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Práticas de conversão de orientação sexual

Práticas de conversão de orientação sexual: as torturas que ainda acontecem em Portugal

Investigação 74
3 Dezembro 2021
Ricardo Cabral Fernandes

A linha entre práticas de conversão e práticas clínicas desadequadas é, por vezes, muito ténue | Design de Rafael Medeiros

Ricardo Cabral Fernandes
Ricardo Cabral Fernandes

São feitas às escondidas por psicólogos, líderes religiosos e ditos conselheiros. Os jovens LGBT são os alvos preferenciais e sofrem em silêncio. Existe um vazio jurídico que deixa as vítimas sem apoio, mas a criminalização destas práticas está em marcha. Antes de mais, é preciso falar sobre o assunto.

Como muitos adolescentes, Rui começou por namorar em segredo. Não que o quisesse esconder: estava apaixonado e queria contar a toda a gente como estava feliz. Quando ganhou coragem para contar à família que era homossexual, a notícia não foi bem recebida. “Por ingenuidade, acreditei que a sociedade e as pessoas eram mais tolerantes.” Não foi isso que aconteceu. Passou a sentir-se deprimido, ansioso e a ter ataques de pânico.

Sem saber para onde se virar, Rui aceitou ir a uma psicóloga “altamente recomendada”, para que o ajudasse. Esperava encontrar uma terapeuta “no mínimo neutra”, mas deparou-se com alguém que sempre expôs a sua “orientação sexual como um problema”. Para ela, esse "problema" tinha de ser “tratado” e isso conseguia-se através de práticas de conversão. Rui sentiu-as na pele ao longo de dez anos. 

As consultas começaram em 2003 e duraram até 2013, com algumas intermitências. Foram precisos muitos anos até se aperceber daquilo a que tinha sido sujeito. Ia às consultas por outras razões, entre as quais o rumo profissional que deveria seguir, mas a conversa acabava sempre na sua orientação sexual. “A premissa base sempre foi: ‘a sua opção de preferência vai trazer muitos problemas, muitas dificuldades’, até que eventualmente houve uma tentativa de pressão para mudança de orientação sexual”, conta ao Setenta e Quatro. 

Sentado num sofá num apartamento na Baixa de Lisboa, Rui faz longas pausas ao contar a sua história. A voz treme-lhe enquanto se esforça por recordar o que levou anos a esquecer, engole em seco. Sabe que depois da conversa passará uma semana ansioso por ter revivido tudo, mas principalmente por ter contado a alguém. 

Sofreu pressões subtis, apresentadas como boa vontade e passos do processo terapêutico. Como trabalho de casa, recomendavam-lhe leituras de autores que defendem que a homossexualidade é uma doença, numa lógica de reforço do que a terapeuta dizia nas consultas. Mais tarde, foi submetido a testes psicotécnicos. “Num desses testes, validado pela ciência, foi-me dito que devia seguir a carreira de sacerdócio”, recorda Rui.

Acreditou na validade científica e nas palavras da psicóloga e chegou mesmo a procurar um sacerdote para perceber se tinha vocação. Teve aulas de religião  durante muito tempo. “Quando fazemos uma terapia e nos é explicado por A mais B que se calhar há um caminho profissional específico, sem se falar da orientação sexual, dá-se ouvidos”, explica o homem hoje com 42 anos. 

A lógica por detrás da sugestão do sacerdócio é a seguinte: se a psicóloga crê que a orientação sexual da pessoa em questão é impossível de mudar, então opta por condicionar o seu comportamento, neste caso com o celibato inerente ao sacerdócio católico. A homossexualidade não é “curada”, mas os supostos comportamentos prejudiciais ficariam restringidos.

A travar uma luta interna, Rui demorou anos a perceber que estava a ser sujeito a uma prática de conversão. Quando tomou consciência, continuou a ir. “Foi um fechar de olhos propositado, porque durante muito tempo achei que era mais fácil compactuar”, confessa. Escolheu ignorar por a terapeuta ser “aprovada no meio social” conservador em que vivia: sabia que, se deixasse de ir, teria problemas com a família, e estava financeiramente dependente dela. Quando já trabalhava e recebia o seu próprio dinheiro, fincou o pé e deixou de ir à psicóloga.

“Hoje tenho a certeza que foi uma ‘terapia’ de conversão de orientação sexual, porque esta terapeuta está convencida que a homossexualidade é uma doença e que tem cura”, garante. 

Rui chegou ainda a ser reencaminhado para um psiquiatra do seu meio conservador e, chegado ao seu consultório, mentiu sobre a orientação sexual: “percebi que havia ali a possibilidade de me estar a meter numa situação muito complicada, conheci uma pessoa que tinha feito esse caminho e já não está cá para contar”. Por causa da pressão de encararem a sua orientação sexual como algo errado, o amigo de Rui suicidou-se. 

A ansiedade e a depressão passaram a fazer parte do dia-a-dia de Rui. Ainda hoje sente as consequências psicológicas de uma década destas práticas, sobretudo quando recorda esses anos, mas recusa sentir-se vítima. “Há um ponto da nossa vida em que deixamos de ser vítimas, temos de deixar de ser vítimas. Não me considero vítima, ponto final. Há muito pouco ao nível da minha dignidade que me possa ser tirado neste momento. Já me tiraram muita coisa, aquele direito de sermos felizes, de sermos livres.”

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As vítimas destas práticas sofrem em silêncio
Quem é submetido a estas práticas sofre em silêncio e é, na maioria das vezes, dependente das suas famílias | Design de Rafael Medeiros

As práticas de conversão de orientação sexual continuam a acontecer em Portugal. O Setenta e Quatro deparou-se com relatos de pouco mais de uma dezena de casos (as vítimas não quiseram falar por se recusarem a recordar o passado), a que se juntam outros oito referidos num estudo a que teve acesso, totalizando quase duas dezenas de vítimas.

Estas práticas são feitas às escondidas por psicólogos, líderes religiosos e autointitulados conselheiros. As vítimas, a maior parte entre os 16 e os 24 anos, sofrem em silêncio. O trauma impede-as de pedir ajuda e na maioria dos casos não sabem a quem recorrer, sentem-se abandonadas. Como dependem das famílias para comer e estudar, têm de romper com o mundo que conhecem para poder ser quem são. Não existe em Portugal uma rede pública de apoio específica para pessoas LGBT e por isso, caso não tenham a ajuda de amigos, correm o risco de se tornarem sem-abrigo ao saírem/serem expulsas de casa.

O problema é mais alargado. Estas práticas são, ainda assim, um universo limitado em Portugal e o dominante são as práticas clínicas desadequadas, levadas a cabo por profissionais de saúde mental sem a necessária formação e conhecimento para lidar com questões particulares de pessoas LGBT. Visões heteronormativas, homofobia e a patologização da homossexualidade – ou a ideia de ser uma escolha – são ainda traços caraterizadores das abordagens clínicas.

O Setenta e Quatro falou com dezenas de pessoas que passaram por estas práticas, profissionais de saúde mental, deputadas, investigadores e dirigentes associativos para perceber o universo das práticas de conversão de orientação sexual. Os nomes de pessoas sujeitas a estas práticas são fictícios por razões de privacidade. O foco da investigação foram as práticas de conversão de orientação sexual (e não as de identidade de género, apesar de serem mundos que se cruzam).

No entanto,  a existência de práticas de conversão da identidade de género, nomeadamente das pessoas transgénero, foi consecutivamente levantada pelos entrevistados. São bastante comuns, para não dizer generalizadas, por os preconceitos e os estigmas estarem ainda mais enraizados e a formação dos profissionais de saúde ser bem menor. As redes de apoio público com caraterísticas específicas não existem e as dificuldades no acesso à saúde são maiores.

Práticas de tortura

As práticas e métodos de conversão da orientação sexual ainda acontecem em mais de 100 países e há uma crescente preocupação de vários Estados, por serem encaradas como atos equivalentes a tortura. As Nações Unidas têm apelado a que sejam criminalizados e se criem mecanismos de apoio psicológico e de acolhimento para sobreviventes. Mas no que consistem estas práticas de conversão de orientação sexual?

Antes de mais, estas ditas "terapias" não são terapias, seja por se proporem a tratar algo que não é doença, seja por não respeitarem os dois critérios essenciais para que sejam caraterizadas como tal: eficácia e segurança – não atingem o objetivo de curar a homossexualidade e causam graves danos psicológicos às pessoas. Chamar-lhes terapias, mesmo que coloquialmente e com uma postura crítica e de denúncia, é dar-lhes legitimidade implícita. Daí que devam ser referidas como “práticas”. Não obstante, é como “terapias” que têm sido referidas no debate público, surgindo com aspas.

Chamar-lhes terapias, mesmo que coloquialmente e com uma postura crítica e de denúncia, é dar-lhes legitimidade implícita que não merecem.

“’Terapia de Conversão’ é um termo utilizado como guarda-chuvas para descrever intervenções de natureza abrangente, que se baseiam na ideia de que a orientação sexual ou a identidade de género de uma pessoa pode e deve ser alterada”, lê-se no relatório que Victor Madrigal-Borloz, especialista das Nações Unidas para as questões de orientação sexual e de identidade, entregou ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU em maio de 2020.

O termo é tão lato que ao longo das últimas décadas teve várias denominações, umas usadas para lhes dar legitimidade terapêutica e outras de forma coloquial, dependendo da tendência pseudocientífica e religiosa de quem as pratica: “terapias de conversão”, “terapias de reparação”, “terapias de reorientação sexual”, “cura gay”, “terapia ex-gay”. O que as une é a intenção de mudar a orientação sexual de uma pessoa. As formas de o fazer também são muitas, umas mais agressivas que outras. Mas todas com consequências na saúde mental dos pacientes.

As consequências psicológicas podem ser catastróficas para quem passa por estas práticas: perda significativa da autoestima, ansiedade, síndrome depressiva, isolamento social, dificuldade de intimidade, ódio a si mesmo, vergonha e culpa, disfunção sexual, stress pós-traumático, ideação e tentativas de suicídio. Os danos são ainda maiores por as vítimas serem, na maioria dos casos, jovens entre os 16 e os 24 anos, quando estão a construir a sua identidade e são mais permeáveis a argumentos de autoridade dos pais, professores, profissionais de saúde e líderes religiosos. 

Na versão alargada do relatório para o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, Victor Madrigal-Borloz deixou claro que estas práticas “podem equivaler a tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante”. “Quaisquer meios e mecanismos que procuram tratar as pessoas LGBT como seres humanos inferiores são degradantes por definição e podem caraterizar tortura dependendo das circunstâncias, como a gravidade da doer e sofrimento físico e mental infligido”, lê-se no resumo do relatório. 

O especialista das Nações Unidas para as questões de orientação sexual e de identidade divide as metodologias destas práticas em três. A primeira é a psicoterapêutica, em que a abordagem comportamental predomina com o intuito de criar aversão. Alguns dos métodos usados são a hipnose, eletrochoques, náusea e paralisia induzidas por medicamentos, psicoterapia, recondicionamento masturbatório (forçar o pensamento no sexo oposto). O objetivo desta metodologia, explica o especialista das Nações Unidas, é submeter uma pessoa a “sensações negativas, dolorosas ou angustiantes ao ser exposta a um estímulo conectado com a sua orientação sexual”. 

A segunda, a metodologia medicinal, tem um longo historial (desde o século XIX) e a sua abordagem está ancorada na crença de a diversidade sexual ou de género ser uma disfunção biológica. Entre os métodos historicamente praticados estão a lobotomia, a injeção de hormonas (por acreditarem que a homossexualidade é fruto de demasiado estrogénio nos homens e demasiada testosterona nas mulheres), a medicação de antidepressivos para eliminar a líbido e o internamento em “clínicas” psiquiátricas com a recomendação de um médico.

E, por fim, a metodologia religiosa, que tem como premissa a ideia de haver algo inerentemente pecaminoso na diversidade das orientações sexuais e identidades de género. “As vítimas são geralmente submetidas aos princípios de algum líder ou conselheiro religioso/espiritual e  submetem-se a programas que irão gradualmente reverter a sua ‘condição’”, diz o especialista das Nações Unidas. Os métodos usados incluem aconselhamento religioso, rituais religiosos, insultos anti-gays, espancamentos, reclusão com privação de comida, exorcismos e a “terapia” do toque, de aliciamento sexual para que a outra pessoa rejeite – quando conseguir resistir aos impulsos, estará supostamente curada. 

Depois de séculos de perseguição religiosa, a homossexualidade (termo que aparece pela primeira vez na segunda metade do século XIX) foi criminalizada e, mais tarde, patologizada. A primeira prática de conversão (nessa altura considerada tratamento médico válido por a medicina ainda estar pouco desenvolvida) foi tornada pública em 1889 pelo psiquiatra alemão Albert von Schrenck-Notzing. Alegou ter curado a homossexualidade de um paciente depois de quatro meses por meio da hipnose e da sugestão – foram necessárias 45 sessões e algumas idas a um bordel.

O fim da homossexualidade ser encarada como doença não foi bem recebido por uma minoria de clínicos de saúde mental e movimentos ultraconservadores.

Foi o ponto de partida para as denominadas práticas de conversão: três anos depois, o psiquiatra publicou uma monografia sugerindo que esta terapia tinha curado outras 70 pessoas. Esta tese ganhou destaque e ao longo do século XX muitos foram os métodos desenvolvidos para tentar “curar” a homossexualidade. Deixaram um rasto de milhares de vítimas psicologicamente destruídas.

Estas práticas tornaram-se – e ainda são, existindo campanhas mundiais para a sua criminalização – uma das principais preocupações das organizações de defesa dos direitos das pessoas LGBT (principalmente depois da II Guerra Mundial). Cada vez mais pressionados, os profissionais de saúde mental começaram a virar costas à classificação da homossexualidade como doença. 

Em 1973, a Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês) desclassificou a homossexualidade como doença e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais III (DSM-III), publicado em 1980, seguiu o mesmo caminho. Porém, a Organização Mundial de Saúde demorou a seguir-lhe os passos: só a 17 de maio de 1990 assumiu a mesma posição clínica, fazendo, no entanto, um mea culpa.

O fim da homossexualidade ser encarada como doença não foi bem recebido por uma minoria de clínicos de saúde mental e movimentos ultraconservadores norte-americanos, fossem católicos ou evangélicos. Com a recusa dos clínicos em “tratarem” a homossexualidade, estes movimentos avançaram para ocupar o vazio deixado, trabalhando com a imprensa conservadora para difundirem campanhas pseudocientíficas e de reforço da desejabilidade do tratamento da homossexualidade. Por exemplo, associaram a homossexualidade à pandemia de VIH/SIDA, na década de 1980, para fortalecerem a sua agenda. 

Um desses movimentos foi a Exodus International, organização conservadora fundada em 1976 e que se tornou a maior do mundo composta por “ex-gays”. Aliava uma base religiosa a uma pseudociência ancorada em dinâmicas terapêuticas de grupo: criou os Homossexuais Anónimos, à semelhança dos Alcoólicos Anónimos. 

Mais tarde, já depois de a OMS também despatologizar a homossexualidade, assistiu-se a uma nova ofensiva, desta vez por dois profissionais de saúde mentais norte-americanos muito influentes no meio conservador norte-americano, o psiquiatra Charles Socarides e o psicólogo Joseph Nicolosi. Em 1992, fundaram a National Association for Research & Therapy of Homosexuality (NARTH) e aliaram-se a grupos religiosos fundamentalistas de extrema-direita, aprofundando estas torturas psicológicas e realizando congressos para as discutirem e formas de as exportarem ao resto do mundo – foi um importante contributo para o que hoje se relaciona com a denominada “ideologia de género”, narrativa de extrema-direita.

A América Latina, área de influência por eleição dos Estados Unidos, foi uma das primeiras zonas para onde estes grupos religiosos exportaram estas teses e métodos, vivendo-se hoje no subcontinente uma epidemia destas práticas. A Europa de Leste é neste momento um dos epicentros de exportação destas práticas, ainda que os Estados Unidos continuem a ser um dos faróis destes movimentos – por exemplo, o norte-americano Richard Cohen, que defende que é possível mudar a orientação sexual, esteve em Portugal em 2015 a convite da Associação de Psicólogos Católicos. 

Nas últimas décadas, estes grupos têm estabelecido redes internacionais, sejam ou não estruturalmente organizadas, de troca de conhecimentos e financiamento contra a suposta “ideologia de género”. Espanha, por exemplo, tem um movimento anti-LGBT muito forte, aliado do partido de extrema-direita Vox e capaz de fazer duras campanhas contra a criminalização destas práticas.

Qual a realidade destas práticas em Portugal?

Muito pouco se sabe sobre a verdadeira dimensão destas práticas de conversão de orientação em Portugal. Quem as faz, fá-las às escondidas em comunidades ultraconservadoras e evangélicas fechadas, onde existem relações de confiança e as recomendações para quem as pratica se fazem boca a boca. Também não existem dados, daí ser difícil saber a dimensão real. Mas a sua promoção na Internet e nas redes sociais é feita às claras, sem represálias.

As vítimas também não as denunciam, ora por estarem traumatizadas (e a recuperar psicologicamente, processo que pode demorar anos), ora por não quererem relembrar o que passaram. Mas também por não terem a quem denunciar, uma vez que estas práticas ainda não configuram crime no sistema jurídico português. Vivem e sofrem em silêncio. Os responsáveis não sofrem quaisquer consequências.

“Em Portugal, o que sabemos e vamos tendo alguma noção é a de os tratamentos serem mais subtis, o que não quer dizer que sejam menos prejudiciais”, explicou Jorge Gato, psicólogo e membro da task force que elaborou as Linhas de Orientação para a Prática Profissional no Âmbito da Intervenção Psicológica com Pessoas LGBTQ. “São provavelmente o que chamamos de lavagens cerebrais: convencer a pessoa que nos traz a dificuldade de aceitação da sua orientação sexual e fazer o contrário do que se deve fazer: a aceitação incondicional da sua orientação sexual, seja ela qual for.”

Há quem tente levantar um pouco o véu sobre esta realidade pouco estudada e conhecida no país. Pedro Alexandre Costa, investigador do ISPA e especialista em Psicologia LGBT, levou a cabo o primeiro estudo em Portugal que teve como objetivo examinar as experiências de terapia, exposição a práticas de conversão e saúde mental em pessoas LGBT+.

“Sabe-se que técnicos de saúde mental e terapeutas continuam a realizar práticas que visam a mudança de orientação sexual”, lê-se no artigo académico a que o Setenta e Quatro teve acesso. “Perto de 3% [8] participantes LGBT+ reportaram terem sido expostos a práticas de conversão”. E revelaram piores indicadores de saúde mental, quase três vezes maior risco de ideação e tentativas de suicídio do que as restantes pessoas LGBT.

O estudo teve uma amostra final de 322 participantes (207 heterossexuais cisgénero (indivíduo que se identifica em todos os aspetos com o seu género de nascença) e 115 participantes LGBT+, com idades entre os 18 e os 67 anos). O investigador acredita que o número de pessoas expostas a estas práticas está “subestimada” por a amostra ser relativamente pequena e o estudo não ser probabilístico. Mas sobretudo por se focar em práticas de conversão feitas por profissionais de saúde, e não por líderes religiosos ou outras figuras, e pela escolha da definição mais restrita, focada em contexto clínico. 

“Os dados internacionais que nos começam a chegar de vários países estabelecem que estas práticas podem ir até aos 10%. Se pensarmos em algum preconceito que valida a homofobia internalizada, então podemos entrar nos 20% ou mais de prevalência”, diz ao Setenta e Quatro o autor do artigo académico Experiências de psicoterapia de pessoas heterossexuais cisgénero e pessoas LGBT+: Resultados preliminares.


A falta de formação dos profissionais de saúde faz com que por vezes a linha entre práticas de conversão e práticas clínicas desadequadas seja muito ténue.

Daí que uma das conclusões do estudo seja precisamente a “necessidade de formação específica dos profissionais de saúde para as necessidades das pessoas LGBT+”. “Nos cursos base de formação de psicólogos ou psiquiatras, não há praticamente formação nenhuma em relação às minorias sexuais e de género, nem em relação a minorias étnico-raciais ou de contexto cultural”, garante o investigador.

Resta portanto aos profissionais de saúde procurar pós-graduações e formações específicas. Fica à responsabilidade de cada um encontrar essa formação adicional, o que muitas vezes não acontece.

O Setenta e Quatro falou com mais três profissionais de saúde dedicados a questões LGBT que corroboraram esta perspetiva de falta de formação. Porém, Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade da Psicologia Clínica da Ordem dos Psicólogos, garante que os psicólogos recebem a formação necessária para poderem ser os melhores profissionais, referindo, no entanto, reconhecer “problemas de má formação em todas as áreas”. “Não acredito que [a incompetência] seja a norma, a competência é um dos princípios éticos dos psicólogos”, garante.

“A Ordem trabalha muito para conseguir dar aos psicólogos todas as possibilidades de conseguirem promover boas práticas”, disse Ricou, dando de seguida como exemplo o documento das linhas orientadoras sobre LGBT da Ordem. “As linhas orientadoras foram feitas no sentido de mostrar aos psicólogos o que eles precisam de saber para poderem trabalhar nessas áreas, porque de facto são áreas específicas que trazem dificuldades e questões próprias.”

O dirigente da Ordem garantiu que a instituição está a trabalhar no sentido de fortalecer as competências dos psicólogos. A Ordem enviou depois ao Setenta e Quatro dados concretos: 2.147 psicólogos (de um universo total de cerca de cinco mil com cédula) frequentaram a formação de Intervenção Psicológica com pessoas LGBT desde 2012, quando a instituição começou a funcionar em pleno, depois de uma fase inicial de estruturação. A Ordem acreditou desde esse ano mais 14 formações abrangentes sobre temáticas de sexualidade humana, com apenas duas delas a serem específicas para questões LGBT.

A falta de formação dos profissionais de saúde faz com que por vezes a linha entre práticas de conversão e práticas clínicas desadequadas seja muito ténue. Alguns  profissionais de saúde, sem formação e conhecimentos particulares para lidarem com pessoas LGBT, permitem que os seus preconceitos e crenças heteronormativos influenciem a abordagem terapêutica. Neste processo, com a intenção de atenuarem o sofrimento dos pacientes, estão a causar mais. Desvalorizam a orientação sexual, forçam o assumir publicamente a sexualidade dos clientes, questionam se a homossexualidade é apenas uma fase, acentuam a dúvida. Em suma, dão a entender que a orientação sexual homossexual não é tão válida como a heterossexual.

Poucos são os estudos que se debruçaram sobre esta realidade em Portugal e um dos principais foi publicado pela ILGA Portugal em 2015,  Saúde em Igualdade – Pelo Acesso a cuidados de saúde adequados e competentes para pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans.

No estudo, com uma amostra de 547 pessoas inquiridas, chegou-se à conclusão que 17% dos inquiridos já se sentiram discriminados ou sujeitos a tratamento desadequado nos serviços de saúde e 11% (27 pessoas) afirmaram que algum profissional de saúde lhes sugeriu que a homossexualidade é uma doença e que pode ser “curada”. As respostas dos inquiridos incluíram comentários considerados desadequados, episódios de discriminação na doação de sangue por homens gays ou bissexuais (só em março deste ano é que as pessoas LGB passaram a poder doar sangue sem qualquer discriminação) e a presunção de comportamentos sexuais de risco derivados da orientação sexual.


Resistir implica romper com as suas famílias e, se não tiverem rede de apoio e não houver casas de abrigo preparadas para os acolher, correm o risco de se tornarem sem abrigo.

Um outro estudo mais antigo, de 2006, da autoria da psicóloga Gabriela Moita, chegou à conclusão que entre os terapeutas portugueses “a homossexualidade ainda surge configurada como um défice”, ao ser considerada como “resultado de uma ‘falha no processo de identificação’ ou uma ‘falha narcísica’”. O estudo baseou-se nos debates de cinco grupos de discussão constituídos por clínicos e noutros três formados por clientes.

“O facto de o modelo patológico da homossexualidade ter tido expressividade nos discursos de alguns clínicos é um indicador de que entre a comunidade terapêutica portuguesa ainda existem preconceitos que podem conduzir a terapias desajustadas e a enviesamentos na avaliação dos clientes”, lê-se no artigo académico A patologização da diversidade sexual: Homofobia no discurso de clínicos. Além disso, a autora assistiu à defesa de intervenções sobre quando os comportamentos homossexuais coexistem com alguns heterossexuais, o que dá a entender que os terapeutas acreditavam que “uma maior proximidade à heterossexualidade implica uma maior possibilidade de reversão”.

Esta interpretação das orientações sexuais é um indicador de que se está a caminhar para considerar a homossexualidade uma doença, diz Jorge Rato. “Quando fazemos uma interpretação já estamos a patologizar. As orientações sexuais não devem ser interpretadas, devem ser aceites e ponto final”, explica o psicólogo. “O consenso hoje é a problematização do estigma, não da orientação sexual.” Mas não é isso que acontece muitas das vezes.

Sara Malcato é há anos responsável pelo departamento de apoio psicológico da ILGA Portugal e não tem uma boa opinião sobre a forma como os profissionais de saúde mental abordam as problemáticas das pessoas LGBT. “Conta-se pelos dedos das mãos as pessoas que tiveram boas práticas anteriores e que procuraram a ILGA por uma questão de valor – os nossos serviços são um bocado mais ajustados”, garante.

Não demora muito a lembrar-se de exemplos de más práticas. “Já aconteceu serem os psicólogos a dizerem à família que a pessoa é gay, lésbica ou bissexual, principalmente quando falamos de jovens. Das pessoas que acompanhamos, é mais comum que incomum”, diz a psicóloga. Isto acontece por o psicólogo se sentir muitas vezes legitimado pelo seu estatuto de autoridade, diz. Apesar de serem jovens, continua a haver um aspecto de confidencialidade, sobretudo quando foi o tema da sexualidade que os levou ao psicólogo. 

Esta quebra de confidencialidade pode ter efeitos nocivos no acompanhamento psicológico de jovens LGBT. Encaram os psicólogos como alguém com autoridade e o processo terapêutico exige confiança, e estas quebras de confidencialidade levam-nos a generalizar estes comportamentos a todos  os profissionais. “A busca de apoio a nível da saúde mental fica muito condicionada”, conclui Sara Malcato, principalmente quando as pessoas LGBT têm bem mais probabilidade de desenvolverem problemas de saúde mental que uma pessoa hétero cisgénero, por causa do estigma social de que são alvo.

“A prática de conversão terá efeitos muito mais nocivos do que uma prática desadequada, mas esta última também tem efeitos negativos”, garante Pedro Alexandre Costa. “Aquilo que sentimos nos últimos dez anos é que há muitas práticas que não são éticas, não são profissionais, e de alguma forma o objetivo é contrariar a orientação sexual ou a identidade de género, mas são vistas meramente como más práticas”, aponta Marta Ramos, diretora-executiva da ILGA Portugal, acrescentando que “não são percebidas pelos profissionais nem pelas próprias vítimas como encaixando nestas supostas terapias de conversão”.

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As práticas de conversão e as práticas clínicas desadequadas fazem danos
As práticas de conversão e as práticas clínicas desadequadas fazem danos, ainda que com dimensões diferentes, nos clientes | Design de Rafael Medeiros

Sara Malcato já recebeu no seu consultório vários casos de jovens LGBT que foram submetidos ao que entende serem práticas de conversão e nem percebem que o foram, por isso nem se consideram vítimas. “As pessoas não têm muitas das vezes consciência, apenas sabem que foi angustiante, que aumentou a forma negativa como se viam. Quando nos verbalizam percebemos que foi uma prática de conversão”, explica a psicóloga clínica.

Saber que foram submetidas a uma prática dá-lhes um sentimento de vítima, mas, por outro lado, também lhes permite perceber que o problema não está nelas, mas sim em quem as praticou. A linha entre as práticas de conversão e as práticas clínicas desadequadas é, mais uma vez, muito ténue.

Por sua vez, a diretora-executiva da ILGA Portugal garante que uma das más práticas mais comuns é a medicação de antidepressivos a jovens LGBT. Ficam sem líbido e, assim, condicionam o seu comportamento. “Se não tiveres impulsos e vontades, pode ser que te passe. É no fundo apagar a identidade da pessoa na esperança que perceba que não vai acontecer nada. Isto é o mais comum, as pessoas nem se apercebem”, garante Marta Ramos.

E deu um exemplo. Em 2016/2017, a ILGA Portugal recebeu o caso de uma jovem LGBT cuja médica de família a reencaminhou para um psiquiatra da sua confiança quando falou da sua orientação sexual, dizendo-lhe que isso se “resolvia já”. “O psiquiatra veio a prescrever medicação altamente doseada de psicóticos para a jovem”, disse, acrescentando que no decorrer do acompanhamento psicológico da associação essa medicação se mostrou desnecessária.

“A maioria das pessoas jovens LGBT estão medicadas, resta saber se precisam de o estar. Se calhar precisariam de um acompanhamento psicológico que fosse de facto de intervenção afirmativa”, denunciou.

As pessoas LGBT têm mais probabilidade de desenvolverem problemas de saúde mental do que as pessoas heterossexuais, mas não têm os necessários serviços de saúde públicos. A saúde mental sempre foi o parente pobre do Serviço Nacional de Saúde e as listas de espera podem ser longas, principalmente fora dos grandes centros urbanos, e os preços no privado são muitas vezes demasiado altos – uma única consulta de psicologia pode ir dos 30 aos 80 euros.


“Quando fazemos uma interpretação já estamos a patologizar. As orientações sexuais não devem ser interpretadas, devem ser aceites e ponto final”, explica Jorge Rato.

Que serviços de psicologia restam então? “Só restam as associações LGBT, daí termos um serviço de apoio psicológico próprio. Não só por falta de segurança e na adequação de conhecimentos e técnicas de intervenção, mas também por causa dos valores [monetários]”, explicou Marta Ramos.

A situação é semelhante no que diz respeito à existência de casas de abrigo específicas para pessoas LGBT. O Estado, a Santa Casa da Misericórdia e a Segurança Social têm casas de acolhimento, mas não estão adaptadas para as especificidades das pessoas LGBT. Esta não é uma questão de somenos quando se aborda as práticas de conversão de orientação sexual: a maioria das pessoas LGBT são submetidas quando são adolescentes ou jovens adultos e estão financeiramente dependentes. Resistir implica romper com as suas famílias e, se não tiverem rede de apoio e não houver casas de abrigo preparadas para os acolher, evitando que sofram estigmatização e episódios de violência física, psicológica e verbal, por já estarem fragilizados, correm o risco de se tornarem sem abrigo.

Se as famílias forçarem os jovens a submeter-se a estas práticas com a ameaça implícita ou explícita de saída de casa, então estarão a incorrer no crime de violência doméstica por causa da situação da dependência económica, explica Marta Ramos. “Pouca gente sabe isto.”

O artigo 152.º do Código Penal, referente ao crime de violência doméstica, é claro no ponto 1 e na sua alínea d) ao referir-se ao impedimento de “acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais comuns” de uma “pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da ideia, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite”.

Assim sendo, os jovens poderão ativar a linha de apoio às vítimas de violência doméstica, seja através da polícia, dos serviços públicos ou das associações LGBT, mas depois há a questão das casas de apoio e abrigo, refere Hélder Bértolo, presidente da associação Opus Diversidades.

O dirigente associativo dá como exemplo os dramas sociais e económicos causados pela pandemia para ilustrar a situação que as potenciais vítimas destas práticas poderão enfrentar. “Durante o confinamento houve imensa gente que ficou sem casa e muitas foram acolhidas em centros comunitários, mas depois foram alvo de homofobia e transfobia”, conta o dirigente associativo ao Setenta e Quatro. E como exemplo deu o caso de uma situação que acompanhou de perto: “tivemos o caso de um casal de rapazes que estava num desses centros e só por estar de mãos dadas quase foi agredido. E depois a ideia foi de eles terem provocado, que não tinham nada de estar de mãos dadas”.

Daí que o dirigente associativo tenha sentido a necessidade de tirar algumas pessoas desses centros comunitários. “Isto é o ideal? Não, o ideal é que todos os sítios sejam inclusivos. Mas até lá chegarmos não podemos obrigar essas pessoas a passarem por violências”, sublinhou. Para Bértolo, a solução é simples: “É preciso reforçar os centros de acolhimento para pessoas LGBTQIA+, para que sejam apoiados os que já existem e criados novos”. “Quando isto foi falado, a reação mais geral foi: lá estão eles a querer coisas especiais. Não, ‘eles’ não querem é apanhar tareia. Isto não são direitos a mais, são os mesmos direitos, neste caso o de não ser agredido”, critica.

O dirigente associativo referia-se ao debate público suscitado pelos projetos de resolução do Bloco de Esquerda e das deputadas não-inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues, durante o primeiro ano de pandemia de covid-19, para se criarem estruturas de apoio locais para pessoas LGBTQI+ em situação de fragilidade económica ou social.


“A maioria das pessoas jovens LGBT estão medicadas, resta saber se precisam de o estar. Se calhar precisariam de um acompanhamento psicológico que fosse de facto de intervenção afirmativa”, denunciou a diretora-executiva da ILGA Portugal.

As três propostas de resolução acabaram por ser fundidas numa única que recomendou ao governo a criação destas estruturas e a capacitação de técnicos especializados para o acompanhamento das pessoas LGBTQI+. Foi aprovada pela Assembleia da República a 28 de maio deste ano: PS, BE, PCP, PAN, PEV e as deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira votaram a favor; PSD, CDS-PP e Iniciativa Liberal abstiveram-se; e o deputado único do Chega não esteve, mais uma vez, presente na votação em plenário.

Mas qual é, então, a situação das casas de abrigo para pessoas LGBT neste momento? Em todo o território nacional existem apenas quatro instalações com apoio direcionado para esta população: a Casa Arco íris e a Casa com Cor/Plano 3C, da Associação Plano i, localizada no Porto; a ReAjo – Resposta de Autonomização para Jovens LGBTI, um apartamento de autonomização da Casa Qi, para jovens dos 16 aos 23 anos; e, por fim, a Casa de Acolhimento Temporário de Emergência, da Opus Diversidades. Quatro.

“As pessoas LGBT já conquistaram nos últimos anos muitos direitos na lei, mas é só na teoria, falta ainda na prática”, salienta Nuno Pinto, coordenador do estudo da ILGA Saúde em Igualdade . “Ainda não temos políticas públicas LGBT ativas no país.

Prática que se transformou em abuso sexual

Quando Carlos tinha 15 anos, a “ajuda” chegou pela mão de um conselheiro religioso durante três anos quando ainda vivia no Brasil. Foi submetido a uma prática de conversão com a técnica do “toque/resistência terapêutico”. “Ele fez as orações que costumava fazer e depois pediu-me para tirar a roupa, ele também tirou, e colocou-se junto de mim. A questão era do tipo: ‘o que você sente comigo aqui perto de você? Sentes isto [atração], então tens de resistir. Tenta resistir, tenta pensar noutra coisa”, contou Carlos ao Setenta e Quatro. 

Tudo começou quando ainda era criança. Carlos sentia que era diferente dos restantes miúdos com quem brincava, mas não sabia explicar porquê. Aos sete anos começou a aperceber-se do discurso homofóbico no seio familiar e ainda hoje se recorda de um momento em específico: “Lembro-me de episódios na televisão com um casal homossexual e de a minha mãe dizer ser ‘nojento’”. Começou também ele a sentir nojo dos homossexuais.


"Estabeleci uma relação de confiança com ele de tal maneira que para mim aquilo era parte de chegar a uma cura. Hoje olho para trás e acho que aquilo foi abuso sexual”, conta Carlos.

Esse momento marcou-o e, quando chegou à puberdade, viveu uma “confusão tremenda, porque o que sentia não estava de acordo com o meio em que vivia”. Teve uma adolescência com muito poucos amigos, era uma pessoa muito isolada, “sempre com medo que descobrissem a sua homossexualidade”. Sentia-se desenquadrado da sociedade e, para encontrar um sentimento de pertença, começou a participar num grupo de jovens da Igreja Católica da sua pequena cidade brasileira. 

Dedicou-se ao máximo ao grupo, até se tornar uma obsessão. O grupo, explica Carlos, tinha dinâmicas saudáveis no início, mas a sua ausência identitária veio ao de cima. “Levei a sério e ao extremo: comecei a ir a todos os retiros e encontros – ficavam a 12 horas de onde vivia”, resume. “O discurso desta instituição era que aquilo que sentia [atração por homens] não era possível, era preciso procurar uma solução para aquilo.”

A sua homofobia internalizada intensificou-se e foi num canal de televisão católico, onde o tema da homossexualidade era recorrente, que encontrou as primeiras pistas para uma eventual cura que tanto procurava: “ouvi o senhor a dizer que curava homossexuais e até deu um exemplo de uma sessão dele: um gajo efeminado entrou e saiu de lá um homem. Para mim, aquilo foi a resposta”. Não seria a única resposta que iria encontrar. 

Continuou a ir a palestras e numa delas encontrou um orador que prometeu curar a homossexualidade. Era quase um sinal da providência, pensou Carlos. “Ele chamou-me no final e disse-me que sabia o porquê de eu estar ali, que estava ali para me ajudar e que o que sentia tinha uma solução, que a iríamos encontrar juntos”, relembra. Passou a ir de três em três meses à casa do palestrante que se tornou seu conselheiro religioso para sessões de “cura da homossexualidade”. 

“Ia até casa dele, vivia com a mulher e o filho adotivo, era professor de uma universidade, era uma pessoa de respeito, e as sessões consistiam em fazer orações. O discurso era de me tentar mudar”, recorda Carlos, hoje com mais de 40 anos. “Lembro-me de me entregar materiais, havia um livro que se chamava a ‘Cura da Homossexualidade’ e que assentava em três princípios que justificavam o que ele estava a tentar fazer.” 

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Conselheiro religioso faz prática de conversão de orientação sexual
Estas práticas de conversão são muitas das vezes feitas por líderes religiosos e ditos conselheiros | Design de Rafael Medeiros

A recomendação desse livro não foi feita por acaso. Se Carlos poderia ter dúvidas sobre a dimensão religiosa das sessões, estes livros acabaram com elas ao dar-lhes um aparente cunho científico, comprovando tudo o que o conselheiro lhe dizia. “O livro tinha a fundamentação de ser uma anomalia genética, que podia ser corrigida com exercícios de enfrentamento dos desejos. Estava tão embebido naquilo que me fazia sentido.” 

Os exercícios continuaram e os dois estabeleceram uma ligação de sólida confiança – o conselheiro era o único que sabia da sua homossexualidade –, até que a situação começou a ficar estranha. 

“Os exercícios começaram a ser do tipo: se você colocar a mão no meu pénis, dizia ele, o que você sente? Estabeleci uma relação de confiança com ele de tal maneira que para mim aquilo era parte de chegar a uma cura. Hoje olho para trás e acho que aquilo foi abuso sexual”, conta Carlos. Depois veio a situação em que o conselheiro se despiu totalmente para que ele resistisse à suposta tentação. 

Aos 18 anos, decidiu sair de casa e cortar contacto com o conselheiro, mas as mazelas perduraram. “Vivi três anos muito afetado, completamente angustiado, deprimido, com comportamentos autodestrutivos. A partir daí comecei uma descoberta autodestrutiva por não gostar do que podia ser, ainda vivia em negação completa e tinha esse sentimento de nojo, de vergonha, de receio. Era uma constante 24 horas no meu dia-a-dia.”

A solução que encontrou foi mudar-se para Portugal, onde mais tarde começou a fazer psicoterapia afirmativa, um conjunto de princípios que orientam a prática terapêutica para ajudar os clientes a aceitarem a sua orientação sexual. Encontrou-se e ganhou depois coragem para se assumir à família. Inicialmente reagiram mal, mas, aos poucos, foram aceitando o que não há forma de mudar. Hoje tem uma relação amorosa estável e está confortável com a sua sexualidade.

O caso que indignou o país

O país tomou conhecimento que as práticas de conversão de orientação sexual ainda aconteciam em Portugal em janeiro de 2019. Em horário nobre, uma investigação da então jornalista da TVI Ana Leal mostrou a psicóloga Maria José Vilaça a aplicar estas práticas de conversão.

Fê-lo numa sessão de grupo na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, no Lumiar, em Lisboa, e numa consulta individual, na qual apresenta a homossexualidade como uma estagnação no desenvolvimento psicossocial de uma pessoa, dando a entender que esse “congelamento” pode ser curado. Chegou a sugerir leituras de Richard Cohen, o tal profissional de saúde mental norte-americano que esteve em Portugal em 2015. 

A investigação causou indignação nacional. A ERC abriu um procedimento de iniciativa oficiosa por causa da transmissão das imagens e do debate que se seguiu à transmissão da investigação e a Ordem instaurou 14 processos disciplinares, juntando-os num único, o nº724, contra Maria José Vilaça.


“Se soubesse que um colega faz ‘terapias’ de conversão, ficaria envergonhado. Todos nós, psicólogos, sabemos que é coisa que não se faz. É um consenso muito amplo na comunidade dos psicólogos”, disse Miguel Ricou.

A decisão da ERC foi tornada pública cinco meses depois, a 5 de junho de 2019, e nele considerou a peça “enferma de várias deficiências”: ter-se socorrido a gravações não autorizadas, captadas em locais sujeitos a reserva de acesso e por a sua difusão não ter assegurado os cuidados adequados à preservação do anonimato dos visados – a única identidade revelada foi a de Maria José Vilaça. Mas também por não terem sido “claras as motivações do autor das gravações” vistas na reportagem.

Há, no entanto, uma conclusão da ERC surpreendente, o das situações vistas nas imagens não configurarem atos socialmente reprováveis: “mesmo concedendo que Maria José Vilaça tem opiniões controversas e ainda que algumas delas sejam comprovadamente erradas à luz dos atuais cânones científicos, nada na reportagem exibida configura pela sua parte a prática de atos ilícitos ou sequer socialmente reprováveis”.

A deliberação da entidade reguladora foi importante para que os processos disciplinares na Ordem dos Psicólogos contra Maria José Vilaça fossem arquivados. No entanto, aquando da sua defesa, conforme os trâmites legais, a psicóloga não deixou de tentar transformar a situação num caso político acusando a Ordem de mover “processos disciplinares por motivos ideológicos e persecutórios”, alegando que a instituição “deve defender os seus membros e não persegui-los por razões ideológicas e religiosas”.

Maria José Vilaça é um dos rostos da direção da Associação Psicólogos Católicos (APSIC), e uma das suas linhas narrativas é o questionamento sobre se um psicólogo pode ter fé, como se as crenças religiosas estivessem vedadas a estes profissionais. Faz disso cavalo de batalha.

“O psicólogo tem todo o direito de ter crenças religiosas desde que não interfiram com a sua prática. O psicólogo é psicólogo e trabalha a partir dos princípios da psicologia, dos valores da psicologia e com os limites do código deontológico”, explicou Miguel Ricou, presidente do Conselho de Especialidade da Psicologia Clínica da Ordem dos Psicólogos.

Um dos pilares da defesa da visada no processo disciplinar foi a não existência de provas. A deliberação da Ordem foi clara a esse respeito, mas por serem consideradas nulas. Considerando que a reportagem “violou direitos fundamentais da visada, nomeadamente o direito à imagem, à palavra ao bom nome e reputação”, o Conselho Jurisdicional deliberou “não ser possível concluir pela verificação dos factos que apontam para a presença de comportamento indevido”, uma vez que a “reportagem não pode ser considerada como um meio de prova”, lê-se no processo disciplinar nº724, que o Setenta e Quatro consultou.

Mas o órgão disciplinar não deixou de frisar que, “a terem sido provados os factos descritos pelos participantes, teriam sido violados um conjunto de princípios, existindo comportamento contrário às principais linhas orientadores nacionais e internacionais de associações de psicologia e de áreas profissionais afins”.

O parecer da Ordem dos Psicólogos é claro sobre o posicionamento da instituição sobre as práticas de conversão: assinala a sua ineficácia e o facto de causarem “riscos e prejuízos para a saúde psicológica”. “A OPP condena qualquer tipo de práticas de discriminação, estigma, preconceito ou violência com base na orientação sexual ou identidade de género”, lê-se no parecer da instituição, de junho de 2021. “A OPP não pode validar qualquer tipo de ‘terapias’ de conversão e apoia políticas públicas e legislação que previna e combata a discriminação de pessoas LGBTI+.”

“Se soubesse que um colega faz ‘terapias’ de conversão, ficaria envergonhado. Todos nós, psicólogos, sabemos que é coisa que não se faz. É um consenso muito amplo na comunidade dos psicólogos”, disse Miguel Ricou. “É quase criminoso alguém que é profissional de saúde desconhecer as normas internacionais da OMS e da APA, que já tiraram a homossexualidade das doenças há décadas. Isto é criminoso, estão a ganhar dinheiro com isto, são charlatães”, acrescentou Hélder Bértolo.

Não foi a primeira vez que a Ordem e Maria José Vilaça entraram em choque. Em novembro de 2016, a psicóloga que faz questão de se afirmar publicamente como católica disse numa entrevista à revista Família Cristã que ter um filho homossexual “é como ter um filho toxicodependente, não vou dizer que é bom”. A Ordem recebeu “dezenas de queixas” e reagiu dizendo que as “declarações não apresentam qualquer tipo de base científica e que contrariam a defesa dos direitos humanos''.

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Foram entregues no parlamento dois projetos-lei para criminalizar estas práticas de conversão
Foram entregues no parlamento dois projetos-lei para criminalizar estas práticas de conversão | Design de Rafael Medeiros

A criminalização

A reportagem da TVI despoletou o debate público sobre as práticas de conversão de orientação sexual e foi o catalisador para uma petição pública a defender a criminalização destas práticas que já recolheu mais de cinco mil assinaturas. A petição permite a discussão do tema em sede de plenário da Assembleia da República, mas não chega para pôr fim ao vazio no sistema jurídico português.

Foi para acabar com esta situação que a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues apresentou em abril um projeto-lei a propor a criminalização destas práticas e, em maio, foi a vez do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda. Os projetos propõem três anos de prisão a quem publicitar, facilitar, promover ou praticar esforços continuados, medidas ou procedimentos para alterar a orientação sexual de outra pessoa.

“Este vazio legislativo permite que estas práticas continuem a acontecer e são uma ameaça, uma chantagem, um risco e uma espada em cima da cabeça das gerações mais jovens”, declara a deputada bloquista Fabíola Cardoso. Com esta omissão no Código Penal, acrescenta Cristina Rodrigues, quem as pratica “pode no máximo levar com um processo disciplinar no âmbito das ordens”.

A lei terá um efeito dissuasor e dará poder reforçado às ordens profissionais, acreditam as deputadas, mas servirá também para dar um empurrão na mudança de mentalidades, para mostrar que o Estado português não é conivente. “Além de uma questão de criminalizar o comportamento em si, há também a questão de a sociedade tomar uma posição contra estas práticas, de ter um efeito dissuasor”, disse a deputada bloquista.

Todas as pessoas com quem o Setenta e Quatro falou acreditam que a criminalização é um passo bastante importante, ainda que tardio, por dar novas ferramentas às vítimas, às associações e às ordens profissionais para combaterem estes práticas equivalentes a torturas. 

Se nada for feito, o único risco não é a continuação destas práticas, destruindo as vidas dos mais jovens, é também o de aumentarem de escala. A deputada Cristina Rodrigues receia que Portugal se possa tornar num refúgio para quem leva a cabo estas práticas, uma vez que Espanha, Reino Unido e Alemanha já começaram a dar passos no sentido de as criminalizar.

“Este vazio legislativo permite que estas práticas continuem a acontecer e são uma ameaça, uma chantagem, um risco e uma espada em cima da cabeça das gerações mais jovens”, diz Fabíola Cardoso.

Uma outra hipótese, na mesma linha de pensamento, é de as relações internacionais entre Portugal e a América do Sul, via Brasil, levarem à importação destas práticas por motivos religiosos, que “encontrem no nosso país um território no qual se possam desenvolver e implementar a nível europeu”, alerta Fabíola Cardoso.

A criminalização terá, por agora, de esperar. Com o chumbo do Orçamento do Estado de 2022 e a consequente dissolução do parlamento pelo Presidente da República, os dois projetos-lei caíram. O de Cristina Rodrigues caiu permanentemente por a deputada não-inscrita não se recandidatar ao órgão legislativo nas listas de um partido e o bloquista terá de aguardar pela próxima legislatura, saída das legislativas de 30 de janeiro de 2022.

A deputada do Bloco de Esquerda garantiu que este projeto-lei será uma das primeiras iniciativas legislativas a dar entrada na próxima legislatura. O que se sabe neste momento é que um dos seus desafios será pressionar o Partido Socialista a apresentar um projeto-lei próprio ou convencê-lo a apoiar o bloquista, caso contrário estas práticas nunca serão criminalizadas. E já estamos atrasados.

A QUEM PEDIR AJUDA

Organizações não-governamentais e associações:

  • Associação Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género
  • Associação Plano I – Promoção da Igualdade e inclusão
  • Ação Pela Identidade – Ação pela identidade intervenção transexual e intersexo
  • ILGA Portugal – Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo
  • Associação Tudo vai melhorar
  • Casa QUI – Associação de Solidariedade Social
  • Clube Safo – Organização de defesa dos direitos das mulheres lésbicas portuguesas
  • Grupo Transexual Portugal – Grupo de defesa dos direitos sexuais
  • Identidades e Afetos – Associação constituída fundamentalmente por psicólogos e psiquiatras que trabalham as questões de género e sexualidade.
  • Lóbula – Coletivo de intervenção cultural e política de linha trans, queer e feminista
  • Opus Diversidades – Com especial incidência nas minorias sexuais e étnicas
  • Panteras Rosa – Frente de combate à LesBiGayTransFobia
  • Rede ex-aequo – Associação de jovens LGBTI e simpatizantes
  • Transmissão – Associação Trans e Não-Binária

Respostas especializadas de apoio a pessoas LGBTI vítimas de violência:

  • Serviço de Apoio a Vítimas da Associação ILGA Portugal
  • Gabinete de Apoio à Vítima para Juventude LGBTI, da Associação Casa Qui
  • Centro Gis, da Associação Plano i
  • “Resposta de Acolhimento de Emergência Especializada para Pessoas LGBTI” Casa Arco-Íris, Associação Plano i
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