| Ilustração de Rafael Medeiros
No decorrer da Investigação74 sobre violência obstétrica, surgiram várias histórias de maus tratos. Deixamos aqui algumas, para que a realidade tenha destaque na primeira pessoa. Por muito que se debata o tema, só lendo certos episódios tomamos consciência do que se passa.
As histórias que aqui partilhamos parecem de outro tempo. No entanto, algumas são bastante atuais. São experiências traumáticas de maus tratos no momento do parto ou na perda de um feto. Violência verbal ou física, procedimentos desaconselhados pela Organização Mundial de Saúde que ainda são frequentes em Portugal e uma cultura de superioridade que deixa as mães (e qualquer paciente) numa posição vulnerável.
Seria justo termos aqui uma lista de relatos de partos que correram bem. Sim, apesar de frequentes, os episódios mais traumáticos são uma excepção. Mas esta investigação é sobretudo sobre uma conduta desumana que se normalizou. Muitas vezes nem os profissionais de saúde entendem o impacto que está a ter a sua forma de agir.
Além destes relatos, o Setenta e Quatro sugere a leitura de histórias no site Sombras do Parto, desenvolvido pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto.
O meu nome é Helena Coutinho e tenho 22 anos. Sou diabética tipo 1 desde os meus dez anos, e como tal, não poderia passar das 39 semanas de gestação. Dia 12 de novembro de 2021 tive aquela que ia ser a minha última consulta, pois já estava com 38 semanas e 4 dias de gestação. Dirigi-me ao hospital por volta das 11h40 e pouco depois fui chamada para fazer o CTG, para verificar como estavam os batimentos cardíacos do meu filho. Minutos depois de me serem colocadas as ‘fitas’, a enfermeira percebeu que não havia qualquer sinal de batimentos, achando assim que ele estava numa posição que poderia estar a complicar a detecção dos mesmos. Muito rápido passei para uma sala onde me fizeram uma ecografia e me informaram que o meu filho não tinha batimentos cardíacos e ia ser declarada morte fetal. Ninguém sabia explicar o porquê, estava tudo nos conformes e dentro do normal.
A notícia foi-me dada por uma médica, pouco ou nada interessada com os meus sentimentos, porque depois disso mandaram-me para uma sala onde fiquei completamente sozinha, sem qualquer tipo de supervisão ou apoio psicológico. Foi-me colocado um cateter no pulso e fiz o teste à covid-19, tal como o meu namorado, que só esteve comigo três horas depois de eu saber a notícia. Entretanto, fui chamada por uma médica a um consultório onde me foi induzido o parto com misoprostol intravaginal.
Passei duas noites a ouvir choros de recém-nascidos, sabendo que nenhum deles era o meu.
Dei entrada na sala de partos às 14h30 e eram 17h quando vi pela primeira vez uma médica que voltou a colocar-me misoprostol intravaginal e me rebentou as águas, para acelerar o trabalho de parto. Por volta das 19h30 já não aguentava com as dores das contrações e pedi para me darem a epidural. Veio uma anestesista que me deu a epidural três vezes: da primeira vez ficou mal colocada e estava a tocar nas vértebras e por isso teve que retirar; da segunda vez foi dada, mas passado 30 minutos continuava com imensas dores então partiram do pressuposto que tinha sido mal aplicada. Da terceira e última vez, a anestesista deu-me simplesmente um bólus de epidural para durar algum tempo, ficando assim eu sem o cateter por onde é possível receber mais se for necessário.
Já eram 21h quando comecei a sentir novamente as dores horríveis das contrações, toquei à campainha mais de cinco vezes para chamar alguém para me ajudar, sempre sem sucesso. O meu namorado abriu a porta da sala de partos e chamou alguém, vindo assim uma enfermeira que se sentou em frente à cama e me disse para começar a fazer força. Eu estava a chorar, com dores obviamente, mas de tristeza ao saber que ia dar à luz o meu primeiro filho, e que este infelizmente estava sem vida. A mesma disse-me algo que nunca vou ser capaz de esquecer, nem perdoar: ‘Quanto mais chorar, pior é para si, o problema é seu’, tendo-se assim levantado e dito a uma médica de serviço: ‘Queres tentar? Boa sorte’.
O parto em si durou uma hora e meia. Uma hora e meia em que fui literalmente obrigada a estar deitada e com as pernas presas ao alto, sem me conseguir mexer. Pedi por favor, tantas vezes que me dói o coração só de pensar, para me ajudarem com as dores e ninguém atendeu ao meu pedido. Nunca ninguém me pediu consentimento para as coisas que me fizeram. Nunca me pediram autorização para a episiotomia que resultou em seis pontos, interiores e exteriores. Não me pediram autorização para fazerem a manobra de Kristeller, que me foi feita durante quase 40 minutos. Pediram-me, sim, para parar de chorar e de ser dramática, que ‘aquilo’ não custava assim tanto.
Passei para uma sala onde me fizeram uma ecografia e me informaram que o meu filho não tinha batimentos cardíacos e ia ser declarada morte fetal.
O Afonso ‘nasceu’, porque para mim foi o que aconteceu, com ou sem vida, às 22h30 de 12 de novembro de 2021, com 3,840kg e 52cm. No momento em que me perguntaram se eu o queria ver, eu aceitei e assim aconteceu, vi-o, toquei-lhe, mas o meu momento foi tão respeitado que o deixaram estar uns meros cinco minutos connosco. Durante todo este tempo, nunca vi, nem esteve presente connosco, nenhum tipo de profissional ligado à psicologia, que nos podia ter ajudado a entender e aceitar melhor o que estava a acontecer.
Sou sincera, estava fora de mim, apática e sem reação, porque ao vê-lo tudo me parecia um sonho, não acreditava no que realmente estava a acontecer, muito menos tinha noção de que aquela ia ser a primeira e a última vez que via o meu filho.
Estive até às 2h da manhã na sala de partos, e é importante referir, mais uma vez, que sou diabética, e que durante aquele tempo todo, das 12h às 3h da manhã, nunca ninguém me perguntou se eu queria comer, beber água ou até ir à casa de banho. Fui passada para o internamento, onde felizmente fiquei num quarto sozinha, mas onde passei duas noites a ouvir choros de recém-nascidos, sabendo que nenhum deles era o meu.
Foi no dia em que tive alta, dia 14 de novembro, que descobri que o meu filho tinha uma distócia de ombros e o parto tinha sido feito com a ajuda de ventosas. Descobri isto ao ler a nota de alta, porque até ali nunca ninguém me tinha informado de nada.
Acabei por vir para casa sem ter visto qualquer psicólogo, tendo sido chamada para uma consulta no mesmo hospital quase dois meses depois do sucedido. Tendo em conta que eu não poderia ultrapassar as 39 semanas de gestação, que o meu filho estava com peso e tamanho mais do que ideal, completamente formado e que uma distócia de ombros pode ser visível através de ecografias e que, mesmo assim, ninguém foi capaz de me induzir o parto dias mais cedo, tendo assim evitado todo este problema, pergunto-me todos os dias: ‘e se tivesse sido diferente?’
Em julho de 2021, na consulta das 39 semanas no Hospital de Faro, fui vista por uma médica e uma enfermeira que explicaram os sinais de alerta para o parto, e questionei a quem enviar o plano de parto [que já levava comigo]. A enfermeira agarrou-me o papel da mão e pôs-se a ler, em tom de ironia, e literalmente a gozar comigo por todas as decisões que lá tinha. Disse que "vocês lêem tudo na Internet mas não sabem nada. Nós fazemos o nosso trabalho e tomamos as decisões, se não quiser é melhor ir parir noutro lado”.
Na altura do parto, foi negada a presença do pai, mesmo com teste negativo [por causa da covid-19], até a hora da expulsão. Foram três dias sozinha no hospital, sem ninguém. No momento do parto informei a enfermeira parteira que não queria uma episiotomia, e a mesma discutiu comigo que era necessário, porque ‘a sua bebé é muito grande’. Insisti que não, e respondeu-me ‘prontos, você é que vai sofrer’. Dois dias depois, e com muitas dores, fui vista pela obstetra que confirmou não só a episiotomia, mas também uma infeção nos pontos. Durante a expulsão, a enfermeira não gostou de como estava a fazer força e disse ‘então engordou 20kg na gravidez e não sabe fazer força? A força é só pra comer?’.
A primeira situação foi numa interrupção da gravidez, devido a um higroma quístico, no segundo trimestre. Todo o acompanhamento até chegar a essa situação foi super humanizado no Hospital de Cascais. Durante o parto em si, senti que por ser a situação que era, as pessoas evitavam-me. Não há nenhuma formação específica para atender mulheres nestas circunstâncias, não sabem lidar.
Ouvi uma enfermeira a dizer ‘onde é que eu ponho isto?’. Isto depois de eu dizer que gostava de ver, e ela responder que era melhor não. A seguir fiquei cinco horas sem ninguém ir ao quarto, sozinha. Chamei, fui ao corredor, queria ir à casa-de-banho. Passou uma auxiliar que começou a correr, fugiu. Por acaso depois passou um segurança que foi chamar um médico, que tentou apaziguar-me, eu estava super alterada. Quando fui para cima, fui para uma ala onde só havia bebés recém-nascidos a chorar.
Para uma pessoa que passou por uma perda não é melhor coisa. Tentei abstrair-me. Entretanto aparecem-me com uma série de papéis sobre autorizações de autópsia e entregar o corpo à medicina… Podiam ter esperado por um acompanhante, ou alguém para falar, ou pedir para um psicólogo falar comigo antes. Os médicos foram sempre muito bruscos, e no processo de indução vinham fazer o toque, várias pessoas, nem consigo contabilizar. Algumas bastante agressivas, a falar comigo como se o processo não avançasse fosse culpa minha. Senti isto principalmente da parte dos médicos, dos enfermeiros, senti que estavam perdidos, as únicas pessoas que me apoiaram ali no meio eram as auxiliares. Existe uma lacuna enorme na comunicação.
As únicas pessoas que me apoiaram ali no meio eram as auxiliares. Existe uma lacuna enorme na comunicação.
Na gravidez seguinte, do meu primeiro filho, há oito anos, já fui acompanhada por uma parteira com quem tinha mais proximidade e arrisquei parir na mesma num hospital público. Percebi depois que também ela ainda aceitava procedimentos muito ultrapassados, como a episiotomia e a manobra de Kristeller. Conheço-a, sei que é uma excelente parteira e super boa pessoa, grande defensora da liberdade de movimentos, mas que ainda havia alguns resquícios da educação enquanto profissional de saúde que aceitavam certos procedimentos.
Quando fui para esse parto, logo na admissão aparece uma médica super hostil a perguntar o que estava ali a fazer. Fiquei logo tensa. Eu disse que era porque me tinham rebentado as águas. Mostro o plano de parto, ela mete-o num canto da mesa e diz-me ‘mas você acha que tem literacia para fazer um plano de parto?’. Eu disse que não queria discutir, só queria ser admitida. Ao fundo vejo uma enfermeira, muito discreta, a pedir-me para ter calma e a fazer sinal que ia buscar o plano de parto. A médica continuava a falar, dizia coisas como ‘isto é como parir como as pretas lá em África', ‘era só o que mais faltava, virem aqui dizer como é que se faz o meu trabalho’. Eu olhava para baixo, não queria confusões, deixei de responder. A enfermeira veio ter comigo, pôs o plano de parto na bata e disse à médica que me levava para fazer a admissão. No caminho diz-me: ‘eu vi que tens um plano de parto, não te preocupes, que ele está aqui comigo’.
Entretanto, a minha amiga parteira ligou-me e eu fiquei descansada. Fiquei sozinha, não deixaram o meu acompanhante entrar, e a tal médica não queria que eu levasse o telemóvel comigo, mas eu insisti. Quando eu estava no quarto veio outra médica ver como eu estava, olha para o telemóvel e diz-me que não o posso ter ali dentro. Eu respondi que não prescindia desse meu direito. Mandou-me deitar para me observar, e ela foi muito bruta, magoou-me, eu soprei com a dor e ela dá-me uma chapada na cara. Eu empurrei-a com o pé e pedi para ela sair, que não a queria mais naquele quarto. Depois o meu companheiro conseguiu entrar, porque forçou a entrada. Nós temos o direito de ter um acompanhante sempre.
Começaram a fazer-me coisas sem eu perceber o quê. A enfermeira que tinha o plano de parto de vez em quando entrava e explicava o que se estava a passar, que tinham posto oxitocina. A mim só tinham dito que iam pôr um soro para ajudar. A indução tem de ser consentida. Cheguei a um ponto em que pedi a epidural. A dada altura uma enfermeira veio dizer-me que tinha de puxar o colo do útero, porque daqui a pouco começavam a pressionar-me para cesariana. Puxar o colo do útero é um procedimento super doloroso. Apesar disso eu estava confiante. Iam-me dando mais oxitocina e outras coisas.
Dizem-nos sempre que estas coisas às vezes podem correr mal. Acabamos por normalizar uma violência extrema.
Entra uma enfermeira que e pergunta: ‘porque é que tem isto tudo aqui?’. Eu disse que não sabia, ela respondeu que não podia desfazer o que já tinham feito, mas que ia fazer os possíveis para eu ter um parto o mais natural possível, e começou a desligar algumas coisas, a tentar deixar-me mais à vontade e a dizer que se eu precisasse podia chamar pela campainha. Foi a primeira pessoa que me disse isto, já estava lá há mais de dez horas. A partir daí comecei a ficar mais relaxada e o parto começou realmente a desenvolver-se. Na altura do expulsivo eu chamei-a, vi que ela estava com ar preocupado, chamou a médica para ajudar o bebé a nascer, que me disse que ia fazer um corte ‘para ser mais fácil’. Ele nasceu com recurso a uma ventosa, veio para o meu colo. A médica disse-me que estava a quinze minutos de uma cesariana, porque o bebé já estava a entrar em sofrimento. Mais tarde percebi que as induções aumentam o risco de sofrimento fetal.
Depois destas duas experiências comecei a pensar em ter um parto em casa. Não compareci à indução que estava marcada no meu filho mais novo, às 41 semanas, e três dias depois ele nasceu, espontaneamente num parto que durou trinta minutos, no mesmo hospital, de Cascais. Eu não sabia que estava em trabalho de parto, porque a minha expectativa de dor e sofrimento era maior do que estava a acontecer. Estava tranquila, não pensava que estava assim tão perto, depois é que cheguei a uma fase em que senti a barriga bastante rija, e que o bebé não estava na mesma posição. Quando cheguei ao hospital, um enfermeiro pegou em mim e foi para o bloco, porque entretanto as águas rebentaram. Ele percebeu que os quatro centímetros de dilatação eram mais, e enquanto uma médica me fazia perguntas, ele viu que estava iminente e levou-me. Ainda me disse que o meu plano de parto ia ser respeitado, não me fez comentários depreciativos. Foi tudo mais sereno. Pensei: porque é que não são todos assim?
Dizem-nos sempre que estas coisas às vezes podem correr mal. Acabamos por normalizar uma violência extrema. O que sinto é que todo o sistema está montado como se fosse um hospital de campanha, um hospital de guerra, em que uma pessoa entra e não pode colocar questões. A maior violência é o desempoderamento da mulher, em que nos tiram qualquer pista sobre o que nos está a ser feito.
| Ilustração de Rafael Medeiros
No meu caso foi uma situação pré-parto, numa consulta de acompanhamento, em que a médica, ao ver o meu estado exausto e privada de sono às 36 semanas, considerou que seria apropriado tecer comentários sobre a minha incapacidade de ser mãe quando pedi uma baixa médica. Baixa essa que a médica passou por motivos psicológicos, não sem antes dizer atrocidades como ‘se está cansada ponha férias’, ‘você não sabe o que é estar cansada’, ‘e quando tiver um bebé que não a deixa dormir, também vai pedir baixa?’.
Fiz queixa à ordem dos médicos a 25/10/2021 e foi encaminhada para conselho disciplinar. Até ao momento sem desenvolvimentos. O hospital respondeu-me que acusar a médica de violência obstétrica podia ter consequências para mim, com um processo por difamação e que não houve qualquer intenção da médica em desconsiderar o meu estado, classificando os comentários proferidos como ‘naturais’
Tive a minha primeira filha em julho de 2020. No dia em que fomos para o hospital estava com medo, medo por ter o parto sozinha sem o pai presente, juntamente com todos os medos que um parto traz. Cheguei ao hospital por volta da 1h30, a enfermeira muito ‘educadamente’ perguntou-me: ‘mas que raio é que a senhora vem fazer ao hospital a esta hora? Não sabia esperar até de manhã?’ Logo aí congelei… fiquei sem reação, sem resposta. Disse-lhe apenas que estava com contrações com menos de 10 minutos entre si... fez-me um toque, mandou-me aguardar, sem nunca explicar nada do que estava a acontecer. Entretanto, fizemos os testes para a covid-19, eu e o meu namorado, ele teve de aguardar pelo resultado enquanto eu subi logo para o quarto.. com medo!
Chegou o anestesista para a epidural e logo a seguir uma enfermeira estagiária, onde sem me perguntar nada, sem me pedir opinião e explicar o que iria fazer, colocou-me uma algália. Senti imensa dor ao ser colocada e a dor persistiu até ao momento da expulsão, em que nem os médicos estavam a conseguir retirá-la. Sempre que me queixava que a algália me estava a dar dor, ignoravam, não me ouviam. Fiquei sozinha no quarto até a minha filha nascer às 7h59.
Ninguém me explicou nada do que estava a acontecer. Nada. A médica que estava a fazer o parto usou ventosas e eu só soube quando vi a cabeça da minha bebé e perguntei o que tinha acontecido.
Por volta das 7h, o aparelho que media os batimentos da minha filha, começava a apitar sempre que vinha uma contração. Assustada com o que estava a acontecer, chamei a enfermeira para me explicar o porquê dos batimentos dela caírem tanto. Foi-me dito ‘fique quieta, vamos mudar o turno, tem de aguentar’ e eu mais uma vez, com medo, não falei, congelei. Rezava apenas para correr tudo bem e a minha filha nascer rápido.
Por volta das 7h30 uma enfermeira veio fazer um toque e disse ‘epá, ela já tem a cabeça de fora e você não diz nada’. Foi um sentimento de impotência, senti-me fraca, sozinha, triste - o meu namorado ainda aguardava na rua, pelo resultado do teste covid. Nisto, entraram imensos enfermeiros, uma médica que me fez o parto e um médico.
Este médico homem, durante todo o momento de expulsão, colocou-se em cima da minha barriga a fazer imensa força e dizia-me ‘então mas você não faz força? Está a brincar? Faça força.’ A verdade é que eu estava sem força, só queria desaparecer. Ninguém me explicou nada do que estava a acontecer. Nada. A médica que estava a fazer o parto usou ventosas e eu só soube quando vi a cabeça da minha bebé e perguntei o que tinha acontecido. Fez-me também episiotomia e quando lhe perguntei quantos pontos tinha ela respondeu: ‘mas o que é que saber os pontos vai ajudar? Foram uns quantos, pronto’.
Abril 2020, Hospital de Leiria. Dei entrada com pouca dilatação, durante o toque pedi que não me fizessem o descolamento de membranas, no entanto fizeram-no na mesma, sem dizer uma palavra, causando imensa dor e sangramento. Ainda me chamaram de gorda. Passadas umas horas, passei para o bloco de partos, onde fui deixada completamente sozinha, sem autorização de acompanhante, e lá estive abandonada durante outras horas. Apareciam para me fazer o toque, nada diziam, várias pessoas diferentes. Chamei alguém pois estava com dores, a enfermeira entra no quarto, grita ‘cale-se’ e sai. Chega uma altura em que a dor ficou muito intensa, chamei alguém outra vez, deram-me indicações para fazer força e saíram.
Aparece outra médica e dá-me um murro na cara dizendo que tenho de estar calada (fiquei com a cara marcada).
Ao fazer força, o cateter do soro que tinha rebentou e chamei a enfermeira que começou a ralhar comigo, e começou a dar murros nos braços dizendo que a culpa foi minha porque agora tinha de encontrar a veia de novo. Os braços ficaram negros e doridos durante dias. Começaram a pressionar a minha barriga. Pedi sacos, pois estava a sentir-me mal e queria vomitar, ao qual me recusaram e tive de vomitar onde calhava. Elas diziam que não podia fazer barulho, assim obedeci. Começaram a escorrer lágrimas dos meus olhos, uma enfermeira viu e chamou uma médica e disse ‘venha cá ver esta chorona, nem tem estofo para ser mãe’.
A médica veio e disse ‘ah está a chorar? Então agora é que vai chorar com razão’ e fez-me um toque horrivelmente doloroso mesmo comigo a pedir que parasse. Voltei a ficar sozinha, o parto foi-se dando, continuava a fazer força. Até que comecei a ficar com dificuldade respiratória e a sentir uma pressão do lado esquerdo. Chamei e ninguém veio, então tive de gritar. Aparece outra médica e dá-me um murro na cara dizendo que tenho de estar calada (fiquei com a cara marcada). De seguida levam-me para cesariana de urgência, com anestesia geral. Deram leite adaptado ao meu filho sem o meu conhecimento e só cinco horas depois dele nascer é que o deixaram mamar.
| Ilustração de Rafael Medeiros
Durante a gravidez fui operada duas vezes, devido a um problema no rim, nas quais não tive o melhor pós-operatório. Às 36 semanas as águas rebentaram, mas as contrações não apareciam. Foram feitas várias tentativas de indução, onde fui colocada em risco, juntamente com o bebé. Durante esse tempo, fui sendo observada, para ver a dilatação. Uma das médicas foi insensível ao ponto de me fazer descolamento da placenta (sem me avisar) e dizer que eu não sabia o que era dor, pois ela já tinha parido dois ou três filhos.
Na hora do parto, tinha três médicos e três enfermeiros a assistir, onde duas das médicas discutiam de forma ‘acesa’ por causa de horários e funções. Não ligaram a nada do que estava a sentir. Após o bebé nascer, andei um mês de fralda, não sentia a bexiga e disseram ser normal. Mais tarde, falaram que podia ser cancro. Após um mês, viram que o duplo J [colocado na gravidez] tinha saído do sítio. Colocaram novamente, sem qualquer tipo de anestesia e piedade. Não fui respeitada e tenho um trauma ao ponto de não querer mais filhos.
Fui vítima de violência obstétrica no parto da minha primeira filha. Induziram o parto e, sem o meu consentimento, fizeram.me o toque maldoso, o descolamento de membranas, mesmo eu e a bebé estando estáveis e sem risco. O procedimento foi intensamente doloroso, foi como uma sessão de tortura para mim.
Feito o toque maldoso, eu comecei a sentir muitas contrações dolorosas e não ritmadas e pedi anestesia. Enquanto estava fazendo o procedimento da anestesia, a profissional me disse que tinha certeza que a tatuagem que tenho nas costas, uma flôr, tinha sido mais dolorosa do que as contrações que estava a sentir. Uma outra profissional disse-me ‘mas tu não és brasileira? O seu povo não se diz tão alegre? Onde está sua alegria agora?’ O todo tempo os médicos zombavam do nosso sotaque.
A anestesia não teve efeito e, mesmo eu dizendo que não havia sentido alívio nenhum da dor, os profissionais duvidavam de mim e questionavam o porquê de ainda estar a gemer de dor se já estava anestesiada. Depois de muita dúvida refizeram o procedimento e só então eu senti um pouco de alívio. Perdi as contas de quantas pessoas me fizeram toques e de quantas pessoas ameaçaram o meu marido de ter que sair da sala por parecer muito apreensivo apenas por estar sempre do meu lado, segurando minha mão.
Eu comecei a sentir muita falta de ar e, mais uma vez, não acreditaram em mim e diziam que eu não havia aprendido a respiração no curso de preparação para o parto, por isso não estava conseguindo respirar. Um certo momento pediram para que eu começasse a fazer força para a bebé nascer e eu fiz, mas a médica brigava comigo dizendo que estava fazendo errado, que era para eu parar e começar de novo. E então, sem meu consentimento, fizeram episiotomia, uso de ventosa, manobra de Kristeller e arrancaram minha filha de dentro de mim. O momento do nascimento da minha filha foi apenas um alívio de eu e ela termos sobrevivido e aquela tortura ter acabado.
Uma outra profissional disse-me ‘mas tu não és brasileira? O seu povo não se diz tão alegre? Onde está sua alegria agora?’
A médica ainda se esqueceu de uma compressa dentro de mim que só foi lembrada por outra enfermeira tempos depois. Minha filha ficou nove dias internada com infecção e quando perguntei o porquê da infecção me disseram que era porque ela ficou muito tempo dentro de mim com a bolsa rota. Eu só conseguia pensar que afinal foram eles que romperam totalmente minha bolsa, a culpa de estarmos ali era deles.
Eu fiquei com um roxo na barriga de tanto me apertarem no mesmo local e senti dores para urinar um mês após o parto. Fiz reclamação junto a ERS e a resposta que tive do hospital, quanto à denúncia de maus tratos e xenofobia, foi de que a equipe que acompanhou o parto era experiente e competente, que tudo havia sido feito dentro dos protocolos e que tanto eu quanto a bebé estávamos saudáveis. A OMS diz que ‘é fundamental garantir que o parto não só seja seguro, como uma experiência positiva para as mulheres e as suas famílias.’ Certamente, para mim não foi’.
Quase três anos depois, ainda não consegui processar o que aconteceu durante o meu primeiro parto. Estou grávida novamente e tento agora ler e aprender o máximo possível sobre o que, em ambiente hospitalar, é ou não comum acontecer, sobre o que é ou não humano... Isto para assegurar que a próxima experiência seja memorável e não traumática.
A falta de humanização é a melhor forma de caracterizar este dia. Desde que entrei no hospital o desconforto foi patente, imediatamente pela falta de um ‘bom dia’ ou mesmo troca de olhares por parte da enfermeira que me indicou que me despisse e vestisse a bata.
Colocaram-me a soro e informaram que estavam a dar medicação para acelerar o parto. Não explicaram porquê nem me pediram consentimento. Na minha ingenuidade e falta de informação assumi que faziam o que era melhor para nós. Esta medicação fez com que as contrações ficassem muito próximas mas sem grande efeito na dilatação.
O que fora até ali gerido calmamente tornou-se intolerável e pedi a epidural por volta da hora de almoço. Nos dois momentos posteriores em que pedi que chamassem o anestesista por estar a passar o efeito, esperei 1h30 e 1h para me ser dado um reforço. O próprio anestesista levantou a voz às enfermeiras porque só o tinham chamado cinco minutos antes. Neste momento foi óbvio que estávamos à mercê dos médicos e enfermeiros, que a minha dor e receio do que estava a acontecer lhes era indiferente.
Durante o trabalho de parto outro médico colocou-se, sem aviso, em cima de mim a fazer força sobre a minha barriga e a bebé. Esta ação provocou uma dor tão grande que gritei e implorei para que parasse, já em lágrimas.
O coração da bebé estava acelerado há horas e, apesar de ter questionado, não me deram uma única possível explicação para tal. A certa altura expressei que não me sentia bem e uma enfermeira, não se aproximando de mim, respondeu apenas que era normal. Na mudança de turno uma nova enfermeira observou-me e deu conta que eu tinha febre. Fui medicada para a febre mas o estrago estava feito, senti-me absolutamente insegura com a equipa que me calhou.
Ao fim da tarde, encaminharam-nos para a sala de partos. Não me recordo ao certo de quantas pessoas estavam presentes mas seriam no mínimo sete. Fora a médica que fez o parto e a enfermeira que estava ao meu lado, ninguém se apresentou. Soube depois que duas eram estagiárias, uma presença a que não me iria opor mas que gostaria de ter consentido antes.
Durante o trabalho de parto outro médico colocou-se, sem aviso, em cima de mim a fazer força sobre a minha barriga e a bebé. Esta ação provocou uma dor tão grande que gritei e implorei para que parasse, já em lágrimas. Não sei se foi pior a dor física ou a psicológica, a mazela que ficou de ter alguém a fazer pressão sobre mim e a minha filha.
A médica que estava a fazer o parto pediu ao médico que parasse, pelo que não o repetiu. Só percebi anos depois que esta manobra é desaconselhada pela OMS mas que muitos continuam a fazê-la, e que depois não surge nos relatórios. Também me foi feita episiotomia sem questionarem ou explicarem o porquê da sua suposta necessidade. Após mais algum esforço meu, nasceu então a bebé, sem recurso a fórceps ou ventosas.
No meu processo clínico não há referência à manobra de Kristeller, mas há referência à presença de mecónio no líquido amniótico desde cedo, que nunca me foi comunicado. Por essa razão, e quem sabe tantas outras num parto não humanizado, a bebé nasceu inanimada. Foi reanimada e após uns curtos segundos no meu peito foi colocada na incubadora. Mais tarde trouxeram-na e mamou, mas a amamentação foi muito afetada pelo estado emocional em que fiquei após o parto e talvez por não ter tido o contacto pele a pele apropriado.
A dada altura, depois de muitas horas, estava cheia de dores, a sentir-me muito fraca. Perguntei quando iam fazer a cesariana, estava ansiosa. A resposta foi ‘ah, é daquelas que vai ao Google!’. Eu só perguntei… Depois comecei a sentir-me a ir. Quando fui para a cesariana, comecei a tremer com espasmos, a enfermeira dizia-me ‘pare lá com isso’. Perdi os sentidos. Tive de levar uma transfusão de sangue. Demoraram cerca de um ano a dar-me o relatório do parto, e só deram porque contactei o médico através do Linkedin.
Dei entrada nas urgências da Maternidade Alfredo da Costa às 19h15 no dia 23 de março de 2021. Até por volta das cinco horas da manhã correu tudo lindamente, a enfermeira que me acompanhou durante o trabalho de parto foi excelente profissional, deu-me liberdade de movimentos, andar em pé, dançar, ouvir música. Durante as contrações adquiri variadíssimas posições na cama, em cadeiras, com a bola, etc.
O problema começou quando por duas vezes apareceram duas médicas para ver como estava a evoluir o parto, e comecei a ouvir frases como, ‘ela não consegue, já está cansada’. Quando me diziam para fazer força, e eu comecei a sentir-me incomodada com a pressão delas e com aquela conversa, eu não me sentia exausta, só me sentia observada e comecei a retrair-me, disse às médicas que conseguia com calma, ao que a médica mais experiente respondeu ‘pois, mas nós temos mais que fazer, não temos o dia todo e a senhora enfermeira também tem de ir embora daqui a pouco’.
Reparei que a enfermeira que me estava a acompanhar também estava a ser pressionada de alguma forma, pois foi chamada ao exterior da sala de partos duas vezes e quando regressava, dizia: ‘Magda, eu quero muito fazer-te o parto por isso tens de fazer força, porque eles querem levar-te para o bloco’. Eu não sabia o que isso significava, senão talvez tivesse conseguido fazer diferente, para evitar aquilo. Em nenhuma altura ouvi que a minha bebé estava em perigo ou em sofrimento, cheguei a tocar na cabeça dela ainda na sala de partos, ou seja, tenho a consciência, não sei se errada, que se não tivesse existido pressão em mim e na enfermeira para o nascimento acontecer, eu não teria tido necessidade de ir para o bloco.
Fui levada para o bloco com a informação de que iria ter auxílio de ventosa para a minha bebé nascer, a enfermeira acompanhou e esteve sempre ao meu lado mas não conseguiu impedir ao que fui sujeita. Já no bloco eu estava muito assustada, prenderam-me as pernas naqueles postes levantados [pernas em 90°] ao que eu pedi para soltarem e negaram.
A partir daí nada me foi questionado nem nenhum pedido de autorização fizeram. Nas contrações seguintes disseram para fazer força para tentar mais uma vez a expulsão, mas naquela posição horrível ainda menos consegui fazer força bem direcionada. Comecei então a sentir um ardor horrível, nem estava a perceber o que seria, gritei e questionei o que me estavam a fazer, ninguém respondeu, as minhas pernas mesmo presas começaram a tremer, até que uma perna se soltou e uma enfermeira agarrou-me a perna. Senti o frio dos ferros e a dor horrível continuava. A enfermeira que me tinha acompanhado da sala de parto deu-me mais duas doses de anestesia no cateter da epidural, mas não deu tempo de fazer efeito. Agarrei as mãos dela, apertava-a e gritava ‘o que é que elas [as médicas] me estão a fazer que me estão a magoar tanto?’ Só me diziam ‘a sua filha tem de nascer’.
Às 6:09 nasceu a minha filha, com a marca de fórceps na cara. Depois percebi que a dor horrível tinha sido a episiotomia, e que a ventosa passou a fórceps. Não fui consultada nem informada. Ainda não me recuperei psicologicamente do parto, que estava a ser maravilhoso até à entrada das duas médicas na sala de parto. Tinham um timing a cumprir e no qual não estava incluído o respeito por mim e pelo meu timing e da minha bebé. Muitas vezes penso no que podia ter feito para evitar aquilo tudo, mas será que esse papel não é o dos profissionais de saúde, garantir que tudo corre bem e fazer com que nos sintamos seguras?’.
Tive um parto bastante traumático, intervencionado, instrumentalizado, com violência obstétrica, física e psicológica, em agosto de 2017, no Bloco de Partos do Hospital de Leiria. Durante o trabalho de parto, devido às dores, pedi anestesia epidural. Como esta foi administrada de forma contínua, e não em bólus, tive de estar sempre na cama, não me pude levantar ou movimentar fora da cama.
Sei hoje que as posições verticais e o facto de a mulher se movimentar durante o trabalho de parto ajudam a que o parto seja mais rápido e menos doloroso. Houve uma enfermeira que me disse: ‘você foi a mulher que pediu mais reforços esta noite’ [reforços da analgesia epidural]. No momento expulsivo, ‘espremeram-me toda’. Fizeram-me manobra de Kristeller, uma funcionária pediu ajuda ao meu companheiro para também a fazer. Fizeram-me episiotomia. Usaram ventosa. Não houve pele com pele logo a seguir ao parto. Felizmente houve amamentação na primeira hora de vida.
Foi um parto com pouco consentimento realmente informado. Bastante traumático. Foi o meu primeiro parto. Informei-me muito no pós com livros, doulas e uma enfermeira parteira que defende o parto natural, respeitado, humanizado. Pari o meu segundo filho em 2021, no Hospital da Póvoa de Varzim. Com respeito. Que deixou boas memórias.
Fui internada pouco depois das 36 semanas devido a complicações no crescimento do bebé. Impediram-me de ir a casa porque a indução seria urgente, mas só a fizeram no dia seguinte. Nas primeiras horas apanhei uma médica que, francamente, era jurássica. Depois de uma enfermeira indicar que poderia levar epidural, pois estava já há mais de 16h em indução, a médica desvalorizou totalmente a sua opinião dizendo que ‘as enfermeiras não decidem, quem decide sou eu’. Avisei-a várias vezes que me estava a magoar, mas não parava.
Na troca de turno que se seguiu apanhei uma médica melhor. Já no período expulsivo recusaram que estivesse em posição vertical, pois não conseguiam ouvir o batimento cardíaco do bebé. Inicialmente, estava apenas uma médica na sala que queria evitar a instrumentalização do parto, o que não aconteceu porque entraram vários médicos. Depois de me tocarem, um dos médicos impediu a médica de continuar o seu trabalho. Não se apresentou e falava de mim como se eu não estivesse na sala. Abriu o estojo de tesouras - e eu sabia bem para que serviam. Queria agarrar-me ao meu marido, mas não me deixavam. Como nada foi dito ou explicado até então, quando o meu marido pediu para me explicarem o que se passava, pois estava claramente em pânico, o médico afirmou que o bebé não estava a descer e precisava de ajuda. Eu gritei para que não me cortassem, mas ignoraram. Sem sequer tentarem algo menos invasivo, realizaram uma episiotomia e utilizaram fórceps.
A equipa de obstetras não me auxiliou, não me respeitou nem falou comigo como ser humano que sou. A única médica que me pareceu querer ajudar no momento chave calou-se e saiu de cena. Sou a prova que estar bem informada e segura das minhas escolhas de nada serviu para que não fosse violentada. Sim, eu senti uma violação tremenda de direitos e de autonomia nesta experiência. Foram dois longos meses até conseguir escrever sobre o que vivi naquele dia.
O meu testemunho remonta a 2009, no Hospital Garcia de Orta. Foi o meu segundo parto natural naquele local, e a diferença para o primeiro foi que nesse a minha médica assistente trabalhava lá. Este detalhe, de chegar lá sem a dita ‘cunha’, ditou o sofrimento de que viria a ser alvo. Sempre que alguém se cruzava comigo na sala de observação pela primeira vez, mencionava que pretendia levar epidural. O meu primeiro sinal de parto foi a ‘ruptura das águas’, daí até ter dilatação total foi uma escalada de dor atroz.
No meu primeiro parto não me deram indicação de que poderia levar os meus CDs para escutar, o único detalhe doloroso desse parto foi ter de suportar a música da RFM. Tudo o resto foi o expectável e recomendável para a condição de uma mulher em trabalho de parto.
O que fez então a parteira? O chamado ‘ponto do marido’, cosendo para lá do necessário, sendo responsável pelas dores nos atos sexuais posteriores.
No segundo fui humilhada e torturada. No processo de dilatação que durou horas, tive uma escalada de dores insuportáveis causadas pelas contrações incessantes. Implorei pela epidural, mas disseram-me que o anestesista estava ocupado e que viria assim que possível. Nunca chegou a vir. Estava a ouvir as músicas das minhas bandas preferidas, criteriosamente por mim selecionadas, no momento em que dos Tindersticks ecoam os primeiros acordes da música Tiny Tears expludo num choro compulsivo que seria constante nas horas seguintes.
Num raro momento em que uma equipa veio verificar a minha dilatação, reforcei que a dor era constante. Adicionaram uma substância ao soro, supostamente para estimular a dilatação, mas não resultou, nada aconteceu e permaneciam as imensas dores. A médica que me supervisionava trouxe-me então um comprimido para tomar, ouvi alguém que a acompanhava dizer ‘pensei que já não administrávamos isso’. Agonizei até à hora do parto efetivo, do parto não tenho grande memória, desmaiei com a dor de fazer uma força que não tinha. Soube depois que tinha feito uma laceração, estava a ser suturada quando recuperei os sentidos. O que fez então a parteira? O chamado ‘ponto do marido’, cosendo para lá do necessário, sendo responsável pelas dores nos atos sexuais posteriores. Esta experiência atormenta-me ainda hoje, a lembrança mexe comigo.
| Ilustração de Rafael Medeiros
O meu filho decidiu nascer a um feriado em pleno mês de agosto de 2005. Na tarde anterior tínhamos estado no hospital e uma equipa médica super cuidadosa, depois de avaliar a situação [já estava nas 41 semanas], avisou-me que o parto ia acontecer provavelmente no dia seguinte, mas que não havia vantagem nenhuma em ficar no hospital. Como era meu primeiro filho, o parto ia demorar, os dias estavam muito quentes e o desconforto seria evidente. A equipa fez-me sentir confiante e bem tratada. Foram de facto eficazes, por volta das seis da manhã do dia seguinte as contrações começaram.
Ao chegar lá, as contrações estavam cada vez mais próximas e a enfermeira que me fez a triagem perguntou se tinha feito o curso pré-parto e onde. Eu não tinha feito curso nenhum, porque o hospital não me arranjou vaga e o curso não era obrigatório. Respondi exatamente isto, ouvindo imediatamente a seguir o comentário para a colega: ‘estas meninas vêm para aqui sem preparação nenhuma…’ Eu já estava cheia de dores, mas ainda consegui perguntar como é que nos preparamos para um primeiro filho.
Faço um parênteses para explicar que sou psicopedagoga, tinha estagiado num hospital, em pediatria, que praticamente todos os meus professores eram pediatras, porque tive o privilégio de estudar saúde mental com profissionais incríveis. Conhecia muito bem os meus direitos, os meus deveres e nunca fui pessoa de ficar calada. É preciso também dizer que sempre pareci mais nova do que sou. Até verem o meu bilhete de identidade, aquelas enfermeiras achavam que eu era mãe adolescente, mesmo quando lhes disse que tinha 26 anos e que sabia muito bem o que estava a fazer.
Eu tinha declarado que queria epidural. Passados poucos minutos vem a enfermeira-chefe informar-me que a anestesista está na sala de operações, que tinha havido um acidente grave na IP5 e era feriado. Perguntaram-me se eu exigia anestesia imediatamente ou se ela podia vir quando os acidentados estivessem fora de perigo. Claro que respondi que esperaria por ela, pois a minha situação era de vida e não de morte.
Quando finalmente a anestesista chegou e me mandou deitar na maca em posição fetal, já não conseguia estar quieta, nem fechar as pernas, pelo que sou informada de que se não estiver quieta pode errar a injecção e paralisar-me. A anestesista observa-me pergunta se assumo a responsabilidade de não levar a epidural. Respondo que não consigo pôr-me em posição fetal, pelo que se o risco for eu ficar paralisada prefiro então não levar epidural nenhuma. A enfermeira-chefe entra na sala de parto, observa-me e declara que estou com dez dedos de dilatação. O parto já está quase, aos 12 dedos as crianças nascem.
Dizem-me que tenho de me preocupar com o meu filho, que não sou boa mãe, que não estou a ajudar. Não fui ouvida nem por um minuto. Pedi para o ter sentada ou de cócoras, ninguém me responde e apertam-me com mais força.
Dizem-me para passar para outra cama, sem apoios e numa posição impossível para mim de fazer força, completamente horizontal, onde não tenho apoios, nem estribos, nem nada. Põem-me o medidor à volta da barriga e no meio de uma contração arranco-o, digo que não consigo parir deitada, que não tenho apoio e que preciso de ajuda ou de o ter quase sentada.Sei que não tenho força abdominal para fazer força de pernas no ar. Quando me deito, a enfermeira-chefe observa-me e chama a médica, fazem-me uma episiotomia.
E nesse momento começa uma viagem surreal de dor e diálogo impossível: sou acusada de não querer saber do meu filho por tirar o medidor, de não saber o que digo, sou empurrada contra o colchão de onde me tinha levantado para fazer força, sinto a cabeça do bebé a fazer pressão e várias mãos que me agarram os braços de encontro às baias de metal da cama. Tenho cinco mulheres de cada lado a segurarem-me os braços e estou completamente furiosa, injetaram-me oxitocina uns minutos antes para acelerar o parto sem necessidade nenhuma, pois a dilatação estava quase feita e eu só precisava de mais tempo e de uma posição diferente, com algum apoio nas costas e nas pernas.
Dizem-me que tenho de me preocupar com o meu filho, que não sou boa mãe, que não estou a ajudar. Não fui ouvida nem por um minuto. Pedi para o ter sentada ou de cócoras, ninguém me responde e apertam-me com mais força. Insultei aquelas mulheres do piorio, todas as piores asneiras lhes caíram em cima, debitei todos os direitos que tinha e senti-me uma louca durante três quartos de hora. De repente entra um pediatra na sala de partos olha para aquele cenário de sangue e guerra exclamando: ‘Minhas senhoras, por favor!’. Faz-me uma manobra de Heimlich e o meu filho sai impecavelmente. Está tudo bem com ele.
Vou para o recobro e aparece a minha mãe, que me diz que os meus insultos foram ouvidos pelo hospital todo. Peço desculpa à enfermeira-chefe e a minha mãe segreda-me: ‘Não peças, Francisca. Está feito, não fizeste nada de mal, tenho a certeza de que mereceram’. Encostei-me para trás e quis ser engolida pelo colchão, mas tinha um bebé nos braços e uma enfermeira novinha amorosa que me segredou com carinho: ‘a partir de agora só vai correr bem, deixe-o mamar para ele ficar feliz’.
Não esbocei um único sorriso nos três dias que lá estive. A enfermeira novinha vinha às escondidas pôr-me uma pomada qualquer nos pontos, as outras enfermeiras vinham dizer que o meu leite não prestava, porque o bebé era um berrão… Odiei-as muito, com muita força. Tive os dois braços completamente negros durante 15 dias e não me consegui sentar durante um mês. Dava de mamar deitada ou de pé, mas os pontos foram bem dados, dizem. Durante dois anos tive pesadelos com isto e mantenho a certeza de que conseguia ter tido o meu filho sozinha, de cócoras e em profunda paz com todas as dores do mundo.
Entrei no Hospital de Braga onde estava a minha médica, que seguiu todo o processo da gravidez do meu filho, para ser submetida a uma indução do parto por ter finalizado as 42 semanas de gestação. Depois da indução do parto, e tendo alguns problemas, dos quais eu e os profissionais tinham conhecimento, tais como espina bífida, foi percetível que a dilatação não acontecia de forma fácil. Percebi que fui sendo deixada em sofrimento quando as sucessivas tentativas da equipa de anestesiologia, que por sinal foi incansável, não surtiram qualquer efeito e as horas, já muitas, foram passando. A verdade é que, após ter chamado inúmeras vezes por profissionais assistentes e de enfermagem, que me diziam ser impossível estar com dores, eu não fui ouvida. As dores só aumentavam e chegou, finalmente, 24 horas depois, o momento em que atingi a dilatação e chegou uma parteira.
Ter mais filhos é um cenário impensável para mim.
Com a sua experiência, esta parteira percebeu de imediato que algo de errado se passava e que o meu filho não conseguiria passar no canal uterino, como previsto em parto normal. Isto devido aos problemas de saúde conhecidos pela médica assistente, que se tinha comprometido a ser ela a realizar o parto do meu filho, e que nunca apareceu para qualquer assistência. Entretanto, a parteira chamou a equipa de obstetrícia em funções. Esta surgiu fazendo-se acompanhar de jovens estudantes e provavelmente internos.
Comigo em processo de sofrimento extremo e uma médica decidindo o que iria fazer, não hesitou quando uma jovem sugeriu fazer uma manobra para ‘encaixar’ o meu filho na posição correta de saída. Nenhum destes médicos tinha qualquer noção do meu estado de dor, nem para mim falaram. A jovem avançou com a manobra, sendo preferível para mim ter morrido naquele momento a sentir o que senti.
O meu filho entrou em sofrimento imediato, todos na sala se agitaram e fui enviada de imediato para uma cesariana de emergência, onde de seguida tive toda a assistência do mundo considerando o estado extremo de perigo e sofrimento em que eu e o bebé já nos encontrávamos.
Ter mais filhos é um cenário impensável para mim, até porque, na verdade, o que passei nunca será apagado e repercute-se até hoje, passados quatro anos, em diversos âmbitos da minha vida.
As águas rebentaram, fui para o hospital, nunca senti uma contração, embora a máquina dissesse que estava a ter contrações. Queria um parto natural. Dormi a noite inteira que nem um bebé, estando em trabalho de parto, o que já é estranho. Foram fazer o toque duas vezes, uma à noite antes de adormecer e outra de manhã. Acordaram-me às nove da manhã a dizer que tinha de fazer uma cesariana. Perguntei porquê e disseram que estava a passar o tempo e que não estava a dilatar. Perguntei se me deram alguma coisa para provocar o parto, disseram que não. Disseram que tinha mesmo de ser cesariana.
Naquela altura uma pessoa não vai discutir, tinham passado oito horas desde que as águas rebentaram, não sabia quantas horas o bebé podia estar bem sem o líquido amniótico. Pedi para esperar meia hora, porque a minha mãe estava a caminho. Deram-me a epidural, entrei no bloco de partos. Tinha combinado com ela [a médica] algumas coisas, como ser o pai a cortar o cordão umbilical, queria que o bebé viesse para o meu colo logo após a nascença. Nada disso foi feito. A primeira coisa que fizeram foi mostrar o sexo do bebé, porque eu só queria saber na nascença. Mostraram e desapareceu. Fiquei aflita e disse ao pai para ir atrás dela. Fiquei atordoada, porque queria senti-la. Quando o pai ma veio entregar, ela vinha toda vestida. Fiquei um bocadinho desiludida, mas quando comecei a olhar para ela esqueci tudo.
Só depois é que comecei a analisar. Combinámos uma coisa e não foi nada levado em consideração. Como se nós não soubéssemos nada e eles tudo. Não fiquei triste de ser cesariana, aceitei, achei que era o melhor para o bebé, porque confiei nos médicos, mas até hoje não sei se era mesmo necessário. Os primeiros dias lá foram péssimos, as enfermeiras eram muito brutas, a falar alto, a abrir o estore às sete da manhã porque ‘tinha de ser’, para a bebé se habituar. Senti uma invasão muito grande. Deram-lhe no segundo dia suplemento sem eu dar autorização. Não havia justificação para isso.
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