| Ilustração de Rafael Medeiros
Maus tratos, abusos e negligência durante o parto podem ser encarados como uma forma de violência. O Setenta e Quatro entregou-se a um tema delicado, que divide opiniões e está a despertar uma nova consciência sobre um problema antigo. A má conduta está normalizada nas instituições, apesar de haver exceções.
“Fiquei separada da minha filha dez dias, mas sobretudo fiquei separada da bondade e daquilo que nos valida como humanos: a empatia, a ajuda, o consolo que não precisa de reconhecimento.” Estas são algumas das palavras que Inês Meneses escreveu numa crónica publicada no jornal Público a 12 de abril de 2021, treze anos depois da experiência de parto da filha, quando decidiu voltar a um assunto que lhe deixou marcas para o resto da vida.
Não foi a primeira vez que escreveu sobre o acontecimento. Logo a seguir ao parto, passado uns dias, escreveu um texto que assinava com o pseudónimo “O Sexo e a Cidália”, no Diário de Notícias. “Escrevi completamente a quente”, conta ao Setenta e Quatro a radialista, “denunciei tudo, e a minha médica disse-me que havia uma grande preocupação lá dentro para saber quem tinha escrito a crónica”.
“Lá dentro” era a Maternidade Alfredo da Costa, e vamos voltar a essa noite de janeiro de 2008 para entender o que se passou. Quando a Inês chegou à maternidade foi “muito mal recebida por um médico, com uma agressividade e uma superioridade” que estranhou logo. No entanto, seguiu os trâmites e foi para um quarto, onde o tempo começou a passar, sem grande evolução. Até aí, tudo mais ou menos normal.
“A dada altura, já eu tinha sido massacrada por duas pessoas diferentes com os toques, concluindo sempre que não havia dilatação. Entra um médico com um grupo de vinte alunos, não diz ‘boa noite’, não diz nada, explica aos alunos que estava ali ‘uma mulher sem dilatação’ e faz o toque à frente dos vinte alunos”, conta Inês Meneses, que no meio das dores pensava na “loucura” que aquilo representava, ao entrar ali um médico que a usa “como se fosse um recipiente…”.
Mais doze horas se passaram em que foi continuamente alvo de toques por parte de diferentes pessoas. "Saíam e não explicavam nada do que se estava a passar comigo. Tinha uma espécie de contração contínua, nunca tinha um momento de pausa. Comecei a sentir-me muito mal e a deixar de ter discernimento”, conta.
Não chegou a levar epidural, apesar de ter pedido assim que entrou, e começou a sentir febre. O pai da bebé estava presente e conseguiu falar com a médica da Inês, que estava de folga, depois de ter estado “de banco”. Quando chegou, a barriga estava a ferver e a Inês já estava a receber oxigénio. Seguiu imediatamente para cesariana, mas antes ainda ouviu uma outra médica dizer: “vamos lá então para a cesariana da hora do almoço”. O toque vaginal a que foi sujeita originou uma infeção chamada amnionite, nela e na filha.
A conduta geral ainda depende muito das equipas, das unidades hospitalares e de uma certa “tradição”, ou “culto de superioridade”, que se mantém em alguns locais.
Esteve dez dias afastada da bebé recém-nascida, os primeiros três a soluçar numa enfermaria em que assistia a outras mães serem maltratadas. Um dos episódios que relembra é “acordar já no recobro”, e passar “pela coisa tremenda de saber que vai chegar a tua vez em que te põem a barriga para dentro”. “É uma dor horrível”, recorda, “eu via todas as mulheres antes de mim a gritarem, e eu a ser a última”. E acrescenta que sentiu toda a experiência como uma espécie “de tropa em que vais ter de superar aquelas provas todas”. Era isso que dizia às colegas de parto, com o humor que a caracteriza. Que tudo aquilo era como um “Big Brother das grávidas”, com várias etapas para superar.
Quando saiu do hospital, ao qual teve que voltar durante dez dias para ver e dar de mamar à filha, começou a fazer terapia. Sentiu imediatamente necessidade de ser seguida por um psicóloga, coisa que não é disponibilizada no hospital. A forma de exorcizar este momento foi escrever. Uma, duas, três vezes.
“Abomino o discurso das mulheres que tentam relativizar isto e dizem ‘agora olho para o meu filho e esqueço tudo o que se passou’. Não podem esquecer! Se fecharem os olhos ao que se passou, vão perpetuar estas contínuas más práticas que são exercidas contra as mulheres”, diz hoje a mãe de uma filha de 14 anos. “É a cultura do sadismo relativamente às mulheres, ainda por cima grávidas, que estão num estado de vulnerabilidade e fragilidade, que deviam ser mais bem tratadas do que nunca.”
O momento de um parto é sempre uma lotaria, uma grande incógnita. Pode haver expectativas, pode haver idealizações, mas ninguém sabe como vai correr.
Hesitou em escrever a crónica em abril de 2021, mas sentiu que ainda agora, catorze anos depois, muitas mulheres se iriam rever. Partilhou o texto no Facebook no mesmo dia em que saiu no Público e teve quase 300 comentários, a maior parte de pessoas a contarem a sua própria história. Nunca a Inês teve tantos comentários numa publicação. Num dos comentários, houve também uma pessoa que escreveu algo como “estas raparigas que pensam que vão para um hotel”. É uma das frases que se têm perpetuado ao longo da história.
Inês Meneses nunca chegou a fazer uma queixa oficial. Arrepende-se hoje em dia, tal como Sofia Carvalho, que uns anos antes, no mesmo hospital, teve uma experiência semelhante, com contornos bastante macabros. É a primeira vez que a ex-diretora da SIC Mulher partilha esta história publicamente. Tinha-a “arrumada numa pequena gaveta”, como conta ao Setenta e Quatro. Voltar a ela tantos anos depois é reconhecer que na verdade não ficou completamente resolvida.
Sofia foi ter a segunda filha à Maternidade Alfredo da Costa no ano 2000, porque a primeira filha tinha nascido lá, dois anos antes. “O meu primeiro parto correu bem porque tinha um tio que era médico de clínica geral. Quando eu entrei na maternidade foi ter comigo e uma das médicas que estava de serviço tinha sido interna dele. Acho que correu bem porque tinha ali aquela figura de peso”, diz. Nesse primeiro parto, apesar de terem sido usados fórceps, sentiu que a informaram de tudo e que teve bastante acompanhamento.
Quando entrou pela segunda vez na maternidade, ia confiante de que iria correr tão bem como na primeira. Tanto que disse ao marido para ir para casa, porque já sabia que o processo de dilatação era demorado no seu caso. A primeira coisa que estranhou foi não ser permitido ficar com carteira ou telemóvel, só com o relógio, para contar as contrações. Estranhou, mas calou-se. “É uma coisa geracional, queremos é que corra tudo bem”, diz agora.
Passado umas horas, disse à enfermeira que queria chamar o marido, estava a chegar a hora, começava a ficar com dores. “Está a ver ali aquela cabine telefónica?”, disse a enfermeira, “é ali que tem de fazer a chamada para o seu marido”. “Como, se nem tenho carteira?”, perguntou a Sofia. “Chamada a pagar no destinatário”, foi a resposta.
“Com contrações, tive que atravessar um corredor até uma cabine telefónica”, conta Sofia, “atravessei de gatas, e todo o caminho ia a pensar ‘chamada a pagar no destinatário… e se ele não atende?’ Lembro-me de estar de gatas a carregar nos números, a falar com uma telefonista, a esperar que ele atendesse, e atendeu. Voltei para o meu sítio de gatas”. Um longo corredor para chegar ao quarto onde continuou à espera da epidural, que tinha pedido inicialmente.
Sempre que voltava a pedir a anestesia, respondiam que não tinham pessoas disponíveis. “Eu precisava de fazer força, precisava de epidural. Lembro-me de trincar a marquesa com dores. Quando chega uma médica diz-me que tiveram uma gravidez ectópica e não havia quem desse epidural. Pensei que não ia aguentar, era uma dor insuportável”. Quando foi para a sala de parto, disse ao marido que achava que ia desmaiar. A médica que estava ao lado respondeu: ‘não faz mal, desmaie que nós depois acordamo-la’.
Foi cortada para episiotomia – uma incisão no períneo –, sem ter sido informada, e cosida a frio, uma hora depois do parto, não sem antes ter uma médica aos pulos em cima dela, como se estivesse a fazer reanimação, para a barriga baixar. Era para sair o resto da placenta, diziam. Foi das poucas coisas que lhe disseram. Saiu de lá de rastos, uns dias antes da data de alta, com muita “vontade de esquecer tudo aquilo”.
“Abalou-me na altura”, explica, “mas de facto consigo fazer o exercício de carpir as coisas durante dois a três dias e depois acabou. Já tinha uma filha pequenina, esta era a segunda, não fiquei presa a isso. Só passado um tempo é que a ficha caiu. Fui muito maltratada, foi desumano, é inacreditável que isto tivesse acontecido no ano 2000”.
Vários momentos na História mostram-nos que só quando se radicaliza um assunto é que ele sai verdadeiramente para debate.
O momento de um parto é sempre uma lotaria, uma grande incógnita. Pode haver expectativas, pode haver idealizações, mas ninguém sabe como vai correr. E depende de inúmeros fatores. O primeiro é, sem dúvida, o receio com que a grávida entra num hospital e a forma como é tratada. Às vezes tudo depende desse primeiro contacto, da forma de comunicar com a mulher e os familiares.
Sabemos que muitos partos correm bem, e que raramente se contam as histórias que deixam boas memórias, mas o importante é entender que a conduta geral num momento tão vulnerável como a gravidez e parto ainda depende tanto das equipas, das unidades hospitalares e de uma certa “tradição”, ou “culto de superioridade”, que se mantém em alguns locais.
Quisemos perceber a razão de uma atitude tantas vezes agressiva, violenta verbal ou fisicamente. E analisar o perpetuar de certos procedimentos – como ter uma fila de vários alunos internos para fazer o toque vaginal enquanto se está em sofrimento com contrações. Ou sermos um dos países que mais pratica manobras de parto desaconselhadas pela Organização Mundial de Saúde (como a episiotomia e a manobra de Kristeller, procedimento para a expulsão do bebé), segundo um estudo publicado recentemente na revista The Lancet, uma das publicações mais referenciadas na área da Saúde.
A Inês e a Sofia são duas vozes que se fazem ouvir. Duas mulheres que, cada uma à sua maneira e no momento que escolheram, exprimem publicamente a experiência. A maior parte das mulheres querem esquecer. A maior parte sai do hospital com culpa por não ter dado o seu melhor, por não ter cumprido os timings. Deixamos vários relatos nesta página, para que a voz destas mulheres seja ouvida, e que sirva de eco a muitas outras.
Esta é uma das posições que não são permitidas durante o trabalho de parto, mas que facilitaria o processo e criaria conforto | Ilustração de Rafael Medeiros
Parte da discussão à volta deste tema tem a ver com o termo em si. Violência obstétrica ou maus tratos? Negligência ou má conduta? Nos países de língua inglesa, continua a usar-se habitualmente o termo mistreatment, disrespect ou abuse, seja qual for a situação. Não se coloca este problema. Aqui, resolveu-se importar o termo ‘violência obstétrica’ dos países da América Latina. E é principalmente isso que está a incomodar muita gente.
Cláudia Araújo, médica obstetra no hospital Santa Maria, considera que “o termo é depreciativo para os profissionais”, e que pode levar a que “a população em geral comece a ficar com uma aversão aos hospitais e ao que os médicos possam dizer, e deixem de confiar”. No entanto, apesar da relutância em relação ao termo, sob o qual muitos profissionais de saúde se sentem ofendidos, esta médica, tal como outros médicos, admite que há condutas erradas. “Temos muita margem para mudar”, diz, “não era preciso esta agressividade para haver mais informação e empatia com os doentes. O que acontece é que começa a haver extremos, as pessoas sentem-se atacadas, defendem-se, e às vezes de forma agressiva também”.
“Durante muitos anos o objetivo foi sempre garantir a segurança, independentemente da informação ou não”, explica ainda esta médica. “Passou-se de uma altura em que a taxa de mortalidade infantil e materna era gigantesca, para os anos 2000, em que praticamente não há mortalidade materna. A atitude era sempre de que tinha de se estar ali para salvaguardar a mãe e o bebé. Se calhar, nessa conquista, e nesses números tão bons, foi faltando alguma parte de informação.”
Aquilo de que nos fala Cláudia Araújo é precisamente o maior cerne desta questão, como se poderá ver nos relatos que o Setenta e Quatro recolheu. Não é de agora que as grávidas vão com receio para o hospital no momento do parto por causa de histórias que ouviram toda a vida (e também pelas imagens que os filmes sempre nos transmitiram dos partos). O medo não surgiu com o termo ‘violência obstétrica’. Ele já estava presente. O que existe é uma maior consciência de um tratamento tantas vezes desumano.
A médica Catarina Reis de Carvalho, obstetra do mesmo hospital, escreveu em julho de 2021 sobre este assunto no Observador, e a questão centrou-se mais uma vez no termo ‘violência obstétrica’. De uma forma geral, o artigo chama a atenção para a necessidade de uma evolução nos cuidados de saúde no sentido de “promover um parto respeitado”. Não nega a “existência de histórias devastadoras, assimetria de cuidados e muito a melhorar na saúde materna”, mas que “a solução não passa por diabolizar os cuidados de saúde que existem”. Pelo meio, escreve também a frase: “o termo ‘violência obstétrica’ é pouco consensual e considerado ofensivo por muitos profissionais de saúde. E é fácil perceber porquê: a designação pressupõe que há intenção nas más práticas”.
Se não há intenção nas más práticas, porque é que elas existem? A médica defende que este “clima de antagonismos só traz desvantagens”, e que “os profissionais de saúde se sentem atacados, ofendidos e desmotivados”. Mas será que a atenção dos profissionais de saúde não está demasiado retida no termo em si?
Vários momentos na História mostram-nos que só quando se radicaliza um assunto é que ele sai verdadeiramente para debate. Só aí é que ganha importância, deixa de estar num extremo para ser colocado no meio. Se chamarmos de maus tratos ou abuso, deixa de ter relevância? Como diz Inês Meneses, “tem de se radicalizar para chegar a um bom senso. Esta discussão vai dar frutos”.
“Isto não tem a ver com os médicos, não é sobre nós, é sobre as vítimas. Aquilo que queremos dos médicos é que pensem no que está a acontecer, que falem com as equipas”, explica o médico Nuno Hipólito.
“Chamem-lhe o que quiserem”, reitera Catarina Barata, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto. “Parece que não se quer passar dessa fase”, diz a antropóloga. “O que importa aqui é saber que há uma esmagadora maioria das mulheres que se sentem terrivelmente mal com os seus partos, porque há atitudes e modos de os conduzir absolutamente obsoletos. É uma pena que não se olhe para outros países, porque há exemplos. A Dinamarca tem uma taxa de episiotomia que não chega a 5%."
Catarina já se reuniu várias vezes com unidades de obstetrícia de diferentes hospitais. Alguns com uma certa abertura, como é o caso do diretor do serviço no Hospital Santa Maria. Mesmo assim, sente que a abertura é maior nas unidades onde já se praticam partos mais humanizados. “A maior parte dos médicos e profissionais de saúde são bem intencionados, foram para aquela área porque de facto querem ajudar as pessoas e salvar vidas. No entanto, foram ensinados num enquadramento de práticas que são prejudiciais e não se justificam", diz, referindo-se não só aos procedimentos como episiotomia e manobra de Kristeller, mas também à questão da comunicação.
Defende que "a pessoa nunca deve ser surpreendida num momento como o parto com coisas que nunca ouviu falar. A informação é fundamental, deve ser prestada antes”. E refere igualmente que muitas vezes a informação vem em forma de coação, como é o caso dos hospitais privados, onde o tratamento verbal é melhor porque são clientes, mas manipulam-se situações e marcam-se cesarianas por conveniência. “Aceitam-se intervenções que são desnecessárias”, diz, “a taxa de cesarianas no privado (mais de 60%) é escandalosamente mais alta do que no público. Ultrapassa imenso as recomendações da OMS. Tendo em conta que em Portugal as gravidezes de risco e os partos de risco são seguidos no público, não há justificação de taxa de cesariana".
Para Catarina, na maioria dos partos a mulher é “transformada num objeto inerte que ninguém consulta, ninguém quer saber. Inclusive em casos de emergência, há maneiras de o fazer que não passam por ignorar completamente a mulher, como se ela não estivesse a ouvir tudo o que se está a passar. Como se não tivesse capacidade para entender".
Nem todos os médicos concordam que o termo violência obstétrica seja ofensivo. Há mesmo quem defenda que esta é a melhor maneira de classificar práticas que já deviam estar ultrapassadas. É o caso de um conjunto de médicos que assinou um artigo no Público em novembro de 2021. Um dos subscritores foi Nuno Hipólito, médico residente em Braga que falou com o Setenta e Quatro. “Acho que as pessoas ainda não têm muito a noção do que é a violência obstétrica e muitas vezes desvalorizam e tomam como normais determinadas práticas”, salienta o médico, que antes de estar três anos no Centro de Saúde de Sete Rios fez o internato de quatro anos no Hospital de Braga.
“Confesso que na altura, sem tanto poder crítico, tudo aquilo foi normalizado por mim. Instrumentalizar, prender as mulheres à marquesa… O que acontece é o uso excessivo de práticas que estão desaconselhadas pela Organização Mundial de Saúde. Em quase todos os partos a que assisti era realizada a episiotomia, sem pedir qualquer tipo de consentimento à mulher”, conta Nuno Hipólito. Além disso, no caso do Hospital de Braga, “o que se usa é uma espátula, que nem sequer aparece nas estatísticas”, explica.
Em relação à violência verbal, diz que era “uma constante”, e que “já como aluno em Coimbra, na maternidade Daniel de Matos, isso acontecia”. Uma das frases que mais ouviu é algo que remete para literatura alusiva aos partos feitos por freiras cruéis em séculos passados, mas que afinal é frequente hoje em dia: “está a gritar, mas não gritou assim quando o fez”. Um clássico.
Na verdade, “está tudo na lei, é só uma questão de cumpri-la”, garante-nos uma médica obstetra que prefere não assumir a identidade, por medo de represálias.
“Há uma enorme pressão sobre as mulheres que estão em trabalho de parto e que estão numa posição fragilizada, a culpabilização da mulher porque o trabalho de parto não está a correr de acordo com as normas do obstetra. Tem a ver com o género, são dirigidos às mulheres. E sim, são violentos”, diz. “É uma altura em que um comentário violento tem um impacto muito maior na confiança daquela mulher, na sua recuperação e na capacidade de amamentar o filho e na sua saúde mental.”
“Isto não tem a ver com os médicos, não é sobre nós, é sobre as vítimas. Aquilo que queremos dos médicos é que pensem no que está a acontecer, que falem com as suas equipas”, explica Nuno Hipólito, referindo-se à reação de vários colegas que se sentiram ofendidos com o termo recentemente evocado. “Eu sou médico, já passei por uma situação de violência obstétrica e não me sinto ofendido por dizerem que isto se chama violência obstétrica”, conta, ao relatar o nascimento do primeiro filho, no Hospital de Braga. No segundo filho não teve qualquer tipo de problema, antes pelo contrário. Nasceu no Hospital da Póvoa de Varzim, uma referência nacional nos cuidados maternos.
Sofia Cunha, médica de Cirurgia Geral, trabalhava na Suíça quando teve conhecimento da declaração da Ordem dos Médicos (OM) que recusou a existência da Violência Obstétrica nas Unidades e Centros Hospitalares, em outubro de 2021. Apesar de ter exercido vários anos fora do país, foi em Portugal que presenciou pela primeira vez atos de violência obstétrica num hospital, na região Norte. Foi em 2012, quando era interna de ano comum. Ao longo de quatro dias numa urgência de Ginecologia e Obstetrícia, ela e mais três pessoas, viveram uma realidade que, hoje, afirmam não querer presenciar mais.
Entrou juntamente com os internos para uma sala de parto sem o consentimento da parturiente, porque lhes diziam que estavam lá para aprender. “Sentia-se o cheiro de sangue dentro da sala. E desde logo isso pareceu-me estranho. Era um periodo expulsivo, complicado porque recorriam aos fórceps. Quando nos apercebemos, a médica tinha literalmente arrancado o bebé da mãe”, conta ao Setenta e Quatro. Sofia recorda que mesmo quando a parturiente estava a sangrar, a médica especialista deixou um dos internos a suturar sozinho e foi-se embora. “Olhavam para aquela mulher como um corpo a dar à luz. A senhora estava em choque, branca, com os olhos completamente revirados. Ninguém quis saber dela ou do bebé”, continua.
Partindo desta sua primeira experiência até ao momento em que foi mãe, que designa como “fantástico”, tendo tido toda a liberdade e apoio durante o acompanhamento e o momento do parto, a médica não aceita perpetuar a ideia de que a violência obstétrica não existe. “A Ordem dos Médicos respondeu em nome de todos nós, mas não respondeu por mim. Negar que existem más práticas, principalmente num contexto que envolve a mulher, não é uma resposta com o meu consentimento ou de todos os médicos e médicas que reconhecem que elas existem”, crítica a profissional de saúde. “Somos responsáveis por estas situações, porque também contribuímos para isso.” Decidiu confrontar a Ordem e o bastonário. Escreveu um pedido de esclarecimento e uma carta aberta que continuam sem resposta até hoje,.
Nem todos os médicos concordam que o termo violência obstétrica seja ofensivo. Há mesmo quem defenda que esta é a melhor maneira de classificar práticas que já deviam estar ultrapassadas.
Em maio de 2019, a rapper Capicua contou numa crónica na Visão como decorreu o parto do seu filho. Disse que escolheu o Hospital da Póvoa de Varzim e Vila do Conde, por “saber que na Póvoa não só havia abertura para uma abordagem mais ‘humanizada’ como era modus operandi”. Como muitas outras mulheres, também estava com receio do momento que se aproximava.
Fez preparação pré-parto, do qual diz que aprendeu “muito mais sobre sororidade e empoderamento feminino do que sobre puericultura e obstetrícia”. Apesar de ter sido um parto com indução, correu da melhor maneira. E deu direito a uma música produzida em 2020, Parto sem Dor, que canta em conjunto com Sérgio Godinho.
No final da crónica, Capicua deixou uma mensagem. “Tenho mesmo pena de que este tipo de abordagem e acompanhamento não seja norma, não só porque a violência obstétrica é muito mais comum e normalizada do que se pensa, mas porque privar uma mulher do comando do seu próprio parto (a não ser em caso de absoluta necessidade) é retirar-lhe a oportunidade de ter a mais profunda experiência de amor-próprio e o mais sólido reforço de si”, escreveu.
E rematou com “devolver o parto às mulheres é capaz de ser a coisa mais feminista e acertada a fazer. Mas sermos todas tão solidárias no cuidado umas das outras como as parteiras da Póvoa já era um ótimo começo”. Em novembro de 2021, um grupo dedicado à observação e acompanhamento de casos de violência obstétrica reuniu manifestantes junto à porta da Ordem dos Médicos em Lisboa e no Porto. Capicua, apesar de não ter sido vítima, esteve presente e deu voz aos protestos.
Esta empatia que Capicua revelou é aquilo que pode ficar como maior referência do que é possível mudar. “Finalmente estamos a perceber que as mulheres foram maltratadas toda a vida, e só agora é que estão a levantar a voz. Estamos a questionar mais”, diz Inês Meneses. “Hoje em dia as pessoas já perceberam que têm uma arma na mão que é a capacidade de reagir no momento e depois formalizar essa reação em forma de queixa ou depoimento. Não estamos a querer começar uma guerra, estamos a tentar melhorar uma coisa que pode ser melhorada.”
“A saúde reprodutiva não está a ser analisada na sua globalidade. Tem uma componente física e tem uma componente mental", diz Raquel Costa.
É consensual entre os entrevistados que a maior falha nos serviços de obstetrícia é a ausência ou deficiência na comunicação. Quando a médica Cláudia Araújo vê colegas a terem uma atitude menos correta, encara isso como “serem mal educados”. Perguntamos se acha que estão a ser violentos. “Se calhar estão, e isso é terrífico”, responde, “mas há sempre uma maneira de chamar a atenção dos profissionais”, e isso parte essencialmente da estabilidade que se consegue obter nos serviços. “Acima de tudo”, explica, o ideal é criar situações em que os “diretores conseguem trabalhar com profissionais fixos, não tarefeiros, médicos e enfermeiros. Grupos fixos que mantêm a sua formação”.
Paula Prezado foi enfermeira na Maternidade Alfredo da Costa (MAC) durante catorze anos. Viveu de perto um processo de mudança numa unidade de obstetrícia. Quando chegou à MAC anunciava-se o possível fecho das portas. A falta de médicos vinha a agravar-se desde 2006. “Na altura, falava-se que isto se devia à transferência de médicos para o setor privado e o envelhecimento dos profissionais”, explica a enfermeira.
Recorrendo a uma notícia publicada no Diário de Notícias, diz-nos que “dos 45 obstetras da MAC, 21 tinham mais de 50 anos e não tinham qualquer obrigação de fazer banco. Dos vinte partos realizados diariamente e dos mais de cem atendimentos urgentes diários, a maternidade recorria a trabalhos de outras empresas com custos mais elevados do que os que eram pagos aos profissionais da instituição”.
Não viveu uma “realidade problemática”, mas sentiu o que dela restava quando lá chegou. Hoje, considera que o ponto forte da Maternidade é a comunicação. Dos webinars às sessões de esclarecimento, o acompanhamento que todo o corpo clínico quer prestar às “futuras mamãs é o reflexo de uma preocupação que há muito se pedia que fosse tida em conta”, reforça a enfermeira. “O reconhecimento do problema é o primeiro passo para depois serem tomadas medidas e recomendações”, explica.
Quando uma mulher é sujeita a sucessivos 'toques', habitualmente não é informada, é um procedimento que se normalizou, apesar de doloroso | Ilustração de Rafael Medeiros
A edição de fevereiro da revista científica The Lancet inclui a publicação de um estudo sobre esta temática. Foi realizado em 12 países (Itália, Suécia, Noruega, Eslovénia, Portugal, Alemanha, Servia, Roménia, França, Croácia, Luxemburgo e Espanha) e Raquel Costa, investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, deu a sua contribuição.
Apesar do título ser alusivo à pandemia, das quatro dimensões do inquérito realizado para o estudo (entre 2020 e 2021), apenas uma é relativa aos cuidados médicos prestados durante a pandemia. As outras dimensões são transversais a qualquer altura. Mais de 21 mil mulheres responderam de forma anónima à lista de perguntas online (1685 eram portuguesas). O estudo, integrado no projecto Imagine Euro, foi desenvolvido tendo em conta os padrões que a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou em 2016 como fundamentais para considerar que uma instituição presta cuidados de saúde de qualidade.
“Estes dados são úteis se olharmos para eles com uma perspectiva não de criticismo, mas de aprendizagem e desenvolvimento”, diz a psicóloga Raquel Costa.
Psicóloga de formação, com um doutoramento em psicologia clínica e de momento a fazer um pós-doutoramento na área de saúde pública associada aos cuidados em idade pediátrica, Raquel Costa partilhou com o Setenta e Quatro as conclusões de um estudo inédito. “Aquilo que observámos neste estudo é que há uma percentagem de mães que se sente vítima de abusos verbais, emocionais e físicos. Uma em cada cinco mulheres tem esta percepção de que é vítima”, explica, quando referimos os números que o estudo aponta.
Tanto a episiotomia (corte dos tecidos vaginais) como a manobra de Kristeller (pressão na barriga da grávida no momento do parto), atingem percentagens mais elevadas em Portugal do que na média dos países analisados. No caso da episiotomia, a percentagem em Portugal é de 40% (dobro da média europeia (20%). Na manobra de Kristeller, é de 49% em Portugal, em relação a 41% da média europeia. Tratam-se de procedimentos desaconselhados pela OMS, tal como o recurso a partos com instrumentos (fórceps, ventosas).
Nestes números que saltam à vista, não escapa o facto de 63% das mulheres portuguesas afirmarem não ter sido pedida autorização para o procedimento a que foram submetidas. A ausência de comunicação é apenas uma parte daquilo que estas mulheres se queixam. Há também a questão da violência verbal, da falta de empatia e de sensibilidade. Cerca de 40% das mulheres afirmam que não tiveram qualquer tipo de suporte emocional. E 22,7% responderam que sentiram abuso verbal, físico ou emocional durante o parto (a média global foi 12,5%).
“A saúde reprodutiva, do meu ponto de vista, não está a ser analisada na sua globalidade”, diz Raquel Costa. “Tem uma componente física e tem uma componente mental, e esta está a ser negligenciada há muitos anos. Se é um período de vida muito especial, em que as pessoas se sentem mais inseguras, com receios associados à sua saúde e das pessoas que lhes são mais queridas, além das variações hormonais que são parte do processo, é evidente que é um período em que a saúde não devia ser vista apenas como saúde física”, explica a psicóloga.
“Estes dados são úteis se olharmos para eles com uma perspectiva não de criticismo, mas de aprendizagem e desenvolvimento”, diz. É por essa razão que o questionário aos profissionais de saúde desenvolvido posteriormente é tão importante quanto o que foi publicado. Mas, para isso, é preciso disponibilidade das instituições. Por enquanto, é pouca, o que revela a tendência para a proteção de classe.
É consensual entre os entrevistados que a maior falha nos serviços de obstetrícia é a ausência ou deficiência na comunicação.
O inquérito está a circular online, divulgado através do Instituto de Saúde Pública do Porto. Foram também enviados e-mails personalizados para todos os hospitais a pedir a divulgação do estudo. Mas a resposta é parca. Uma das justificações é a necessidade do estudo passar pela comissão de ética de cada instituição, (procedimento bastante burocrático, segundo a investigadora). No entanto, este inquérito já passou pelas comissões de ética do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto e do Centro Colaborador da Organização Mundial de Saúde Materno-Infantil de Trieste, que é o coordenador do estudo.
De uma forma geral, a reação à publicação do estudo na The Lancet não foi das melhores entre os profissionais de saúde. Para o médico Nuno Hipólito, “começa a ser um bocado embaraçoso para a própria Ordem dos Médicos, e para os médicos, continuarem a sentir-se ofendidos por isto, quando os números e estatísticas são uma vergonha. Aquilo que novamente estão a fazer é descredibilizar a ciência que foi produzida e publicada numa das revistas mais famosas do mundo”.
Estes problemas de comunicação são graves, mas, salienta Raquel Costa, possíveis de ser colmatados, principalmente tendo em conta que certas instituições já o fazem. “Os profissionais de saúde têm muita formação do ponto de vista dos procedimentos médicos, mas ficam muito desamparados no que diz respeito às competências de comunicação”, diz. “Quem é que ajuda os profissionais de saúde a comunicar melhor com os pacientes? O que mais assusta as pessoas é o desconhecimento.”
Na verdade, “está tudo na lei, é só uma questão de cumpri-la”, garante-nos uma médica obstetra que prefere não assumir a identidade, por medo de represálias. Em 2019 a lei que se aplicava aos princípios, direitos e deveres na gravidez, no parto e no puerpério foi alterada. Publicada em Diário da República, as modificações, que se revelam unanimemente positivas aos olhos dos profissionais de saúde e médicos entrevistados, têm como objetivo regular especificamente os direitos das mulheres ao longo de todas as etapas a que se submetem.
Apoiando-se nas recomendações da OMS, a lei dita “o direito à informação, ao consentimento informado, ou à recusa informada, e o respeito pelas suas escolhas e preferências; O direito à confidencialidade e à privacidade; O direito a serem tratadas com dignidade e com respeito; O direito de serem bem tratadas e estarem livres de qualquer forma de violência; O direito à igualdade no tratamento que recebem, e a não serem discriminadas; O direito a receber os melhores cuidados de saúde e que estes sejam seguros e apropriados; O direito à liberdade, autonomia e autodeterminação, incluindo o direito a não serem coagidas”.
Em julho de 2021, a ex-deputada não-inscrita Cristina Rodrigues avançou com um projeto-lei, Resolução n.º 181/2021, que criminaliza a prática da violência obstétrica. A punição é a pena de prisão até um ano ou multa, devendo a pena ser agravada em casos específicos, como a mãe ou a criança serem portadoras de deficiência e em casos de pessoas particularmente frágeis ou vulneráveis.
Nesta proposta distinguem-se dois tipos de violência obstétrica: a física e a psicológica. Na primeira trata-se do recurso à força ou a restrições físicas, a indução do parto, a excessiva medicação ou a negação do alívio da dor. Na segunda, o insulto, a utilização de linguagem imprópria ou atentatória da auto-estima da mulher, a desconsideração dos pedidos e preferências da parturiente, a omissão de informação sobre o parto, a proibição da permanência do acompanhante e a ausência de qualquer apoio psicológico em situações de perda gestacional ou aborto como violência obstétrica.
Apesar da OM e alguns representantes das maternidades recorrerem ao Consórcio Português de Dados Obstétricos (CPDO) para determinar estas práticas com taxas diminutas, estes são dados que não correspondem a quase uma centena de unidades e centros hospitalares que registam partos diariamente. O Consórcio avaliou até hoje apenas cerca de uma dúzia de unidades.
Um dos pontos da lei de 2019 indica que a Direção-Geral de Saúde (DGS) deve avaliar e monitorizar a satisfação da mulher grávida relativamente aos cuidados de saúde, durante a assistência na gravidez e no parto. No entanto, essa avaliação ainda não começou. Questionada pelo Setenta e Quatro, a DGS reconhece que o envio dos inquéritos ainda não foi feito. “Dada a realidade pandémica que se verificou desde 2020, a realização do questionário foi atrasada e, consequentemente, os relatórios que ditariam os seus resultados também”, refere, acrescentando que serão terminados e implementados neste mês de março.
A Ordem dos Médicos reagiu ao projecto-lei de Cristina Rodrigues através do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia. A instituição refere, entre outros pontos, que o “termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal”. E que “a comunidade científica e as instituições internacionais separam o conceito de violência obstétrica de outras formas de desrespeito ou insatisfação com os cuidados prestados às grávidas”.
“Se os médicos não sabem adotar um outro modelo de assistência à gravidez e ao parto, criminalizar algumas ou todas as intervenções feitas fará com que fiquem esvaziados na sua competência”, diz Mia Negrão.
Mia Negrão, advogada que nos dias de hoje apenas se dedica a casos de violência obstétrica, refere ao Setenta e Quatro que não concorda com a criminalização. “Criminalizar a violência obstétrica é um bocadinho como criminalizar o racismo, porque é sistémica. Ou seja, quando nós criminalizamos a violência obstétrica, estamos a dizer que agora é crime. Então quem é que vai preso? A DGS vai presa? Pagará uma coima ou uma multa, e depois?”, questiona.
Para si, o combate a estas práticas prende-se no reforço da lei, assumindo um maior poder sancionatório que se aplicará a profissionais de saúde, à Direção Geral de Saúde, instituições, médicos, enfermeiros e a quem cabe definir as normas técnicas que servem de base à atuação dos serviços hospitalares e consequentemente dos profissionais de saúde.
Reconhece ainda que este não é um caminho fácil. “Acredito que não é a via preferencial até em termos de discurso e de diálogo para com os profissionais de saúde, na medida em que aquilo que vai parecer é que estamos a criminalizar atos clínicos”, explica.
Diz ainda que isto lhe parece muito perigoso, porque “se os médicos não sabem adotar um outro modelo de assistência à gravidez e ao parto, criminalizar algumas ou todas as intervenções feitas fará com que fiquem esvaziados na sua competência”.
Maria José Alves, responsável da Unidade de Medicina Materno-Fetal da MAC, não aceita que se ponham as competências dos médicos em causa face a este cenário. “A sala de partos e os procedimentos durante o trabalho de parto mudaram imenso durante estes anos. No entanto, em vez de colocarmos o foco na violência obstétrica e na nossa competência, é mais importante centrarmo-nos no respeito e no consentimento da grávida para os procedimentos necessários e que se tornam necessários na progressão de um trabalho de parto", refere.
Esta médica obstetra acrescenta que a intervenção num parto é algo dramático e que tudo depende das escolhas dos médicos. "A segurança dependerá sempre das nossas escolhas e disso não prescindiremos", reitera.
No ano de 2021 foram abertos cerca de 1320 processos disciplinares na Ordem dos Médicos. De acordo com as poucas declarações que o Setenta e Quatro obteve da Ordem, não são segmentados por causa ou tema. Desde 2013 que as queixas recebidas mostram uma evolução significativa, o número tem vindo a aumentar.
Já a Entidade Reguladora da Saúde (ERS), apesar de não possuir um indicador específico que permita identificar as reclamações recebidas, desde 2020 que passou a usar as valências de “Ginecologia-Obstetrícia” e “Obstetrícia” como um dos critérios de identificação. Nos últimos três anos registaram-se 5188 reclamações; 2529 em 2020, 2547 em 2021 e 112 até fevereiro deste ano (dados recolhidos até dia 24 de fevereiro de 2022).
É também visível nas deliberações do ano passado da ERS denúncias de maus tratos, identificados como “violência obstétrica” ou “falta de acompanhamento e monitorização” no Hospital de Braga, no Centro Hospitalar e Universitário do Algarve (Hospital de Faro), no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, em Aveiro, e no SGHL (Hospital Beatriz Ângelo), em Loures.
Estas são algumas das frases que se tornaram clássicos na linguagem dos profissionais de saúde em obstetrícia | Ilustração de Rafael Medeiros
A questão dos maus tratos, violência obstétrica ou má conduta na gravidez e parto levanta uma celeuma mais abrangente que decorre nos espaços de cuidados médicos. Os pacientes, seja qual for a gravidade da situação, estão muitas vezes vulneráveis a momentos de agressividade ou má-educação por parte de médicos, enfermeiros ou técnicos auxiliares. Sentem-se ameaçados, porque estão numa posição frágil. E estes momentos são mais frequentes do que se possa pensar.
Médicos que não querem falar com familiares e respondem de forma brusca ou não respondem (quando podiam simplesmente pedir para falar noutra altura) são um exemplo dessa postura. Ausência de relatórios quando requisitados é outro exemplo. Quando se diz que os médicos, enfermeiros ou auxiliares são tão humanos como as pessoas que trabalham noutros locais, temos antes de mais de nos lembrar que um hospital não é como os outros locais. Não é como entrar num autocarro, ou nas Finanças. Depender demasiado do bom senso ou bondade é a tal lotaria.
O ambiente de cada serviço reflete-se no tratamento dado aos doentes. São vários os elementos que podem desestabilizar uma unidade hospitalar.
As razões desta dinâmica pode ter diferentes explicações, e muda de local para local e de pessoa para pessoa. Atualmente, pode estar relacionada com um cansaço generalizado e o excesso de horas destes profissionais, devido ao contexto de pandemia de covid-19. Está também, em grande parte, ligado ao facto de as equipas muitas vezes não serem estáveis, de se recorrer a tarefeiros (médicos ou enfermeiros) sem vínculos ao hospital ou à clínica.
Há também a questão cultural, a hierarquia instalada e o estatuto. O ambiente de cada serviço reflete-se no tratamento dado aos doentes. São vários os elementos que podem desestabilizar uma unidade hospitalar. Este é um tema a debater ou a legislar, mas podemos começar por admitir que ele existe e causa efeitos negativos. De que forma se pode uniformizar um tratamento geral mais humano? Adoptar ações junto dos profissionais de saúde, criar regras ou legislar? Ajudar estes profissionais a comunicar?
O parto é uma das raras ocasiões em que uma mulher se dirige a um hospital sem estar doente. As grávidas que tenham um filho pela primeira vez entram com medo mas ao mesmo tempo com um motivo positivo para estar ali – uma esperança, uma alegria, um amor que vai brotar. Muitas vezes esse entusiasmo morre às primeiras palavras que ouvem ou com as primeiras atitudes a que são sujeitas. Outras vezes causa traumas irreparáveis, como vimos nas histórias contadas aqui.
É um ciclo de violência, seja física ou verbal, que funciona com o perpetuar de uma conduta que foi normalizada. Daí ouvir-se muitas vezes que antigamente era pior. Era, sem dúvida. Mas continua a acontecer.
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