Doutorando em Economia na Universidade de Sapienza, Roma. Escreve no blogue Ladrões de Bicicletas.

A cortar é que a gente se entende: a política económica num futuro bloco central

A probabilidade de uma governação do bloco central PS-PSD, em que um dos partidos governa em minoria contando com o apoio parlamentar do outro, é bastante maior que nos últimos anos. Que podemos esperar da política económica desse hipotético bloco central?

Ensaio
28 Janeiro 2022

Desta vez precisamos mesmo de ganhar com maioria”. Foi assim que António Costa se dirigiu ao país na sua mensagem de Natal. O líder do PS sublinhou várias vezes a importância de uma maioria “reforçada”, “estável” e "duradoura" – leia-se, absoluta – para “construir um país mais próspero”. Há poucos dias, foi ainda mais claro: quer “metade mais um” dos votos no dia 31 de janeiro. 

Essa parece ser também a vontade do PSD, a julgar pelas palavras de Rui Rio. Na sua moção estratégica, o líder da oposição escreveu que pretende “construir uma nova maioria” para governar o país. 

No entanto, os resultados das sondagens mais recentes não têm confirmado a vontade dos dois partidos. Apesar de terem de ser lidas com as devidas cautelas, a maioria das sondagens continua a mostrar que nem o PS nem o PSD se aproximam de uma maioria absoluta.

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Talvez por esse motivo os líderes de ambos os partidos já têm dado passos no sentido de preparar uma aliança (explícita ou tácita) entre si. Rio assumiu a possibilidade de apoiar um governo minoritário do PS e disse esperar a mesma atitude por parte dos socialistas se vencer as legislativas de 30 de janeiro sem maioria absoluta. 

Costa nunca excluiu o diálogo com o PSD, sobretudo desde que explicou não ver condições para uma reedição da Geringonça, apostando em queimar pontes à esquerda para tentar mobilizar o voto útil.

Embora uma coligação explícita pareça ser pouco provável, a probabilidade de uma governação do bloco central, em que um dos partidos governa em minoria contando com o apoio parlamentar do outro, é bastante maior do que nos últimos anos.

Um cenário como esse teria implicações importantes na vida do país. As linhas que se seguem discutem o que podemos esperar da política económica numa futura governação do bloco central.

"Cortar para incentivar"

O primeiro aspeto aqui discutido não diz respeito a questões estritamente económicas. É o caso da legislação laboral, um dos temas que esteve em destaque durante as negociações da proposta de Orçamento do Estado para 2022.

No entanto, convém notar que os argumentos económicos são frequentemente invocados para defender a posição dos partidos sobre o Código do Trabalho. É por isso que vale a pena olhar para o que os dois maiores partidos defendem.

A direita recorre a dois argumentos essenciais para defender a flexibilização laboral. O primeiro é o de que esta facilitaria a contratação por parte das empresas, servindo como motor de uma economia mais dinâmica. A flexibilidade para as empresas contratarem em períodos de crescimento é a mesma a que recorreriam em períodos de crise para despedir trabalhadores, podendo assim ajustar-se ao ciclo económico e manter a competitividade. 

Se o último governo PSD-CDS facilitou os despedimentos, embarateceu o trabalho e cortou dias de férias, também este governo PS várias vezes se aliou à direita para rejeitar as propostas do BE e do PCP que reverteriam essas mudanças.

O segundo é o de que os trabalhadores sem vínculos estáveis (e, por isso, com mais incentivos para justificar a manutenção do seu contrato) seriam mais produtivos. Estes argumentos foram utilizados no período da Troika pelo governo PSD-CDS para justificar a reforma laboral que facilitou despedimentos (através do corte das compensações devidas de 30 para 12 dias por cada ano de antiguidade), embarateceu o trabalho (cortou substancialmente o preço das horas extraordinárias e acabando com o descanso suplementar por trabalho suplementar), e reduziu os dias de férias e de feriados. 

O ministro da Economia da altura, Álvaro Santos Pereira, defendia que a economia ficaria mais competitiva e o seu gabinete chegou mesmo a prever que as reformas de 2012 teriam um impacto positivo no emprego. A realidade, como sabemos, foi outra: no ano seguinte, a taxa de desemprego atingiu o seu máximo histórico de 16,2%.

Apesar disso, não se pode dizer que o PS, durante os últimos seis anos, se tenha afastado substancialmente desta lógica. Os avanços que se registaram, por exemplo, ao nível da integração de trabalhadores precários na administração pública, foram resultado da negociação com os partidos de esquerda, ao passo que a legislação laboral se manteve como um dos principais pontos de discórdia entre estes e o Governo. 

Além de ter aprovado um aumento do período experimental para jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração, o PS juntou-se várias vezes à direita para rejeitar propostas do BE e do PCP nesta área: foi o caso da reposição do valor das compensações por despedimento, do número de dias de férias ou do valor das horas extraordinárias em vigor antes do programa de ajustamento da Troika, bem como o fim da caducidade das convenções coletivas, medida decisiva para recuperar a capacidade negocial dos sindicatos. A rejeição destas medidas esteve na base do chumbo do Orçamento de Estado de 2022.

Porém, a ideia de que a flexibilização laboral torna as economias mais competitivas não sobrevive ao confronto com os factos. Por um lado, as “reformas estruturais” não aceleraram a criação de emprego em Portugal e este só começou a regenerar-se verdadeiramente pela conjugação das políticas de recuperação de rendimentos e da conjuntura internacional mais favorável no pós-Troika, o que sugere que a evolução do emprego depende sobretudo do crescimento da economia. 

Por outro lado, estas reformas também não contribuem para a produtividade: um estudo publicado em 2009 pelos economistas Servaas Storm e Ro Naastepad concluiu que, entre 1984 e 2004, o crescimento da produtividade do trabalho foi maior nos países da OCDE com maior regulação laboral.

A eviência empírica tem confirmado a existência de uma relação entre a desregulação laboral e a redução da parte do valor produzido que é recebido por quem trabalha.

Há boas pistas para o explicar: os trabalhadores com vínculos estáveis têm mais capacidade de adquirir e aplicar conhecimento específico sobre o processo produtivo, além de se sentirem mais integrados no contexto laboral, o que reforça o compromisso e a cooperação no contexto de trabalho. 

Além disso, a proteção laboral incentiva as empresas a investir na formação dos trabalhadores, promovendo as qualificações e a produtividade. Um estudo mais recente, publicado pelo economista Alfred Kleinknecht em 2020, relaciona a flexibilização laboral e a promoção da precariedade com a estagnação da produtividade que as economias desenvolvidas têm registado nos últimos anos, precisamente devido ao facto da instabilidade laboral impedir a acumulação de conhecimentos.

A precariedade teve, isso sim, um efeito inequívoco de compressão dos salários: a nível individual, um relatório recente da Comissão Europeia reconhece que existe um diferencial salarial entre contratos precários e permanentes e conclui que este é maior nos países da União Europeia com maior percentagem de precários no emprego total, como é o caso de Portugal.

A nível agregado, a evidência empírica tem confirmado a existência de uma relação entre a desregulação laboral e a redução da wage-share, isto é, a fração do rendimento produzido numa economia que é recebida pelo fator trabalho (ou, por outras palavras, a fatia do bolo que cabe a quem trabalha). Esta relação, de resto, foi reconhecida num estudo de três investigadores do FMI, uma das instituições que mais defendeu a desregulação.

"Cortar para crescer"

O segundo aspeto onde se podem esperar alterações num futuro governo do bloco central é o da fiscalidade. É preciso não esquecer que PS e PSD acordaram a última redução da taxa de IRC no país, reduzindo a receita fiscal em pleno programa de ajustamento da Troika. 

A atual moção estratégica de Rio sublinha que “o mais decisivo bloqueio que é urgente superar é o da economia”, explicando que é preciso combater o “sufoco fiscal” que assola o país. O PSD propõe, no seu programa eleitoral, uma descida significativa dos impostos – em particular do imposto sobre o rendimento das empresas – e descreve-a como uma medida essencial para revitalizar a economia portuguesa e fazer aumentar a produtividade, gerando aumentos salariais sustentados.

O raciocínio subjacente é relativamente simples: se reduzirmos o montante que as empresas e as pessoas pagam em impostos, aumentam os fundos disponíveis para serem reinvestidos. A medida teria impacto não só nos salários, mas também na produtividade e na inovação, uma vez que daria mais margem às empresas para investir em Investigação e Desenvolvimento (I&D).

Desta forma, um corte de impostos teria efeitos positivos para o conjunto da economia e traduzir-se-ia em maior crescimento económico. Foi este o raciocínio utilizado pelo PS para defender uma das propostas inscritas no OE 2022: o aumento da isenção de IRC para rendimentos provenientes de patentes e propriedade industrial (dos atuais 50% para 85%). Segundo o primeiro-ministro, o objetivo passava por tornar este regime "um dos mais competitivos da Europa" na promoção da inovação.

Além de serem pouco eficazes, os benefícios fiscais à inovação em Portugal têm estado associados a práticas de planeamento fiscal agressivo e fraude fiscal. 

O problema é que os benefícios fiscais não parecem ter tido grandes resultados nos países onde foram implementados. Em 2014, três investigadores do Centro para a Investigação Económica Europeia analisaram os benefícios atribuídos aos rendimentos de propriedade industrial em 14 países da União Europeia e concluíram que eram "mal orientados para incentivar as empresas a aumentar as suas despesas em I&D".

O motivo é a elevada incerteza associada a novos projetos na área da inovação: os regimes de patent box não apoiam empresas que queiram investir em projetos cujos resultados são incertos, mas recompensam apenas os projetos que já se revelaram bem-sucedidos. 

Mais recentemente, outros investigadores do Instituto Max Planck publicaram um estudo que aponta conclusões semelhantes. Além de serem pouco eficazes, os benefícios fiscais à inovação em Portugal têm estado associados a práticas de planeamento fiscal agressivo, e mesmo fraude, por parte das empresas.

De uma forma mais geral, também não há evidência empírica que suporte o argumento da direita sobre a fiscalidade. Em junho deste ano, os economistas Sebastian Gechert e Philipp Heimberger publicaram o estudo "Os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico?", em que analisam a literatura relevante e mostram que os economistas não têm encontrado dados que suportem esta relação.

Estes dados apoiam a ideia de que o investimento privado (em I&D e não só) não é apenas influenciado pelos impostos e depende fundamentalmente de outros fatores, como a fase do ciclo económico e as expectativas dos investidores em relação à procura pelos seus produto.

"Cortar para consolidar"

O terceiro aspeto diz respeito à gestão das finanças públicas do país. Há muito que estamos habituados a ouvir falar em “contas certas”. A política macroeconómica deste Governo tem-se focado na consolidação orçamental através da redução do défice, com o argumento de que esse é o melhor caminho para diminuir a elevada dívida pública do país.

Esta estratégia pautou os quatro anos da legislatura anterior e nem a pandemia fez o Governo mudar de posição: na verdade, os dados do FMI mostram que Portugal tem tido uma das respostas à crise mais contidas de todas as economias avançadas. António Costa tem insistido na ideia de que “sem contas certas não há futuro”. 

Rio alinha pelo mesmo diapasão e diz que “deveríamos fazer um esforço de redução da despesa pública, ao mesmo tempo de redução ou de eliminação do défice público que é o que nos permite depois reduzir também a dívida pública”.

Mas a insistência nesta política é contraproducente: restringir a despesa do Estado em contextos de crise só agrava os seus efeitos para o conjunto da economia. Numa crise marcada por incerteza elevada, as empresas e as famílias tendem a recuar nas suas decisões de consumo e investimento e a ação do Estado é decisiva para evitar a quebra da procura e, com isso, da atividade económica. Não foi por acaso que, após a última crise, os países que mais cortaram na despesa foram aqueles em que o rácio da dívida pública mais aumentou.

Portugal foi o país da UE que menos investiu no combate à crise dos últimos dois anos. António Costa insiste nas "contas certas" e Rui Rio num "esforço de redução da despesa pública". Assim, a deterioração do sector público é inevitável.

Os efeitos negativos desta estratégia também se fazem sentir a longo prazo, sobretudo na capacidade dos serviços públicos. Em relação ao que foi orçamentado para o investimento público nos seis anos de governo do PS, ficaram por gastar mais de 4 mil milhões de euros devido à estratégia de cativações. E esta estratégia tem consequências visíveis para todos.

No Serviço Nacional de Saúde (SNS), a falta de investimento explica a falta de médicos e as condições cada vez menos atrativas para os profissionais, além de promover o recurso à contratação de serviços aos grupos privados que ficariam mais baratos se fossem internalizados.

Nos transportes públicos, a falta de manutenção e o desgaste dos materiais já se faz notar e tem levado à supressão de comboios em várias linhas, enquanto se adia a modernização da ferrovia. Apesar dos problemas evidentes, se olharmos para a média do investimento público nos dois anos de combate à crise (2020 e 2021) em todos os países da UE, Portugal foi o que menos investiu. Neste contexto, a deterioração do sector público é inevitável.

Virar a página

O principal desafio que o país enfrenta no pós-pandemia é o de promover uma recuperação económica que seja socialmente justa e permita corrigir desigualdades que se tornaram demasiado evidentes no mundo do trabalho. Mas não foi só isso que a pandemia expôs. 

Logo nas primeiras semanas do confinamento, em março de 2020, a agência alemã Scope Ratings publicou uma matriz de avaliação da vulnerabilidade económica e dos sistemas de saúde de diversos países. Portugal surgia nesta matriz como a economia mais vulnerável da União Europeia. 

Não é difícil perceber porquê: os critérios usados pela agência para avaliar a vulnerabilidade dos países incluíam o peso do turismo na economia, o peso da produção industrial e o peso do emprego temporário ou em microempresas. 

Ora, a evolução da economia portuguesa nos últimos anos tem sido marcada pela excessiva dependência de sectores como o turismo, a restauração e a construção – setores onde a baixa produtividade se conjuga com baixos salários e empregos precários. Foram também estes os setores mais afetados pela crise pandémica.

É preciso travar a precarização e aumentar os salários, aumentar o investimento público no desenvolvimento industrial e melhorar as condições dos serviços públicos de saúde, educação e transportes. Só assim se vira a página da estagnação imposta pela mão invisível do mercado.

A fragilidade da economia portuguesa é o resultado de duas décadas de integração europeia em que o desenvolvimento do país foi deixado nas mãos do mercado. A adesão ao Euro, a perda de instrumentos de política económica e o acesso a crédito barato para financiar importações foram um convite à desindustrialização, ao mesmo tempo que o investimento privado foi canalizado para setores que garantiam lucros fáceis, embora tivessem menor potencial produtivo. 

Portugal tornou-se na “Flórida da Europa” com a complacência dos seus governantes, que defenderam este modelo de integração e viram na monocultura do turismo a oportunidade para mascarar a fragilidade da criação de emprego, apesar de se multiplicarem os seus efeitos perversos – na precariedade, nos preços da habitação e no padrão de especialização da economia.

Para virar a página da estagnação económica, são necessárias políticas alternativas: o reforço da regulação laboral para travar a precarização e o modelo de baixos salários, a promoção do investimento público para fomentar o desenvolvimento industrial com vista à substituição de importações e à transição energética, e a melhoria das condições dos serviços públicos de saúde, educação ou transportes. 

É difícil esperar que uma rutura com o modelo de desenvolvimento do passado seja feita pelos partidos que o abraçaram. A rutura depende, por isso, do resultado das eleições legislativas que se avizinham. É o peso parlamentar do campo progressista que vai definir a sua capacidade de influenciar a governação.