Os bastidores da investigação sobre práticas de conversão de orientação sexual

As práticas de conversão de orientação sexual são feitas às escondidas e a maioria das vítimas não se sente confortável em partilhar a sua história. A minha formação não me tinha preparado para falar com sobreviventes de abusos e violência. O risco de cometer erros era grande: tinha de apresentar as suas histórias sem estigmatizar nem vitimizar quem já tanto sofrera.

Ensaio
22 Junho 2023

O Setenta e Quatro existia há poucas semanas quando recebemos um e-mail de um jovem de 22 anos a apresentar-se: era gay, português e evangélico. Dizia estar disponível para contar a sua história. Os seus pais tinham descoberto que era gay, consequência de uma quebra de confiança do seu professor de congregação evangélica. Foi marginalizado e convidado a sair da sua congregação religiosa. Foi agredido pelos progenitores e psicologicamente forçado a ir a um conselheiro evangélico para ser submetido a uma prática de conversão de orientação sexual. O e-mail terminava com um nome: Miguel Salazar.

Tinha rompido recentemente com as dinâmicas familiares abusivas e saído de casa, depois de um ano de pandemia isolado no quarto. Agora estudava e trabalhava para sobreviver. Assim se mantinha quando escreveu o e-mail, dizendo-se convicto na luta pela criminalização das práticas de conversão. Sugeria uma reportagem sobre o assunto e, implicitamente, disponibilidade para se expor contando a sua história. Pensei de imediato: a sua entrevista seria uma oportunidade de partilhar uma história contada na primeira pessoa e sensibilizar a opinião pública para a gravidade e complexidade destas práticas.

Sabia que existiam práticas deste cariz contra a comunidade LGBTQIA+, por causa de documentários e de notícias aqui e ali, mas pouco mais. Falei com a equipa do Setenta e Quatro e concluímos que era um tema a explorar: pouco se lia e ouvia sobre o assunto e Portugal estava atrasado na tendência mundial de criminalização destas práticas. Ao mesmo tempo, este era (e é) um dos campos de batalha da extrema-direita: as políticas de género, fortalecendo e criando redes internacionais, formais e informais, contra a dita “ideologia de género”. O seu objetivo é diminuir os direitos da comunidade LGBT - e, se puder, criminalizar e marginalizá-la. É o que se vê, por exemplo, na Hungria: o seu parlamento aprovou recentemente uma lei que permite a qualquer cidadão denunciar de forma anónima casais homossexuais com filhos. O governo justificou-o com a “proteção infantil”.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Não era um tema nada fácil de abordar. Na minha curta carreira como jornalista, tinha-me debruçado até então sobre política internacional e extrema-direita. As temáticas LGBTQIA+ eram para mim um outro mundo em que teria de entrar, aprender os conceitos e termos corretos, perceber e respeitar o meu lugar de fala e como as minhas origens e trajetória sociais me influenciam a visão e perceção. Além disso, as minhas formações académica e profissional não me tinham preparado, nem dado ferramentas, para falar com sobreviventes de abusos e violência. O risco de cometer erros era grande.

Regressando à resposta ao contacto do Miguel Salazar. Estávamos em julho de 2021, mas acabámos por combinar um encontro para finais de agosto. Ele vivia próximo do Porto e eu sabia que precisava de tempo para me preparar: estudar o tema e apurar a melhor abordagem para se conduzir uma entrevista com sobreviventes. Comecei por abordar teoricamente o assunto: procurar relatórios de instituições reputadas sobre o tema, compreender conceitos, padrões e tendências sociais e livros jornalísticos sobre abusos. Como é que jornalistas lidaram no passado com investigações sobre traumas e sobreviventes? A memória é essencial no jornalismo.

Um dos livros que li foi o Chasing the Truth: A Young Journalist's Guide to Investigative Reporting, de 2021, sobre os abusos sexuais do produtor de Hollywood Harvey Weinstein. Duas jornalistas contam os bastidores da investigação que publicaram no The New York Times e que lhes demorou um ano, ora procurando sobreviventes ora provas documentais, para escamotear as alegações de abusos. Mais do que as técnicas de investigação, o que me interessou no livro foi a sensibilidade com que as jornalistas abordavam as sobreviventes, sabendo ler os silêncios e as pausas, os receios e os medos, os momentos e as emoções envolvidas enquanto ouviam as suas histórias. Acabou por ser um contributo essencial para a investigação, para o processo de escrita: saber como apresentar as histórias de sobreviventes sem estigmatizar nem vitimizar quem já tanto sofreu.

No entretanto, estudei as redes sociais do Miguel, à procura de pormenores que me permitissem conhecê-lo um pouco, saber algo mais que a sua mera apresentação por e-mail. Quando o vi pela primeira vez pareceu-me uma pessoa completamente diferente: mais calado, introspetivo, nada como aquela pessoa que as suas redes sociais davam a entender. Alto e magro, com o cabelo bem cortado e rente nos lados, com uma voz suave, a sua descontração era, dentro dos possíveis, alguma. Tinha-se preparado mentalmente. Acabámos por almoçar numa esplanada e por mais de uma hora falámos de assuntos que nada tinham a ver com o nosso encontro, fez-me perguntas e fui-me apresentando, deixando-o à vontade. O objetivo era criar uma ligação de confiança e demonstrar empatia.

Depois do almoço, fomos para um recanto mais privado de um café, escolhido por ele enquanto caminhávamos pela rua, para podermos falar à vontade – era um local mais reservado, mas nada que fosse sombrio ou que indicasse que o assunto a ser discutido era tabu ou que tinha qualquer secretismo. Fui buscar os pedidos ao balcão para lhe dar um momento para se preparar.

Como início de conversa, disse-lhe que qualquer coisa que ele dissesse e que não quisesse que fosse publicada era só dizer. Garanti-lhe que não estava ali para o prejudicar, que sabia que teria de reviver traumas para contar a sua história, e que nunca lhe poderia dizer que contá-la iria trazer alívio – um dos erros mais comuns que nós, jornalistas, fazemos. Disse-lhe que seria gravada, publicada em formato escrito e que não tivesse qualquer problema em recusar responder a uma pergunta que considerasse mais invasiva ou mesmo inapropriada. Ele aceitou, retirei o gravador e o bloco de notas da mala, dispu-los em cima da mesa, para ficarem bem visíveis, e começou a contar a sua história.

As minhas primeiras perguntas foram abertas e, sobretudo, sem juízos de valor, mostrando empatia na voz e na comunicação não verbal. Começar pelo geral, pelo contexto, para depois ir afunilando nas questões. Testar o terreno. Dar-lhe a perceber que não o culpava ou responsabilizava por qualquer uma das suas ações, e muito menos sentimentos. Respeitar os seus silêncios, deixá-lo respirar e pensar foi uma constante preocupação, nunca o interrompendo quando estava à procura de uma palavra ou para complementar qualquer linha de pensamento. Terminadas as minhas perguntas, deixei-o à vontade para acrescentar qualquer coisa que quisesse dizer, para que a conversa não acabasse abruptamente.

Desde muito novo que o Miguel sabia que a sua orientação sexual não era aquela que a sua família e a sociedade lhe impunham. Sentia-se diferente, mas não sabia bem explicar porquê, até chegar à adolescência - a confusão era tanta que o resultado foi homofobia internalizada, uma reação por ser alvo de bullying no ensino básico e secundário. Sufocado, decidiu abrir-se aos 16 anos com o seu professor da igreja, pedindo desde logo segredo. Até que um dia chegou a casa e a sua família sabia: a sua mãe chorava, dizendo-lhe que era como se um filho lhe tivesse morrido, e foi-lhe comunicado que tinham decidido que ele ia a um "psicólogo" da sua congregação.

Quando souberam que o Miguel era gay, os seus pais decidiram que ele iria a um "psicólogo" da sua congregação religiosa. Foi a quatro ou cinco sessões, com medo de uma reação violenta dos pais.

A sua mãe não é uma pessoa qualquer: Maria Helena Costa faz parte do grupo de estudos do partido de extrema-direita Chega e é uma das principais ideólogas evangélicas da “ideologia de género”. Publicou vários livros a defender essa narrativa de extrema-direita, participou numa conferência do PNR (hoje Ergue-te!) e depois abraçou o Chega. Hoje, publica artigos estigmatizantes da comunidade LGBTQIA+ no Observador.

Miguel teve medo da reação deles se recusasse e foi a quatro ou cinco sessões, uma por mês, até fazer frente aos pais. Receava que a situação descambasse para a violência física: tinha sido esbofeteado pelo pai por se recusar a dizer que o normal é um homem e uma mulher fazerem sexo. A sua culpa por ser gay aumentou, mas não por se ter sujeitado às ditas consultas, ao contrário do que por vezes acontece. Mas, no final, recusar mais sessões ajudou-o a abraçar uma parte da sua identidade.

Entretanto, enquanto vivia com os pais, ia clandestinamente a consultas no Centro Gis, no Porto. Foi uma das grandes razões para ter aguentado partilhar casa com os pais que não o aceitavam. Há muitos jovens que não têm apoio extrafamiliar, acabando nas ruas ou em centros de acolhimento dirigidos por associações LGBTQIA+.

O Estado, a Santa Casa da Misericórdia e a Segurança Social têm casas de acolhimento, mas não estão adaptadas para as especificidades das pessoas LGBT. Há apenas quatro instalações com apoio direcionado para esta população em todo o território nacional: a Casa Arco íris e a Casa com Cor/Plano 3C, da Associação Plano i, localizada no Porto; a ReAjo – Resposta de Autonomização para Jovens LGBTI, um apartamento de autonomização da Casa Qi, para jovens dos 16 aos 23 anos; e, por fim, a Casa de Acolhimento Temporário de Emergência, da Opus Diversidades. Quatro.

Se as famílias forçarem os jovens a submeter-se a estas práticas com a ameaça implícita ou explícita de saída de casa, estarão a incorrer no crime de violência doméstica por dependência económica. O artigo 152.º do Código Penal é claro. Os jovens poderão ativar a linha de apoio às vítimas de violência doméstica, seja através da polícia, dos serviços públicos ou das associações LGBT. Poucas pessoas sabem isto.

Terminada a entrevista, saímos do café e passeámos pela baixa do Porto, à beira do rio Douro, com ele a mostrar-me a cidade e a falarmos de outros assuntos não relacionados com a entrevista. Faltava uma hora e meia até à partida do meu comboio para Lisboa. O objetivo era fortalecer a confiança já criada e, sobretudo, garantir dentro dos possíveis que ele estava bem. Já de regresso a Lisboa, enviei-lhe uma mensagem a agradecer o seu testemunho – e continuámos a falar nos dias que se seguiram.

As práticas de conversão de orientação sexual são feitas às escondidas por psicólogos, líderes religiosos e autointitulados conselheiros. Os sobreviventes, a maior parte entre os 16 e os 24 anos, sofrem em silêncio. O trauma impede-as de pedir ajuda e na maioria dos casos não sabem a quem recorrer, sentem-se abandonadas. Como dependem das famílias para comer e estudar, têm de romper com o mundo que conhecem para poder ser quem são. Não existe em Portugal uma rede pública de apoio específica para pessoas LGBT e por isso, caso não tenham a ajuda de amigos, correm o risco de se tornarem sem-abrigo ao saírem/serem expulsas de casa.

Antes de mais, estas ditas "terapias" não são terapias, seja por se proporem a tratar algo que não é doença, seja por não respeitarem os dois critérios essenciais para que sejam caraterizadas como tal: eficácia e segurança – não atingem o objetivo de curar a homossexualidade e causam graves danos psicológicos. Chamar-lhes terapias, mesmo que coloquialmente e com uma postura crítica e de denúncia, é dar-lhes legitimidade implícita. Daí que devam ser referidas como “práticas”. Não obstante, é como “terapias” que têm sido referidas no debate público, surgindo com aspas.

Estas práticas tiveram nas últimas décadas várias denominações, umas usadas para lhes dar legitimidade terapêutica e outras de forma coloquial, dependendo da tendência pseudocientífica e religiosa de quem as pratica. “Terapias de conversão”, “terapias de reparação”, “terapias de reorientação sexual”, “cura gay”, “terapia ex-gay”. O que as une é a intenção de mudar a orientação sexual de uma pessoa. As formas de o fazer também são muitas, umas mais agressivas que outras. Mas todas com consequências na saúde mental de quem a elas é sujeito.

As consequências psicológicas podem ser catastróficas para quem passa por estas práticas: perda significativa da autoestima, ansiedade, síndrome depressiva, isolamento social, dificuldade de intimidade, ódio a si mesmo, vergonha e culpa, disfunção sexual, stress pós-traumático, ideação e tentativas de suicídio. Os danos são ainda maiores por as vítimas serem jovens, quando estão a construir a sua identidade e são mais permeáveis a argumentos de autoridade dos pais, professores, profissionais de saúde e líderes religiosos.

Têm sido produzidos vários estudos sobre as realidades noutros países e as conclusões têm sido assustadoras: estas práticas podem afetar até 10% das pessoas de comunidades LGBT. E, se pensarmos em preconceitos que validam a homofobia internalizada, então podemos chegar aos 20%. E em Portugal?

O investigador do ISPA Pedro Alexandre Costa conduziu um estudo exploratório sobre as experiências de exposição a práticas de conversão e concluiu que 3% dos inquiridos disseram ter sido expostos a estas práticas. Foi o primeiro estudo a debruçar-se sobre o tema, apesar de a sua amostra ser pequena: 322 participantes (207 heterossexuais cisgénero e 115 participantes LGBT). Ou seja, oito pessoas LGBT disseram ter sido expostas, ressalvando-se que o número real está subestimado por o estudo ser sobre práticas feitas por profissionais de saúde e não por líderes religiosos ou outras figuras.

Estas ditas "terapias" não são terapias, seja por se proporem a tratar algo que não é doença, seja por não respeitarem os dois critérios essenciais para que sejam caraterizadas como tal: eficácia e segurança.

Estas práticas são um universo limitado em Portugal e o dominante são as práticas clínicas desadequadas, levadas a cabo por profissionais de saúde mental sem a necessária formação e conhecimento para lidar com questões particulares de pessoas LGBT. Visões heteronormativas, homofobia e a patologização da homossexualidade – ou a ideia de ser uma escolha – são ainda traços caraterizadores das abordagens clínicas.

A falta de formação dos profissionais de saúde faz com que por vezes a linha entre práticas de conversão e práticas clínicas desadequadas seja muito ténue. Daí que a formação específica sobre intervenção psicológica com pessoas LGBT seja essencial. De acordo com a Ordem dos Psicólogos em dezembro de 2021, desde 2012 que 2.147 psicólogos (de um universo total de cerca de cinco mil com cédula) receberam esta formação específica. No entanto, e desde 2012, das 14 formações acreditadas sobre sexualidade humana pela Ordem, apenas duas eram especificamente sobre questões LGBT. Há, portanto, uma lacuna na oferta de formação.

No decorrer da investigação, psicólogos e dirigentes associativos deram-me vários exemplos de más práticas clínicas. Só um exemplo: serem os próprios psicólogos a dizerem à família que a pessoa é gay, lésbica ou bissexual, retirando-lhes essa decisão importantíssima de afirmação da sua identidade. Segundo as minhas fontes, isto acontece não uma vez, mas várias. Acontece por o psicólogo se sentir muitas vezes legitimado pelo seu estatuto de autoridade, disseram-me. Mas, e ainda que sejam jovens, continua a haver um aspeto de confidencialidade, sobretudo quando foi o tema da sexualidade que os levou ao psicólogo.

Esta quebra de confiança tem efeitos nocivos no acompanhamento psicológico de jovens LGBT, pois corre-se o risco de generalizarem estes comportamentos a toda a classe de profissionais de saúde mental. Podem evitar pedir ajuda, mesmo quando precisam urgentemente dela – as pessoas LGBT têm mais probabilidade de desenvolverem problemas de saúde mental que uma pessoa hétero cisgénero, por causa do estigma social de que são alvo.

Regressando aos bastidores da investigação. Depois da entrevista com o Miguel, debrucei-me ainda mais sobre o tema e decidi avançar com uma investigação mais alargada. O objetivo passou a ser encontrar mais sobreviventes e falar com especialistas e representantes de instituições, entre as quais a Ordem dos Psicólogos, para se tentar perceber a real dimensão destas práticas e o que tem sido feito para as evitar. Falei com profissionais de saúde mental, deputadas que apresentaram projetos leis de criminalização destas práticas, investigadores e dirigentes associativos.

Depois da primeira fase de leituras sobre o assunto, admito que pouco me preparei para as entrevistas. Pensava (sem as registar no bloco de notas) nas dimensões que queria abordar e conduzia as entrevistas como se fossem conversas correntes. Desejava fluidez, descontração, sem se seguir um guião, por mais flexível que pudesse ser. Mas, sobretudo, ver por que caminhos cada uma das entrevistas me levava, não fossem surgir casualmente pequenas novas pistas que um guião tende a omitir.

Não foi preguiça, mas uma estratégia para o que queria alcançar: as perguntas mais básicas, rudimentares, para conseguir depois explicar o assunto aos leitores da forma mais acessível possível. Uma das primeiras coisas que fazia questão de realçar logo no início era o meu lugar de fala: homem, branco, heterossexual e de classe média. Sabia que conseguiria perceber, mas nunca compreender. Apercebi-me que reconhecê-lo era não só uma forma de mostrar consciência mas também vontade de aprender, ao mesmo tempo que me protegia a priori de eventuais perguntas que pudesse fazer e que, eventualmente, criassem desconforto.

A maior parte das vítimas recusou-se a falar. Não queriam reviver os momentos traumáticos. Consegui, no entanto, quatro testemunhos num total de 20 casos identificados, o que demonstra a dificuldade em se falar sobre o assunto no geral e com jornalistas em particular.

Uma das entrevistas em que mais aprendi, mesmo de forma pessoal, foi com uma dirigente da associação ILGA Portugal. Chegou um momento em que começámos a falar de como as famílias lidavam com os coming out dos jovens LGBT. Umas expulsavam-nos de casa, outras submetiam-nos a práticas de conversão sem conhecerem o conceito, outras quantas demoravam a digerir a notícia e, por fim, as mais raras mas cada vez mais comuns, aceitavam de braços abertos. Um dos pormenores que me chamou a atenção no comportamento destas últimas foi a do tabu, por assim dizer. Ou seja, sabem, aceitam, mas é como se a homossexualidade não existisse no seio da família, é um não assunto. Não se pergunta por namorados ou namoradas com normalidade (como vais de amores?, seria a pergunta mais neutra), como se a pessoa fosse hétero, e quando se pergunta é em privado. A pessoa torna-se, ao olhar familiar, um ser assexuado.

Em paralelo com as entrevistas a especialistas, era fundamental encontrar mais sobreviventes e ouvir as suas histórias. Uma só história de vida era insuficiente para se abordar um tema tão residual e, sobretudo, com tanto secretismo em seu torno. A partir destas fontes, de ativistas LGBT que já conhecia e amigos deparei-me com mais casos além dos identificados no estudo de Pedro Alexandre Costa.

A maior parte recusou-se a falar. Não queriam reviver os momentos traumáticos pelos quais passaram, não queriam levantar velhos fantasmas com as suas famílias ou simplesmente desvalorizaram, ainda que tivessem plena noção das consequências destas práticas. Foi um mecanismo de defesa. Uma das garantias que dava a todos eles era a de os seus nomes serem fictícios, pois o interesse para os leitores estava nas suas histórias e não na identidade, mas mesmo assim recusaram. Consegui, no entanto, quatro testemunhos num total de 20 casos identificados, o que demonstra a dificuldade em se falar sobre o assunto no geral e com jornalistas em particular.

Uma delas, o Rui (escolhemos o nome fictício em conjunto), chegou-me inclusive a dizer ter sofrido bastante nos dias que se seguiram à nossa conversa, não conseguindo dormir, mas que no final foi quase algo terapêutico, como se tivesse tirado um peso de cima dos ombros. Um outro sobrevivente disse-me que uma consequência de ter contado a sua história foi ter estruturado pela primeira vez todos os acontecimentos de forma linear, racionalizando-os, por assim dizer. Foi como se tivesse feito uma síntese que de alguma forma o ajudou a ultrapassar um pouco mais os traumas vividos.

A investigação foi publicada a 3 de dezembro de 2021, mas a atenção dos leitores centrou-se na entrevista isolada do Miguel. Uma das coisas que fiz foi ligar-lhe 24 horas antes da sua publicação para garantir que ele tinha a certeza de querer que fosse publicada, e ele disse que sim. É que já me tinha apercebido ser muito comum os sobreviventes se arrependerem, mas que nada dizem por receio de ofender o jornalista. Era importante reforçar a total abertura para ele tomar a decisão que mais desejasse. Liguei então à sua mãe e pai, para pedir o contraditório. Para ele, a entrevista foi “publicada” quando esses telefonemas foram feitos.

A entrevista acabou por ser consecutivamente partilhada nas redes sociais e ultrapassou as 20 mil leituras, chegando dias depois a ter mais de 50 mil – foi o conteúdo do Setenta e Quatro mais lido em 2021. O Miguel ficou, como não podia deixar de ser, no centro da discussão pública sobre as práticas de conversão sexual. Não apenas pela violência por que passou, mas também por ser filho de uma dirigente do Chega. Naquela altura tudo o que fosse publicado sobre extrema-direita viralizava de imediato.

O Miguel recebeu muitos contactos de jornalistas que o queriam entrevistar sobre o assunto, não sabendo como agir. Trocámos mensagens e telefonemas nas duas semanas que se seguiram, com ele a contar-me os contactos recebidos e a dizer-me os nomes dos meus colegas e quais os objetivos (e os ângulos) das entrevistas que lhe queriam fazer. Pedia então referências sobre esses jornalistas a outros jornalistas, lia peças que tinham publicado nos últimos tempos e aconselhava o Miguel. É provável que tenha ultrapassado a linha deontológica entre jornalista, fonte (o que ele era, para todos os efeitos) e assessoria de imprensa, mas ainda hoje acho que não poderia ter atuado de outra forma. Não o poderia expor e deixá-lo sozinho sob pressão mediática.

Uma das minhas preocupações era ele ter demasiada exposição e não a saber gerir. Por um lado, poderia deslumbrar-se com a atenção mediática e, por outro, apresentarem-no como vítima, colando-lhe uma imagem de vítima permanente. Discutimos o assunto várias vezes, os casos de jornalista a jornalista, num debate sincero e frontal. No final, 90% dos contactos de jornalistas foram recusados. O único aceite foi o de Daniel Oliveira, com o Miguel a ir ao podcast Perguntar Não Ofende, mas com o acordo de não se falar da sua relação com a família, especialmente com a mãe – o tema que mais cativava os outros jornalistas. Além disso, não seria o único entrevistado, sendo acompanhado por Pedro Alexandre Costa, diluindo assim a participação do Miguel.

Há mais de três décadas, a jornalista norte-americana Janet Malcolm escreveu no livro O Jornalista e o assassino, publicado em 1990, um trecho sobre a falsidade dos jornalistas com as suas fontes e o impacto que, uma vez publicadas, as histórias têm nas suas vidas. O que escreveu é tão honesto e incisivo que merece destaque:

“Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. (…) A catástrofe, para aquele que é tema do escrito, não é uma simples questão de um retrato pouco lisonjeiro, ou de uma apresentação errónea das suas opiniões; o que dói, o que envenena e algumas vezes o leva a extremos de desejo e vingança, é o engano de que foi vítima. Ao ler o artigo (…), ele tem de enfrentar o facto de que o jornalista – que parecia tão amigável e solidário, tão interessado em entendê-lo plenamente, tão notavelmente sintonizado com o seu modo de ver as coisas – nunca teve a menor intenção de colaborar com ele na sua história, mas pretendia, o tempo todo, escrever a sua própria história. A disparidade entre o que parece ser a intenção de uma entrevista quando ela está acontecendo e aquilo que no fim ela estava de facto ajudando a fazer é sempre um choque para o entrevistado.”

Um dos possíveis elementos desta “traição” do jornalista é a sua vertente paraquedista, ou seja, quando aparece subitamente, recolhe as informações que precisa para a sua história e desaparece sem deixar rasto, deixando as suas fontes, neste caso sobreviventes, sem qualquer acompanhamento. Como jornalista, tê-lo-ei feito inúmeras vezes e em diferentes temas, é certo, mas no caso do Miguel tentei não o fazer. Cada um seguiu o seu caminho com naturalidade semanas depois da entrevista ser publicada, ainda que falemos de tempos a tempos.

O Miguel acabou, entretanto, a licenciatura em tradução, está a terminar o mestrado na mesma área e trabalha como tradutor freelancer. Faz ‘biscates’ aqui e ali, como ele diz. Continua a viver no Porto e tem uma presença muito ativa nas lutas em prol dos direitos da comunidade LGBTQIA+. Deixou para trás uma parte da sua família de origem para construir uma outra com os seus amigos, que o aceitam tal como ele é.

Texto apresentado no III Colóquio da Associação Identidades e Afectos, a 27 de maio de 2023, e aqui publicado com a autorização do Miguel Salazar.