Miguel Salazar

Se a minha igreja não me aceitou como sou, só me restou abandoná-la

Sabia que um dia iria sair, ainda que desejasse manter-me até ao meu último fôlego. Não sabia de que forma, se por iniciativa minha, se por obrigação, mas sabia. Sabia que guardava um segredo desde as memórias mais antigas que tenho da minha infância.

LGBTQIA+
3 Dezembro 2021

Miguel Salazar contou ao professor da sua igreja evangélica que era gay e este, depois de prometer segredo, contou aos seus pais. A sua igreja não o aceitou por ser quem é, os seus pais também não. E, em conjunto, submeteram o jovem com 16 anos na altura a uma dita "terapia" de conversão de orientação sexual. Sem alternativa, Miguel Salazar viu-se obrigado a romper com o seu mundo para poder ser quem é e a carta que aqui se publica foi o consumar desse corte. Podes ler a entrevista dele ao Setenta e Quatro aqui

Carta de Dissociação da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Vila do Conde

Após um tempo de reflexão, cheguei à conclusão que não faz sentido continuar a congregar na Assembleia de Deus, mas não parto sem as minhas últimas palavras enquanto membro do Corpo da Igreja.

Fui acolhido calorosamente por todos os irmãos e irmãs no primeiro dia em que passei por aquela porta. Cresci naqueles bancos, vi a Igreja de Vila do Conde como a minha segunda família, dediquei o meu tempo, o meu esforço e o meu coração à obra do Senhor, batizei-me e não menti em nenhuma das palavras que disse publicamente até descer às águas, enfrentei os momentos mais complicados da minha vida mantendo-me sempre fiel, não cedi à vontade de abandonar o caminho nas fases em que a minha fé mais tremeu, tive sempre em mente que nunca trocaria esta por mais nenhuma congregação e em momento algum me arrependi ou me arrependerei de nada disto.

Sabia que um dia iria sair, ainda que desejasse manter-me até ao meu último fôlego. Não sabia de que forma, se por iniciativa minha, se por obrigação, mas sabia. Sabia que guardava um segredo desde as memórias mais antigas que tenho da minha infância e sabia também que, da mesma forma que parte da minha família não iria aceitar, na Igreja não seria diferente.

Aceitei durante vários anos a imagem que criaram de mim porque não tinha outra forma de me sentir seguro e aceite, nem capacidade para lidar com o mal que viesse a cair sobre mim. Por esse motivo, ocultei a minha orientação sexual. Desde pequeno fingi ser o que não era, fingi paixões que não senti, falei contra quem era como eu, mas quando estava sozinho ou com um amigo, eu era eu, sem julgamentos e, por momentos, fora de uma prisão.

Há cinco anos, a minha mente pregou-me uma rasteira e tive muito pouco tempo para amparar a queda. Fui vítima de bullying durante cinco anos e durante três desses anos sofri agressões homofóbicas, mesmo ainda não me tendo assumido e estando mal resolvido com a minha sexualidade. Depois de uma noite agoniante com essas memórias, com o corpo suado e com pensamentos autopunitivos e suicidas, decidi contar a alguém da minha segunda família e pedir segredo. A partir daí, foi apenas uma questão de tempo.

Desde pequeno fingi ser o que não era, fingi paixões que não senti, falei contra quem era como eu, mas quando estava sozinho ou com um amigo, eu era eu, sem julgamentos e, por momentos, fora de uma prisão.

O monstro que durante tanto tempo criei na minha cabeça sobre um cenário hipotético do que viria a seguir a dizer a alguém na igreja ou em casa tornou-se real: o “vais para o inferno”, o “isso é muito grave”, o “isso é pecado”, o “estás no lixo”, o “estás acorrentado”, o “isso é contranatura”, o “estás possesso por espíritos demoníacos”, os choros de lamento, o “isso é doença”, o “nem os animais fazem isso”, a correria para encontrarem uma cura, o “podias ter esperado que eu morresse para assumires uma coisa dessas”, o “se Jesus viesse hoje, tu ficavas”, o “Deus está contra ti”.

No entanto, fui combatendo e ignorando este tipo de discurso. Rejeitei completamente a ideia de que Deus estava contra mim. Rejeitei a ideia de que Deus me mandaria para o Inferno por ser homossexual. Rejeitei a ideia de que Deus errou ao criar-me para amar alguém do mesmo sexo. Se o “amor nunca falha” (1 Coríntios 13:8) e se toda a lei de Deus se fundamenta no amor (“Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçarás; e se há algum outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” – Romanos 13:9), então, não há nada de errado comigo.

Debati este assunto durante muito tempo comigo próprio e com outras pessoas. Li a Bíblia, fiz a devida contextualização histórica dos textos utilizados para nos condenarem e olhei para história da Igreja. O passado do Protestantismo, as atrocidades cometidas em nome de Deus e a opressão direta ou indiretamente exercida sobre diversas comunidades foram (e são) uma realidade que, por vezes, é colocada debaixo do tapete. Fala-se muito, e com razão, da perseguição, do ataque e do assassinato de comunidades cristãs, mas faz-se silêncio quando são elas a perseguir, a atacar e a matar.

Outrora, em países esclavagistas e com uma maioria social cristã, a escravatura foi apoiada pela maioria das igrejas. Em países segregacionistas e com uma maioria social cristã, o racismo foi apoiado pela maioria das igrejas. Em países onde a mulher tinha o mesmo valor que uma propriedade e com a maioria social cristã, o machismo era apoiado pela maioria das igrejas. Em países onde a homossexualidade era criminalizada e com uma maioria social cristã, a homofobia era apoiada pela maioria das igrejas.

Contudo, ainda que estas realidades se tenham alterado por força de avanços sociais e contra a reação da Igreja, a hostilização continuou, assumiu outras formas e continua a usar respaldo bíblico para se justificar. A convicção baseada em trechos de que a homossexualidade é pecado e que quem tem uma orientação sexual diferente da heterossexual não pode assumir qualquer tipo de cargo era exatamente a mesma que, há algumas décadas e há alguns séculos, instituía que pessoas brancas e pessoas negras não podiam partilhar o mesmo espaço (incluindo nas igrejas), que os homens podiam punir fisicamente as suas mulheres (incluindo os pastores e os irmãos), que homens brancos podiam beneficiar de mão de obra negra e escrava (incluindo membros de igrejas) e que homossexuais e travestis deviam ir para a prisão por serem quem são e por se vestirem como queriam.

A minha humanidade não está à mercê de mentalidades que não se coadunam com valores humanistas e de igualdade. Se a minha orientação sexual é motivo para que se tomem medidas de restrição, afastamento ou exclusão, então esse lugar não é para mim.

Pensar nesta realidade ajudou-me a perceber o perigo de olhar para as Escrituras de uma forma fundamentalista, o mesmo fundamentalismo que a Igreja critica noutras religiões. Um fundamentalismo que se perpetua com pessoas que têm acesso a todo o tipo de informação e que escolhem a desinformação e as notícias falsas para, nos cultos, disseminarem o medo, a repulsa e a ignorância na cabeça de quem não tem esse acesso.

E, porque a História se repete, não me sinto confortável num meio que, ao invés de despertar no coração das pessoas a valorização do ser humano sobre qualquer tipo de ideia anti-humanista, segregadora e violenta, prefere conduzir os seus olhos para quem quer recuperar um período do nosso país em que também a nossa Igreja era perseguida, seja através das redes sociais, seja a ministrar um culto.

Não peço a ninguém que aceite que sou homossexual. Eu exijo-o. A minha existência não se coloca em debate. A minha humanidade não está à mercê de mentalidades que não se coadunam com valores humanistas e de igualdade. Se a minha orientação sexual é motivo para que se tomem medidas de restrição, afastamento ou exclusão, então esse lugar não é para mim. Não tenho uma tendência, nem uma inclinação. Tenho uma orientação que é normal e natural. Di-lo a ciência e longe vai o tempo em que a ciência era heresia e a interpretação superficial de um texto religioso uma norma.

Não aceito que me diminuam, não aceito que me desumanizem e não aceito que me digam que estão a agir com amor porque foi esse “amor” que me esbofeteou e que me puxou os cabelos por me recusar a dizer que “o normal” é um homem relacionar-se com uma mulher.

Acabo esta carta deixando claro que não guardo rancor, ódio ou mágoa de ninguém. Amo cada irmão e cada irmã com o mesmo amor que sempre senti durante todos estes anos. Amo como amo a mim mesmo, e amar-me é não me submeter a atitudes contra as quais luto diariamente.

Faço minhas as palavras do pastor Henrique Vieira, com quem tenho divergências teológicas, mas que considero um exemplo do que falta na Igreja:

“Quando a Igreja te magoa. Quando ela é mais Instituição do que Corpo. Quando ela é mais apegada à doutrina do que às pessoas. Quando ela exclui mais do que acolhe. Quando ela só oferece respostas, mas não compartilha das perguntas. Quando ela vigia e não estimula a liberdade. Quando ela fala mais da culpa do que de perdão e mais de medo do que de amor. Quando ela silencia corpos e não respeita a singularidade de cada pessoa. Quando ela é mais hierárquica do que comunitária. Que Deus nos ajude para que sejamos uma Igreja genuína, simples, colorida e amorosa, sinal singelo de Jesus no mundo.”

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