Especialista em políticas públicas. Professor Associado Convidado do ISCTE-IUL. Foi ministro do Trabalho e da Solidariedade.

Vai ficar tudo bem

A direita ganhou em 2022 perto de meio milhão de votos, muitos deles jovens, enquanto a esquerda não subiu um único voto. A diferença entre toda a esquerda e toda a direita reduziu-se numas únicas eleições de 18,4% para 9%. Fica, para todos, a nota de que o despertador tocou.

Ensaio
11 Fevereiro 2022

Até hoje nunca o centro-esquerda subiu o seu peso eleitoral mais de três vezes seguidas. Há vinte anos que a esquerda à esquerda do PS não tinha um resultado tão baixo. A direita subiu mais de 440 mil votos nestas eleições e atraiu muito voto jovem. Se nem o PS nem os partidos à sua esquerda sentirem necessidade de pensar duas vezes a sua estratégia a partir de agora, não sei o que lhes diga sobre o que lhes pode vir a acontecer. 

O que aconteceu ao centro-direita entre 1985 e 1995 pode ajudar a pensar o próximo ciclo. Vindo de uma década em que centro-esquerda e esquerda eram maioritários, mas estavam incapacitados de se entender por causa das profundas divergências de leitura do Período Revolucionário em Curso (PREC) e dos alinhamentos com blocos político-militares antagónicos, o PSD embalou da sua presença no governo desde 1980 para duas maiorias absolutas. Foram facilitadas pelo entendimento entre o primeiro-ministro Cavaco Silva e o presidente Mário Soares.

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI. 

Em 1987, uma moção de censura ao governo minoritário foi aprovada por todas as forças de centro-esquerda e esquerda. As forças que apoiaram a moção de censura defenderam que fosse indigitado um primeiro-ministro do PS (seria Vitor Constâncio), que formaria um governo viabilizado por um entendimento à esquerda, que se dizia garantido, mas nunca apresentado. Foi uma solução que o Presidente da República não aceitou, optando por convocar eleições de que resultou uma maioria absoluta do PSD.

Image
Gráfico resultados legislativas
Fonte: elaboração do autor com os resultados das eleições para a Assembleia Constituinte e para a Assembleia da República, publicados pelo Ministério da Administração Interna.

Em 1995, o PSD perderia as eleições por uma pequena margem. Após uma enorme crispação contra o governo de maioria absoluta, o clima político distendeu-se. O PS formou um governo minoritário, cujos orçamentos eram viabilizados pela abstenção da direita e que ia governando em geometria variável, ora entendendo-se mais à direita, ora mais à esquerda. Muitas vezes votando sozinho e dependendo de abstenções estratégicas, ora do PSD, ora do PCP, ora do CDS. 

Assim se chegou ao malfadado orçamento limiano, teatralmente viabilizado por um só deputado do CDS, ou às sistemáticas dificuldades do PS garantir os votos do seu próprio grupo parlamentar que lhe permitissem ganhar votações. Ficaram célebres as hesitações dentro do PS e do governo em torno da questão do controlo de alcoolémia dos automobilistas, criando-se um clima para que se tornasse um assunto politicamente central. O governo em ziguezague e as hesitações do PS ajudaram o Bloco de Esquerda a nascer e a vingar.  O PS foi forçado a rever a sua atitude perante as forças à sua esquerda.

Este processo, claro, foi facilitado pela queda do Muro de Berlim, em 1989, e que tornou obsoleta a ideia de que o PCP fosse uma ameaça ao posicionamento geopolítico de Portugal. E foi fortemente estimulado pelo respeito mútuo entre Jorge Sampaio e Álvaro Cunhal, permitindo derrubar o muro que separava o PS do PCP numa candidatura à Câmara Municipal em Lisboa, em 1989, depois alargada a outras forças de esquerda. Um passo que não teve consequências nacionais visíveis – sobre ligações invisíveis que possam ter existido ou sido tentadas, não é momento de falar nos governos de António Guterres, mas ajudou a que a tensão entre o PS e o PCP descesse significativamente nesses anos. Além disso, permitiu eleger em 1996 Jorge Sampaio contra Cavaco Silva, à primeira volta e com o apoio do PCP, que escolheu, precisamente, Jerónimo de Sousa como candidato para desistir a favor do PS.

A geringonça passou de coligação negativa a mercearia orçamental. O PS concedia à esquerda um orçamento com uma margem para não executar totalmente ou mesmo quase não executar as concessões que fazia. Costa governava sem ser verdadeiramente condicionado.

A progressiva capacidade de diálogo e mesmo cooperação, pelo menos no plano parlamentar, entre centro-esquerda e esquerda impediu o PSD de ganhar eleições e quando este as ganhou, permitiu formar oposições fortes que precipitaram a queda desses governos. Resultado? De 1995 até 2022, o centro-direita esteve na oposição 21 anos e governou apenas seis. Prepara-se agora para subir esse resultado, nesta legislatura, até aos vinte e seis anos de oposição contra seis de governo.

Esse período de crescente capacidade de diálogo à esquerda permitiu-lhe ter condições de afirmação tal que a fizeram duplicar o seu apoio numa década. Entre 2002 e 2015, PCP e BE passaram juntos de 10% para 20% dos eleitores, dando à esquerda uma força eleitoral que não tinha desde o início dos anos oitenta do século passado. Nesse mesmo período, o conjunto da esquerda e do centro-esquerda subiu de 48,3% para 53%.

A subida conjunta das esquerdas reverteu a tendência dos anos de Cavaco Silva. Depois de 1995, só nas eleições de 2002 e de 2011 o conjunto das esquerdas não foi maioritário em Portugal. E só nestas últimas, marcadas pela iminência de bancarrota e forte fratura entre PS, de um lado, e PCP e BE, de outro, o centro-direita teve um resultado ao nível dos anos de Cavaco Silva. Essa fratura criou, aliás, uma linha de clivagem de que possibilitou o surgimento do Livre, que chega ao parlamento em 2019 e pode estar agora no início de um caminho de alargamento de dimensão ainda não previsível.

A geringonça, preparada por António Costa, foi o corolário da polarização crescente e vitoriosa entre esquerda e direita na sociedade portuguesa. Mas foi feita com bases frágeis. Primeiro, em 2015, com uma forma tímida de acordos escritos, em que os partidos à esquerda se assumiram como antenas separadas de uma interlocução com o núcleo da geringonça formado pelo PS. Depois, em 2019, com uma convergência entre o PS e o PCP para que não houvesse qualquer forma de entendimento político. Discutiu-se, então, a forma desse acordo e tudo pareceu resumir-se à ausência de um acordo escrito, algo que só houvera em 2015, por exigência de Cavaco Silva. Mas o que aconteceu foi o fim de qualquer vinculação estratégica recíproca, de qualquer ideia negociada de agenda progressista entre PS, PCP e BE.

Por muito que PS, PCP e BE tenham dito o contrário, a “geringonça” foi sempre uma coligação negativa, formada para reverter perdas reais e simbólicas dos portugueses com a governação da troika protagonizada pelo entendimento do PSD do Memorando de Entendimento. Acabado o ciclo das reversões que o PS partilhava ou, pelo menos, aceitava, ficaram por reverter aquelas com que sempre concordou (talvez o próprio as tenha sugerido nas negociações). A geringonça passou progressivamente de coligação negativa a mercearia orçamental. Uma vez por ano, o PS concedia à esquerda um orçamento que em grande medida implicaria uma margem para não executar totalmente ou mesmo quase não executar as concessões que fazia e governava sem ser verdadeiramente condicionado.

A partir de 2019, o PS, com a cumplicidade do PCP, matou a geringonça e passámos efetivamente a viver em governo minoritário, com um intervalo no último trimestre de cada ano para arranjos orçamentais. Mais tarde ou mais cedo o BE e o PCP teriam de se cansar do jogo.

Inteligentemente, Rui Rio aproveitou esses anos para desradicalizar a imagem do PSD e afastar o legado de Passos Coelho. O país deixou de estar crispado com o PSD. A estratégia tinha potencial vencedor, permitindo encostar o sistema político à esquerda e recuperar para o centro-direita eleitores que desde 1995 raramente votam nele. Mas António Costa aproveitou a boleia para levar o PS cada vez mais para o mesmo centro, fê-lo com a contenção orçamental real e na plêiade de medidas concretas viabilizadas por voto do PS e do PSD na Assembleia da República. Fê-lo também com as medidas apresentadas pela esquerda, inviabilizadas pelo mesmo bloco central três trimestres por ano.

O PS não irá agora mexer nos bloqueios ao nosso desenvolvimento, quando muito embarcará aqui e ali no canto da sereia das reformas estruturais que quase sempre emanam de agendas conservadoras.

A direita falhou este round do assalto ao poder, em grande medida porque a estratégia de Rio foi incapaz de conter o crescimento da extrema-direita. Este espaço político, que nunca desde o 25 de Abril de 1974 tinha tido peso eleitoral significativo ou representação própria no parlamento, entrou no órgão legislativo em 2019. Podemos dizer que sempre lá esteve, em posições marginais junto do PSD e, um pouco menos marginais, do CDS. Mas explodiu desde 2019. 

Nestas últimas eleições legislativas, uma parte da concentração de voto no PS não teve que ver com o receio do regresso do PSD ao poder, mas com o reflexo condicionado de muito eleitorado de esquerda à ameaça da extrema-direita. E o PSD, a ascendente IL e o CDS não foram capazes de mitigar esse receio, nem de polarizar o voto que acabaram por perder para o Chega, ainda que o tenham compensado com os votos recebidos do PS.

A maioria absoluta do PS pode criar, no próprio, e na esquerda em conjunto, a ideia de que estas eleições foram marcadas apenas pelo sucesso do PS na culpabilização da esquerda pela queda do governo. Foi assim que o entendeu o Comité Central do PCP, ao sublinhar a aproximação entre PS e Marcelo para transformar o chumbo do Orçamento do Estado em antecipação de eleições, e é nesse sentido que se encaminham as declarações dos dirigentes do Bloco de Esquerda.

Se assim for, a esquerda terá de se concentrar em desfazer o voto útil que agora se fez sentir. O PS terá de prosseguir o rumo que traçou, aprofundando e tornando mais visível a orientação com que governa desde 2019.

Com essa linha de rumo, o PS não irá agora mexer nos bloqueios ao nosso desenvolvimento, quando muito embarcará aqui e ali no canto da sereia das reformas estruturais que quase sempre emanam de agendas conservadoras. Continuaremos sem uma política industrial que vá além dos subsídios europeus, sem a revisão do sistema de relações laborais disfuncional e desequilibrado que temos, com políticas sociais frágeis e gritantemente ineficazes quanto às famílias jovens, condenadas aos efeitos cumulativos da precariedade, do desemprego e da desproteção. O Estado-consolidação continuará a ser a bússola da atuação de um governo em “austeridade pela calada”.

A direita usou recorrentemente nestas eleições a imagem da estagnação, da divergência face à União Europeia e da perda perante concorrentes a Leste. Mas não há maior libelo acusatório para um país do que os seus jovens cidadãos olharem para ele como um local onde não querem ficar, nem ter filhos. Nem a emigração parou depois da troika, nem os indicadores de fertilidade reverteram a sua tendência negativa. São sinais de crise do nosso modelo económico e social, a que até agora a resposta prometida se resume a cumprir o prometido OE para 2022 e aplicar uma manta de retalhos, com sérios riscos clientelares, chamada Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Convém, no entanto, recordar que nestas eleições votaram mais 140 mil pessoas do que em 2019, mas a soma do PS, do PCP, do BE e dos partidos não parlamentares de esquerda não subiu um único voto. Pelo contrário, o PSD, o CDS, o Chega e os partidos não parlamentares de direita ganharam mais de 440 mil votos.

Podemos argumentar que esta subida não é preocupante, já que o conjunto de centro-esquerda e da esquerda apenas desceu de 54,2% para 52,2% desde 2019 e que o conjunto da direita e do centro-direita continua nove pontos percentuais abaixo do grupo anterior. Mas a subida da direita de  35,8% para 43,1% dos votos mostra que a diferença entre toda a esquerda e toda a direita se reduziu numas só eleições de 18,4% para 9%. A distância ainda é confortável, mas...

Não está escrito nos astros que a direita continue a subir e a esquerda a descer. Claro que o PS pode agora mostrar a pujança governativa e a energia transformadora face aos problemas estruturais do país finda a covid-19 e sem “empecilhos” à esquerda que não conseguiu mostrar na fase anterior. Pode ser que o regresso das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) não afete a margem de manobra do governo e a inflação não aumente a taxa de juro, criando novas pressões austeritárias ou que, criando-as, o PS não as ouça ou não lhes obedeça. Quando forem desativadas as atuais medidas sociais de emergência, talvez sejam substituídas por medidas estruturais que ataquem os problemas que a crise nos mostrou. 

A estratégia de crescimento económico da próxima década pode ser mais inclusiva e, no seu conjunto, a vontade do governo, o empenho dos parceiros sociais e a dinâmica social podem gerar uma nova distribuição do rendimento em que a parte do trabalho suba substancialmente. Com maioria absoluta, o PS pode finalmente avançar na Agenda do Trabalho Digno, reverter medidas sociais da troika que ficaram por reverter e continuar a fazer crescer o investimento no serviço nacional de saúde. A bazuca pode mesmo mudar o país. 

Pode acontecer que o voto tático que se concentrou no PS seja recompensado com uma nova atitude em que os socialistas se dirigem por decisão própria, no quadro de constrangimentos económicos e internacionais, para um espaço mais à esquerda do que as tentações centristas que recorrentemente  atravessam o partido. A geração mais nova de socialistas, com sensibilidades diversas, mas à esquerda dos velhos socialistas da Fonte Luminosa, pode tomar as rédeas estratégicas do governo sobre os senadores do partido. Podem, pois, os socialistas estar tranquilos.

O centro-direita pode não conseguir como não conseguiu nestas eleições debelar a ameaça que a direita mais extrema representa à sua possibilidade de voltar a ter confiança dos eleitores para governar. Pode também ser que a extrema-direita chegada ao parlamento em força não se “modere” e não ouça os ensinamentos que Rui Rio lhes quis dar para os tornar palatáveis aos portugueses. E que uma extrema-direita reforçada permita um governo de centro-esquerda, mesmo que em perda de influência, fazendo ao nosso centro-direita o que François Mitterrand imaginou que Jean-Marie Le Pen faria à direita republicana em França, permitindo-lhe perpetuar o Partido Socialista francês no poder.

Desde 2019 que António Costa deu sinais claros de querer partir a corda. Mas BE e PCP escolheram uma altura desfavorável a si próprios para lhe oferecer essa dádiva.

Assim sendo, todas as esquerdas podem ficar em paz nas gavetas onde estão encerradas. Estarão dispensadas do pensamento crítico e de propor novos caminhos à sociedade portuguesa. Poderão repetir ritualmente os seus mantras, como já estão a fazer, e não precisarão de pensar novas soluções, bem fundamentadas teórica e empiricamente. Não necessitarão de imaginar convergências e diálogos que ponham essas verdadeiras reformas na agenda.

Mas eu não apostava na perpetuação de um PSD fraco, nem em que a IL tivesse já chegado ao seu ponto máximo, nem mesmo que o CDS se deixasse extinguir sem dar luta. Nem  que a extrema-direita continue a ser vista com oposição firme pelos cidadãos. A carta do medo da extrema-direita joga-se uma vez, talvez duas, mas extingue-se no tempo. Com anos a viver com eles, começa-se a estar habituado aos seus tiques e a aceitar que eles fazem parte do jogo. 

A naturalidade com que a IL normalizou a candidatura de Diogo Pacheco de Amorim a vice-presidente da Assembleia da República é só um sinal precoce de que a direita pode acabar por aceitar o Chega como parceiro inconveniente, mas possível. Em vários países já vimos até sociais-democratas olhe-se para os dinamarqueses capitular à normalização das agendas da extrema-direita. Nem todos têm a força do trauma do nazismo que mantém firme o cordão sanitário alemão à extrema-direita.

Nesse dia teremos um problema. Talvez surja um líder no centro-direita que faça à extrema-direita o que António Costa fez ao PCP e ao BE entre 2015 e 2022: a atraia e a aniquile. Não seria um mau cenário. Mas também pode a besta ficar sem controlo e ser ela a alimentar-se de uma inevitável erosão do poder absoluto. No dia em que Costa tiver o destino eleitoral do PSD de Cavaco Silva, em 1995, que teremos feito para evitar um declínio prolongado das esquerdas?

Penso várias vezes naquilo em que acabou o sucesso de François Hollande, em França, na década passada. No esvaziamento, sabe-se lá por quanto tempo, do Partido Socialista francês e de toda a esquerda e num país dividido entre direita moderada e extremista. Mas provavelmente não há nenhuma hipótese de algo semelhante nos acontecer. Nem o nosso PS se parece com o PSF, nem a nossa esquerda tem semelhanças com a francesa, nem o nosso país vive semelhante sentimento de bloqueio e risco de decadência. Ou será que...?

Posso, contudo, ser só um homem da esquerda pessimista. E o último português convencido de que uma maioria plural de esquerda bem pensada e desenhada tem potencial para produzir melhores resultados e estimular alternância democrática saudável, não esmagando o centro-direita moderado do que um governo de centro-esquerda à pesca de consensos em ziguezague. E que para isso é necessário que um PS forte tenha à sua esquerda, colaborantes quando necessário, mas também exigentes e vigilantes permanentemente, forças políticas com representação significativa.

Talvez o desfecho da geringonça se deva aos seus erros de construção, a não ter sido precedida de um trabalho programático que lhe definisse objetivos, não ter implicado uma partilha de poder que corresponsabilizasse, mas também permitisse partilhar os benefícios dos sucessos políticos. Talvez um entendimento à esquerda, necessariamente mais tenso, mas mais claro, como o que vemos neste momento acontecer em Espanha, tenha menos graça para a imprensa internacional do que teve a geringonça. Um entendimento que estabeleça confiança entre as partes, uma que PS, PCP e BE não conseguiram manifestamente construir de modo duradouro, perdidos nas intrigas recíprocas e num triângulo político sem vértices felizes. 

Depois, António Costa foi, desde o chumbo do orçamento, apenas terrivelmente mais eficaz do que Jerónimo de Sousa e Catarina Martins a atribuir a outros a responsabilidade da rutura num momento em que os portugueses efetivamente  não a queriam. Tal não aconteceu apenas porque Costa é um político frio, aconteceu também porque tinha razão neste ponto. Nada aconteceu na vida das pessoas que justificasse a rutura neste momento. Só o desaire autárquico da CDU espoletou uma crise que deve, antes de mais, ter sido uma crise interna do PCP. Nada havia de inaceitável no orçamento de 2022 que fosse aceitável no orçamento de 2021. Talvez a perversidade do orçamento de 2022 fosse mesmo outra, a de ter incorporado à partida muitas medidas que no bailado dos anos anteriores eram guardadas para dar uma aparência de cedência à esquerda.

Talvez surja um líder no centro-direita que faça à extrema-direita o que António Costa fez ao PCP e ao BE entre 2015 e 2022: a atraia e a aniquile. Não seria um mau cenário. Mas também pode a besta ficar sem controlo.

No entanto, não é seguramente à saída de uma crise sanitária que ainda dura o momento em que se acelera o passo para mudanças que não se conseguiu impor nos seis anos anteriores. Mais ainda quando vários desses anos foram de um crescimento económico que teria dado margem para ir mais além, que não foi usada com autorização tácita dos parceiros à esquerda do PS.

António Costa tinha dado sinais claros desde 2019 de querer partir a corda. Mas BE e PCP escolheram uma altura desfavorável a si próprios para lhe oferecer essa dádiva. Bem podem criticar o Presidente da República por ter dado cobertura ao primeiro-ministro. Mas em que momento desde a primeira eleição de Marcelo Rebelo de Sousa não foi assim? Ninguém à esquerda reparou na convergência entre São Bento e Belém nas eleições presidenciais de 2021? Essas em que o BE tão simpático entendeu ser para com o candidato incumbente.

E agora? Fica, para todos, a nota de que o despertador tocou. O centro-direita e a direita ganharam em 2022 perto de meio milhão de votos, muitos deles de jovens. A esquerda atingiu de novo o seu ponto eleitoral mais baixo da história democrática sem que o centro-esquerda tenha regressado ao seu ponto mais alto, embora as vicissitudes do sistema eleitoral criem a ilusão contrária.

Daqui para a frente será sempre a subir, caras e caros camaradas? Então não é preciso mexer em nada e podemos ficar nos cantos, confortáveis, em que estamos.