiva de geógrafo?

Não é apenas de geógrafo. Enfim… Eu tirei o curso de Economia, depois fui para Londres estudar planeamento urbano, depois tirei um doutoramento em Geografia, a par de um doutoramento em Sociologia. Ando à volta destas coisas todas. Um dia talvez gostasse de tirar História e Filosofia. A minha perceção é que Portugal é um dos países que ainda hoje é mais centralista, cujos recursos estão muito pouco disponibilizados pelos seus diferentes territórios. Isto é devido à sua história. É um país que há muito tempo atrás fundiu o Estado com a Nação, e que tem cinco séculos de história de império colonial, e que também pela sua história colonial reflete pouco sobre o seu território matriz, digamos assim, e ainda hoje tem grandes dificuldades em perceber as suas cidades e os seus territórios de uma forma mais próxima, creio eu. 

O facto de ser um país muito centralista em termos políticos e culturais não é, no meu entender, muito salutar. Nunca foi, e hoje em dia é ainda menos. As cidades e os territórios são elementos cada vez mais centrais de desenvolvimento, são cada vez mais causa, e não mera consequência de desenvolvimento.

Durante muito tempo, sobretudo na época industrial, para o mundo inteiro, não apenas para Portugal, as cidades cresciam e modificavam-se sobretudo como consequência de determinados modelos de desenvolvimento. Acredito muito que hoje em dia é mais importante em termos de causa do que consequência. Desenvolvermos as nossas cidades, a qualidade de vida, a coesão, as oportunidades de emprego, oportunidades de realização, rendimento familiar, proximidade às funções urbanas. Ligar os direitos humanos aos direitos urbanos. Fazer cidades com essa qualidade estará muito próximo daquilo que podemos ter dos novos paradigmas de desenvolvimento.

Em termos de tecido social, Lisboa é comparável a outra cidade do país? 

Lisboa, além do que referi agora, tem umas especificidades históricas particulares. É a capital deste país, muito centralista e pouco atento aos seus territórios, e aparentemente a cidade capital ganharia com este tipo de status, mas a minha perspetiva é que, tal como outras cidades, como o Porto, Coimbra, Viseu ou Évora, Lisboa também beneficia pouco pelo facto de sermos um país muito centralista em termos políticos e culturais.

No livro que escrevi há um primeiro capítulo sobre o que é Lisboa, depois tem dois capítulos grandes, um sobre as cinco décadas, que eu chamo explosão, que começa no início dos anos 1960 e vai até maio de 2011, e depois um outro capítulo que é o da transição, que é desta década, desde 2011 até à pandemia. O que aconteceu nestes dois ciclos… Não são bem dois ciclos. O primeiro é um ciclo, mas o segundo, por isso é que chamo transição, não é um ciclo que acaba com a pandemia, é um ciclo que está em curso, embora a pandemia seja uma situação muito particular. 

A forma como Lisboa se está a desenvolver, como está a crescer e os novos dilemas que tem, tem muito a ver com estas questões iniciais da sua história, da sua dificuldade de compreensão do que é uma cidade, o que é a vida urbana. As forças e fragilidades da vida urbana.

No livro que escreveu refere várias vezes que Lisboa tem uma geografia humana heterogénea, aberta e multicultural. E que estas características nem sempre são valorizadas. Quer explicar melhor?  

A cidade como elemento de desenvolvimento nunca foi verdadeiramente percetível, sobretudo para a política e para as elites. Quando digo elites são elites políticas, elites económicas e elites culturais. Ainda hoje acho isso, que a cidade, pelas próprias elites culturais, ainda é pouco interpretada e compreendida.

As suas características, o seu diagnóstico, não está completamente claro na sociedade. Por exemplo, ainda hoje, para muito boa gente, Lisboa é o centro histórico. Bom, Lisboa hoje em dia é uma grande região metropolitana, com três milhões de habitantes, e que vai até Torres Vedras nos seus impactos quotidianos, vai até quase Santarém, chega até Évora, vai até Setúbal. As suas interligações são como um enorme ecossistema onde, como dizia o Sérgio Godinho, anda tudo ligado. As interligações são muito fortes e hoje em dia continuam a aprofundar-se. E através da globalização e dos efeitos atuais de como o mundo se tem expressado nas décadas mais recentes, das migrações, há uma dinâmica cada vez maior. A sociedade, nomeadamente nas suas expressões políticas, económicas e culturais, percebe ainda pouco destas dinâmicas nos territórios urbanos.

Se ainda é pouco percebido que a cidade é a grande metrópole, aparentemente tão óbvio, quanto mais as diferentes características, os diferentes grupos, os diferentes bairros e diferentes culturas que estão espalhadas nesta metrópole. Penso que cada uma delas ainda é percebida de uma forma demasiado unívoca. Há a situação da Cova da Moura, há a situação de Marvila, há as elites do Parque das Nações, as praias da Costa da Caparica, tudo o que se quiser, que ainda é muito pouco percebido pela maioria da sociedade. 

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Lisboa em Metamorfose
Editado em Agosto de 2021, este livro faz uma descrição histórica e sociológica das mudanças da cidade de Lisboa.

Quando se estuda uma cidade, é inevitável comparar com outras?

Claro que sim. Há características praticamente genéticas que são comuns. Uma cidade é um mar de relações, é um produto da humanidade. Agora, tal como nós, que como seres humanos  temos características genéticas comuns aos seres humanos, e a outras espécies, depois cada indivíduo tem a sua história, tem as suas forças, tem as suas fraquezas, os seus recursos, as suas capacidades. As características de espécie, de construção humana, são comuns, quer estejamos a falar de Lisboa, de Nova Deli ou de São Paulo.

Quando percorre uma cidade, quais são os elementos a que está mais atento? 

Aos ritmos. Gosto muito de sentir os diferentes ritmos de cada espaço da cidade. É interessante porque normalmente as pessoas dizem ‘Ah, fui a Barcelona e achei isto, fui a Paris e achei aquilo’. Na verdade, não foram bem a Barcelona ou a Paris, foram aos locais turísticos, ou eventualmente a um sítio de trabalho ou de conferência.

Lembro-me que alguns estrangeiros me dizem ‘trabalhas em Lisboa, é magnífica’. Eles conhecem alguma parte do centro histórico, e conhecem de uma forma de visitação. Seria fantástico pegar nessas pessoas e colocá-las no meio do Cacém ou de Rio de Mouro. E estarem dois ou três dias inteiros nesses locais, e não apenas meia hora.

Eu pego nos meus alunos de Planeamento Urbano e de Políticas de Cidade, na Nova, e vou com eles à linha de Sintra, à estação de Queluz-Belas, a Rio de Mouro, ao Pinhal Novo. Apanhamos o comboio, voltamos, fazemos visitas dinâmicas, em ritmo, e isto é muito importante para perceber os diferentes ritmos da cidade. Por isso é que a certa altura do livro, quando começo a falar do que é a metrópole, fiz questão que fosse uma descrição quase cinematográfica. Às primeiras horas da manhã, umas pessoas vão pôr as frutas e legumes no mercado de Arroios, umas educadoras de um jardim de infância vão buscar as crianças em Benfica, uma estudante vai até à estação de Coina…

Tudo isso é ao mesmo tempo, tudo isso faz parte deste enorme corpo. Tens as diferentes células, diferentes moléculas e os diferentes organismos que interagem num corpo inteiro. O que me interessa mais numa cidade, à primeira análise, é perceber os ritmos entre as pessoas, as atividades e diferentes formas de estarem nela. 

Concorda que continuamos a viver numa tendência de segregação? 

As cidades têm tendências paradoxais. Sempre teve e sempre terá tendências de atratividade e tendências de expulsão. Dentro de si, também coexistem tendências de mistura, de relacionamento entre diferentes, mas também tendências de segregação. Ou seja, tendências em que determinadas classes ou determinados grupos se aproximam uns dos outros com características próprias sócio-económicas, culturais, etc, o que é normal. 

As cidades têm este fascínio, estas bipolaridades. Compete à política e à sociedade, na sua expressão política e de conhecimento cultural, perceber estas diferentes facetas e procurar integrá-las da melhor forma. Hoje em dia sabemos muito bem que um dos elementos mais ricos que uma cidade pode ter é a mistura. Há pouco falávamos da genética das cidades. As primeiras cidades começaram há dez mil anos e foram em primeiro lugar locais de atração de determinados grupos, mas foram crescendo no intercâmbio entre diferentes grupos. É esta dupla face da mesma moeda que temos de gerir melhor. 

Diria que, em alguns locais de algumas cidades, há tendência de aumento de segregação, e é aí que temos de estar muito atentos. O aumento da segregação não é benéfico para a riqueza e a resiliência destes ecossistemas. E não é benéfico para a nossa democracia e para as nossas políticas.

"É muito importante pensarmos na revolução urbana do século XXI como uma revolução que será ao mesmo tempo social e ecológica."

Essa mistura é essencial para afastar os polos monoculturais? 

Sim. Deve-se a um relativo desconhecimento daquilo que é uma das principais riquezas de uma cidade, que é a mistura. Durante muitas décadas, muitas vezes em nome dos melhores princípios, como por exemplo o direito à habitação, o que se fez em muitas cidades do mundo foram enormes bairros sociais. Acabámos por dar habitação a uma série de famílias, mas enclausurados em si mesmos e afastados dos tecidos mais diversos das cidades e com mais oportunidades de funções, acesso aos bens que a cidade tem, equipamentos, transportes públicos de qualidade, acesso ao outro. 

Durante muitas décadas potenciou-se um pouco essa segregação, e hoje em dia estamos a perceber de facto que a excessiva segregação de classes sociais não é nada benéfico para a nossa sociedade e para a nossa economia. Hoje em dia isso já não acontece tanto em termos de construção de bairros sociais, pelo menos aqui na Europa, mas as tendências de segregação estão agora a surgir de novo por causa dos efeitos do mercado imobiliário, que está a deixar umas franjas muito grandes da sociedade sem acesso à habitação, nos locais onde a cidade era mais diversa. 

Acentuaram-se as desigualdades.

As desigualdades nas metrópoles sempre existiram. Essa é uma das áreas diáfanas das cidades. A análise histórica mostra-nos que é nas cidades e nas metrópoles que os níveis de desigualdade sempre foram maiores. Podes dizer que no mundo rural há muita pobreza, claro que há, mas no mundo urbano há muita pobreza e muita riqueza. Há um acentuar muito grande das desigualdades.

Quando publiquei o livro, os indicadores mostravam que Lisboa era a região mais desigual de Portugal continental. Nos Açores é mais. Os dados mais recentes mostram que, sobretudo com a pandemia, na região centro essa desigualdade também se acentuou, mas há uma grande desigualdade em Lisboa. É curioso ver que o município central da metrópole é o segundo com maior índice de desigualdade do país. Mais desigual que Lisboa só a ilha de Santa Maria, nos Açores. 

Isso tem a ver com a natureza da cidade e também pelo facto de dentro do município de Lisboa se terem provisionado uma série de apoios habitacionais em bairros como Chelas, Marvila, o Bairro Padre Cruz, e portanto tens famílias muito ricas a par de famílias muito pobres. Curiosamente, por essa história, em Lisboa ainda existe essa interessante heterogeneidade, que está demasiado [espalhada] por grandes pedaços de território. Seria muito mais estimulante se fosse uma heterogeneidade à fina escala. Se me perguntarem qual o bairro que mais me fascina dentro de Lisboa, eu digo que é a zona de Arroios. 

Em Arroios, além da densidade humana ser das maiores da cidade, há essa enorme heterogeneidade, com uma expressão social e política incrível. Muitos movimentos, muitas das visões inovadoras, alternativas e de protesto que existem hoje em dia em Lisboa estão muito nesse eixo. No meu entender, deve-se em grande medida a essas características de diversidade que há ali na zona, mais do que noutros bairros da cidade. Há muito mais diversidade ali do que por exemplo na Lapa, em Campo de Ourique ou em Marvila, no aspeto social. 

No livro refere também que o termo gentrificação na verdade quer dizer nobilitação. Porquê?

Sim, porque gentry é um termo inglês, referente a classes mais nobres. Os gentry é um termo inglês muito antigo. Os primeiros textos em Portugal e no Brasil sobre este fenómeno falavam em nobilitar, mas entretanto ficou o termo gentrificação. 

O que é que é preciso para termos mais diversidade residencial?

Vou só dizer uma coisa que entretanto me lembrei. Ao fim destas cinco décadas que Lisboa explodiu, agora estamos nesta década de transição. No meu entender, estamos a assistir a um novo tipo de metamorfose, no mundo inteiro e nas cidades, que é diferente das décadas anteriores. 

A crise financeira de 2008 em importante medida tem as suas raízes num modelo de constante urbanização de todo o mundo. A constante construção de urbanizações nas várias cidades do mundo foi ao longo de muitas décadas e chegou-se a 2007/2008 e dá-se um crash financeiro. Uma parte importante desse crash tem a ver com o enorme endividamento das empresas e das famílias decorrente da produção constante sobre os territórios. O crash começa na Califórnia justamente quando há determinados agentes financeiros que não conseguem pagar as hipotecas de terrenos, de habitações que foram sendo construídas. Tem a ver com o modelo durante décadas de constante urbanização. 

Creio que estamos num período de transição, que vai de novo transformar as cidades, já não tanto em termos físicos, as metrópoles já não vão crescer tanto em termos físicos, mas transformam-se profundamente a nível interno.

"Vivemos num país que ainda percebe muito mal as suas cidades e os seus territórios em geral."

De que forma?

Porque sucede-se a era digital, porque há novos tipos de atividades e serviços nas cidades, o que cria oportunidades magníficas, mas ao mesmo tempo estamos num novo tipo de desfasamento, que é o desfasamento de compreender estas realidades novas e o consequente desfasamento político. 

O sistema de investimentos económicos e capitalistas continua, sofistica-se muito mais com a era digital, e é importante que a sociedade e a política percebam o que é uma cidade, o que é que está a acontecer nas cidades hoje em dia, para promoverem o desenvolvimento económico. Mas também o direito à cidade, coisa que ainda está pouco clara, porque ao mesmo tempo temos instituições e estruturas políticas que vêm do período anterior, muito modernistas, com pouca capacidade de políticas transversais.

Hoje em dia não é suficiente pensarmos em políticas de habitação, não é suficiente pensarmos em termos de políticas de fomento do emprego. Isto em termos de cidades… Temos de ser mais transversais, temos de olhar para os diferentes bairros e os diferentes espaços públicos e diferentes zonas da cidade de uma forma mais transversal, mais integrada, mais ecológica.

Voltando à questão da diversidade residencial, como é possível criá-la?

Com habitação acessível. 

Rendas acessíveis?

Habitação acessível. É uma equação com várias componentes. Primeiro, um mercado de arrendamento mais dinâmico e mais acessível, quer em termos de provisionamento de arrendamento do parque público, que deve ser reforçado, mas também em termos de provisionamento acessível por parte dos privados, que podem fazer contratualização com arrendamento acessível de acordo com determinadas seguranças que o Estado e as políticas podem e devem dar.

Porque é que este modelo deve ser assim, não apenas misto mas multifacetado? Porque em Portugal temos um parque público muito escasso e resolver o problema da habitação, que é gravíssimo em Portugal, sobretudo para as gerações mais jovens, apenas com provisionamento do parque público vai demorar muitos anos. Embora muito possa ser feito nesse aspeto, em parque público que está desocupado neste momento e pode ser rapidamente colocado em habitação para jovens a valores acessíveis, mas também através do mercado privado. É isso que está a ser feito numa série de outros países. 

De uma forma geral, que outras grandes mudanças podia haver na política urbana? 

Considero que necessitamos de fazer uma profunda reforma das estruturas político-institucionais de governação das cidades em Portugal. Temos um modelo relativamente municipalista, que é interessante, mas que tem poucos recursos e pouco poder face às suas responsabilidades, que são cada vez maiores. Está neste momento um processo de descentralização em curso, mas ainda há muitas incertezas. 

Uma coisa é passar as competências, de gestão de escolas, de gestão de centros de saúde, de espaços públicos, etc, outra coisa importante é passar também recursos. Vários tipos de recursos, fiscais, económicos, humanos, políticos. Creio que temos também de reforçar outras escalas da geografia. A escala da metrópole e as escalas das freguesias e dos bairros. De certa forma procurámos fazer isso com a reforma das freguesias em Lisboa. Mas é um caminho longo. 

"As cidades e os territórios são elementos cada vez mais centrais de desenvolvimento, são cada vez mais causa, e não mera consequência de desenvolvimento."

Isto tem a ver com a necessidade de descentralização de que falava inicialmente? 

Sim. É um caminho que quase todos os países da Europa fizeram. Claro que cada um tem a sua história, mas hoje em dia as complexidades dos tecidos urbanos são tantas que é necessário aproximar a política. Não quer isto dizer que se desvitalize os níveis mais elevados da política, muito pelo contrário, até os deixa relativamente mais responsáveis por grandes estratégias, pela defesa de grandes princípios. 

Depois, pode-se trabalhar uma maior proximidade com a sociedade, com os movimentos sociais, com os movimentos urbanos, com as populações. Não é a simples passagem de poder de uma escala para outra, é alguma alteração de poderes e competências para várias escalas ficarem mais inteligentes em termos de ação política. 

É nesse sentido que defende os conselhos de bairro? 

Sim, mas não só. Agora em Lisboa fala-se muito do conselho da cidade, o novo presidente da Câmara quer instituir o conselho da cidade. Faz sentido, mas se os conselhos forem integrados numa estratégia ampla, muito mais global, de participação e de co-governação. Apenas um conselho para ouvir tanto um lado como outro não faz sentido quando ao mesmo tempo temos instituições que não têm reformas e transformações que a cidade necessita. Digamos que é preciso atuar em vários tabuleiros de acordo com uma estratégia mais global. 

Neste século XXI em que estamos… há quem diga que entrámos com a queda do Muro de Berlim, enfim, andámos muito tempo a entrar no século XXI. Se quiser desde a queda do Muro de Berlim até ao crash financeiro. Acredito que uma parte muito importante das futuras revoluções, assim como houve durante muito tempo revoluções sociais, acredito que são muito revoluções urbanas. O direito à cidade com tudo aquilo que a cidade pode e deve provisionar e proporcionar. Quando falo em direito à cidade, isto não tem nada de antiecológico. Normalmente tem-se a ideia que a cidade não é ecológica e o campo é que é. A cidade é e deve ser ainda mais ecológica.

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João Seixas
João Seixas em Lisboa, cidade que habita e estuda. 

Um famoso filólogo australiano, Gordon Childe, dizia que a cidade é o assentamento humano mais ecológico que existe, o que parece um paradoxo em relação ao nosso senso comum. Nós imaginamos que as aldeias é que são ecológicas, mas as cidades, como são locais de concentração da humanidade, são assentamentos ecológicos, porque têm mistura, têm diversidade e têm densidade. É um misto de concentração com diversidade, que as faz evoluir. Se nós estivéssemos todos espalhados em aldeias, o planeta já se tinha exaurido. 

É muito importante pensarmos na revolução urbana do século XXI como uma revolução que será ao mesmo tempo social e ecológica, em que os princípios da ecologia devem entrar nas nossas vidas urbanas. Se a forma de vida nas cidades são das principais razões de como o planeta está, é nas próprias razões que temos que encontrar as causas, mas também os remédios para esta transição ecológica. Há uma componente muito importante da ecologia nas novas formas de viver nas cidades. 

E acha que a consciência do impacto das alterações climáticas, que está a acontecer agora, vai fazer com que políticas urbanas se alterem, no sentido de ser possível viver nelas com o aumento da temperatura? 

Acho que aqui há uma conjugação de dois fatores, que é a consciência dessa urgência e o lastro histórico, político-cultural de cada cidade e de cada país. Em Portugal estamos mais atrasados. Esse caminho está a ser percorrido de uma forma cada vez mais consistente noutras cidades, como Barcelona ou Paris, e noutros locais que não apenas na Europa. Embora ainda não seja de todo um mainstream

Há pouco falávamos da segregação. Se promovermos bairros inteiros relativamente monofuncionais, não estaremos de todo a promover a ecologia humana e social. Se promovermos zonas inteiras monofuncionais, bairros meramente residenciais ou meramente económicos e empresariais, e em que é necessária uma enorme circulação entre os diferentes espaços de uma metrópole, também não estamos a promover uma ecologia mais sistémica. 

Eu creio que esse entendimento tem raízes históricas em determinadas cidades mais profundas do que nas portuguesas. Nós estamos a fazer esse caminho, um pouco mais atrasados do que uns e mais adiantados do que outros. 

Houve o grande êxodo do interior do país para o litoral a partir dos anos 60…

Dentro da metrópole de Lisboa também há muitos interiores. Tal como é preciso tratar do interior do país, também é preciso tratar dos interiores e das zonas mais esquecidas e mais desfavorecidas das nossas metrópoles. 

Acha que houve uma falta de preparação e de planeamento durante essa época de maior fluxo que deixou marcas para sempre?

Sim. Tenho aqui alguns números que posso mostrar. Em 1960, a percentagem de população que estava no município de Lisboa em relação à metrópole era superior a 60%. Em 2021, é inferior a 20%. E ao mesmo tempo a metrópole de Lisboa era 15% da população do país, e agora é cerca de 30%. 

Houve dois enormes movimentos. Um movimento de pessoas que vieram para as grandes cidades e, a par desse, um outro movimento de pessoas que saem das zonas centrais das cidades e vão para os subúrbios. Tudo isso foi feito com muito pouca compreensão e pouco planeamento, pouca política.

E muita construção. 

Claro! É correspondente a uma época. Muita urbanização. E a par da urbanização o urbanismo, que tem sido dos principais motores de desenvolvimento social e económico durante décadas, em todo o planeta. E agora é este paradigma que está em transformação, que é necessário gerir com muito cuidado nesta fase de transição.

As fases de transição são muito sensíveis, porque há um mundo que está a terminar e há um outro mundo que está a começar mas que ainda é muito desconhecido. Creio, inclusivamente, que as situações de populismo que vivemos hoje em dia e os fenómenos de desagrado social que vemos em muitas franjas da população, não apenas nas mais pobres, acho que é em parte por causa desses fatores, de uns paradigmas que estão a mudar e que quer a cultura, quer a sociedade, quer a política não estão a interpretar muito bem. A cultura vai sempre à frente para interpretar melhor as tendências de fundo, creio eu, e acho que está a acontecer isso neste momento, daí o podcast

"O aumento da segregação não é benéfico para a riqueza e a resiliência destes ecossistemas. E não é benéfico para a nossa democracia e para as nossas políticas."

Há muito a fazer, e neste período que passou a metrópole de Lisboa ficou muito suburbana, durante muito tempo a metrópole de Lisboa foi mais suburbana do que urbana. Costuma dizer-se que a antítese da cidade é o campo, acho que não, não é propriamente antítese, nem opositor, porque dependem um do outro, é uma situação algo parasitária. Mas há o urbano e o suburbano. 

Apesar de tudo tem sido feito um trabalho para estes subúrbios terem uma qualidade de vida digna, mas ainda há um trabalho enorme a fazer. Quando falamos em promover a qualidade de vida na cidade, é tão importante, ou mais importante, no Cacém, em Rio de Mouro ou na Costa da Caparica do que aqui no centro de Lisboa, porque fora do município de Lisboa vivem 80% das pessoas. 

Isso quer dizer que o planeamento urbanístico até é capaz de ser mais importante aí nessas zonas?

Não apenas o planeamento urbanístico, eu diria política com P grande. Provisionar direitos às pessoas. Condições de saúde, de educação, de espaços públicos, corredores ecológicos, usufruto cultural e ecológico para todas essas zonas. É um trabalho absolutamente essencial para provisionar qualidade de vida em todas essas zonas da metrópole.

Do país inteiro.

Sim, certamente que nos subúrbios do Porto passa-se o mesmo, ou similar, nos subúrbios de cidades médias, como Coimbra ou Aveiro. São zonas, são bairros, são territórios que merecem tanta dignidade social e espacial como quaisquer outros. 

Quando vai com os seus alunos visitar esses sítios, do que é que falam? 

Da história desses sítios, de histórias das pessoas, fazemos um breve diagnóstico… Se as escolas são próximas ou não, há transportes públicos ou não, se há oportunidades de trabalho, oferta comercial, espaços verdes, onde é que estão os corredores ecológicos, as ribeiras… E depois a partir daí interligamos com aquilo que o planeamento tem e não tem feito. E aquilo que pode ser feito. 

"A crise financeira de 2008 em importante medida tem as suas raízes num modelo de constante urbanização de todo o mundo."

Esta nossa ligação entre o campo e a cidade, com esse planeamento, pode vir a ser muito mais saudável, não é? 

Sim, mas não pode ser um planeamento como era dantes. Falámos da transição pela era digital, mas há uma série de transformações em curso, nas pessoas, nos percursos dos indivíduos, nas famílias, nas escolhas, nas oportunidades, no mercado residencial, nas migrações. Estamos muito mais voláteis, flexíveis, mas ao mesmo tempo também mais instáveis, há uma enorme ambivalência. Com tanta ambivalência, creio que é preciso provisionar os diferentes territórios de determinadas seguranças, daí a importância de provisionar o que é mais basilar, habitação e mobilidade. 

Alguma vez se imaginou a viver noutra cidade que não Lisboa?

Já vivi noutras cidades. Saí de Lisboa quando acabei o curso e fui viver para o Porto, depois fui fazer o mestrado para Londres, a seguir fiz o doutoramento em Barcelona, onde vivi bastante tempo. Agora estou em Lisboa, tenho família, ir para outra cidade equivalia a levar a família toda, o que é um movimento um pouco mais tectónico. 

Mas imaginaria isso?

Sim. Serei sempre lisboeta, mesmo que estivesse a viver em Tóquio. Não vejo problemas em viver noutra cidade, mas prefiro Lisboa. Apesar de todas as suas incongruências e bipolaridades, prefiro Lisboa.