Ucrânia destruída

Yuliya Yurchenko: "É imoral sobrecarregar com mais dívida um país que atravessa uma guerra"

A economista e ativista do ucraniano Movimento Social defende que o verdadeiro ato de solidariedade seria o cancelamento da dívida externa da Ucrânia. Diz também que o povo ucraniano está a criar redes de apoio popular alargadas para dar respostas às dificuldades sociais causadas pela guerra.

Entrevista
12 Maio 2022

Aterrou na Ucrânia pouco antes dos tanques russos avançarem pelo país adentro e, podendo fugir ou ficar no país, decidiu ficar. Quando as bombas começaram a cair em Kiev, fugiu da capital para Vinnytsia, a sua terra natal no centro-oeste da Ucrânia. A economista e ativista Yulyia Yurchenko, do ucraniano Movimento Social, defende o cancelamento da dívida externa ucraniana como verdadeiro ato de solidariedade e descolonização.

“É imoral esperar que um governo dê prioridade ao pagamento da sua dívida externa quando está a passar por uma crise humanitária com milhões de pessoas deslocadas, quando milhares perderam a vida e muitos mais estão feridos e estropiados nos hospitais”, critica em entrevista ao Setenta e Quatro

O seu sentimento de indignação é tão maior por acompanhar de perto a violência da guerra. Mas, ao mesmo tempo, olha com esperança para o futuro do seu país ao ver emergirem novas dinâmicas sociais. A forma como os ucranianos se estão a unir numa “luta pela sobrevivência da Ucrânia”, como doam o que lhes resta de dinheiro, a pouca roupa, comida ou medicamentos que têm, como abrem as suas casas a pessoas deslocadas. Fazem-no arriscando as suas próprias vidas. 

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YULIYA YURCHENKO
Yuliya Yurchenko afirma que os ucranianos querem um Estado com um "forte sistema de assistência social".

Com toda esta solidariedade, que se vai transformando em redes de apoio popular alargadas, Yurchenko não tem dúvidas de que os ucranianos comuns “estão a fazer política direta”, respondendo “ativamente a problemas sociais que vão surgindo”. Estão a lutar pelo presente e pelo amanhã. No fundo, garante, desmentem pela prática que a sociedade ucraniana “é impotente e que deve estar sob o poder dos burocratas e dos oligarcas”. O poder dos oligarcas pode estar a ser corroído a cada dia que passa. 

Mas nem tudo são sinais positivos num país onde as bombas russas não param de cair. O justo sentimento de povo agredido pode levantar um “ódio geral contra todos os russos”, que estabeleça a “rejeição fanática da história comum dos dois países” e que, finda a guerra, dê força à extrema-direita e marginalize alternativas de esquerda. E, para isso, muito contribuem as narrativas que associam o comunismo (e a esquerda no geral) à política expansionista de Vladimir Putin. 

O principal alerta de Yuliya Yurchenko para quem está a acompanhar a guerra de fora da Ucrânia é o facto de ser complexa, de nada ser a preto e branco, que “a pureza na guerra não existe”, que é um “luxo da vida burguesa”. Há combatentes neonazis a combaterem os russos, mas, ao mesmo tempo, também há anarquistas, antifascistas e socialistas. E estes são pouco ou nada falados.

Viajou para a Ucrânia ainda em fevereiro, pouco menos de uma semana antes da invasão russa, e só voltou para Londres há pouco tempo. Porque decidiu ficar? 

Fui para a Ucrânia com uma delegação britânica de jornalistas e sindicalistas que ficou até ao dia 22 [de fevereiro], quando Vladimir Putin assinou o decreto que admitia a legitimidade das repúblicas separatistas no leste da Ucrânia. Era claro que a guerra estava iminente, mas decidi ficar. E, de certa maneira, foi chocante. Não queria acreditar que uma invasão fosse possível, sobretudo porque esta guerra é uma absoluta loucura e a Rússia também está a perder muito com ela. 

Fiquei na Ucrânia não só porque queria estar com a minha família, mas também porque queria saber o que é que iria acontecer e perceber como poderia ajudar. No dia 24, quando começaram os bombardeamentos, fugi de Kiev com um amigo e a sua família. Ele ficou em Kiev-Oblast e eu vim para Vinnytsia. 

O que viu nestes meses em que esteve em Vinnytsia?

Desde o primeiro dia que sinto que é angustiante. Na primeira semana toda a gente estava em choque, a tentar entender a situação. Ninguém conseguia dormir. Como Vinnytsia fica no centro-oeste da Ucrânia, perto da Moldávia, e muito do conflito estava concentrado noutras áreas, tudo foi ficando mais calmo ao longo do tempo, apesar de a cidade e os subúrbios terem sido bombardeados uma ou outra vez. 

Nas primeiras semanas houve muitos alertas de ataques aéreos. E, como não eram claras as intenções da Rússia, foi muito difícil. Todo o país estava em sobressalto. Envolveu muita correria a descer e a subir escadas, para nos escondermos na cave da casa da minha mãe. Ela tem problemas cardiovasculares e também é uma pessoa bastante emotiva, então estava muito enervada com toda a situação, com as sirenes e o barulho da aviação militar. Tive medo que ela tivesse outra trombose e que não conseguisse receber os cuidados de saúde adequados. Tem havido muitas mortes de civis por falta de cuidados médicos: tratamentos oncológicos interrompidos, falta de medicamentos para doenças cardiovasculares. Muitas mulheres tiveram nados mortos.

O meu amigo com quem fugi de Kiev esteve sob ocupação russa, com a família, em Kiyv-Oblast. Quando conseguiu fugir novamente e chegou com a família à zona oeste da Ucrânia, uma das suas filhas foi diagnosticada com peritonite e teve de ser operada com urgência. Felizmente isso não aconteceu quando estavam sob ocupação, com soldados russos e chechenos à porta.

Mesmo numa cidade que não tem sido local de confrontos, como é que a vida quotidiana mudou?

Como Vinnytsia é uma cidade que tem estado mais calma e quase não viu conflito, há uma presença grande de pessoas internamente deslocadas e muitos feridos são enviados para lá. Isso significa que os hospitais estão sobrecarregados, assim como os hotéis e o mercado de arrendamento. Há pessoas a dormir em corredores de estações de comboios à espera de realojamento. Outras foram realojadas em escolas ou dormitórios de universidades. 

Houve um rearranjo forçado na economia quotidiana de muitas cidades. Lviv recebeu muitas pessoas deslocadas, por exemplo. De acordo com algumas estimativas, a população de Lviv quase duplicou. Isso cria muita tensão nas infraestruturas e nos serviços locais. E também pode resultar em tensões sociais. Um taxista, quando estava para me vir embora, disse-me que muitos taxistas de outras cidades vieram para Vinnytsia com os seus carros, para continuar a trabalhar, aumentando a competição entre condutores e baixando os preços das viagens.

"Não basta ir para a rua protestar e afastar do poder um político de cada vez. É preciso meter mãos à obra. As pessoas estão a perceber isso e é extraordinário." 

Há muitas dinâmicas interessantes, e desagradáveis, a acontecer. Uma colega minha, Aliona Liasheva, que também pertence ao Sotsialnyi Rukh [Movimento Social, em português], tem estudado o mercado imobiliário e as consequências do influxo de pessoas deslocadas nos preços da habitação em Lviv e noutras cidades fronteiriças. Alguns senhorios abriram as suas portas a refugiados e deslocados, outros decidiram duplicar ou triplicar os valores das rendas. Temos visto situações muito feias de extorsão e especulação. 

Além disso, a vida quotidiana foi completamente abalada. Vias ferroviárias e rodoviárias foram cortadas, o que rompe com o fornecimento de certos bens e serviços. Os alertas de ataque aéreo perturbam o funcionamento normal de muitos serviços. Por lei, nenhum escritório administrativo pode estar aberto quando a sirene toca. Há postos de controlo em todo o lado, há recolher obrigatório em muitas cidades.

O sistema educativo também foi completamente desestabilizado. Ainda que dois anos de pandemia tenha preparado os professores e os alunos para o ensino à distância, a guerra teve efeitos desiguais em alunos de diferentes regiões. Há jovens na Polónia ou na Alemanha  a ter aulas remotamente, mas também há jovens na Ucrânia sem aulas há meses. Para não falar do stress psicológico de viver numa zona de guerra, apesar do esforço que tem sido feito para dar às crianças e aos jovens algum sentimento de normalidade residual.

Tem visto sinais positivos no meio de tudo isso?

Tem sido desafiante para toda a gente e só saberemos o verdadeiro impacto desta guerra mais lá para a frente. Apesar de tudo, também vi muita solidariedade. E tenho tido notícias de todo o país, da nossa rede de ativistas, que mostram uma extraordinária onda de solidariedade. Pessoas que doam o que lhes resta de dinheiro, que doam roupa, comida ou medicamentos, que abrem as suas casas a pessoas deslocadas. Houve trabalhadores ferroviários que ajudaram a retirar pessoas de algumas localidades sob bombardeamento pesado, durante vários dias, muitos deles tendo perdido a própria vida. 

Estes últimos meses têm sido árduos, mas tem havido muita união. Tem-se forjado um sentimento de comunidade muito forte através de redes e ligações de ajuda mútua que já existiam desde 2013 ou 2014, paralelamente a outras que estão agora a ser construídas. Os ucranianos estão a passar por um sacrifício coletivo e partilhado, mesmo que de diferentes formas. Há pouca paciência para quem está só a tentar fazer dinheiro rápido. Construiu-se um sentimento de responsabilidade comum em relação ao futuro do país, e que irá perdurar. 

Diversas organizações civis, cujo trabalho é feito através de ativistas e voluntários, estão a mostrar que as pessoas podem assumir responsabilidades onde o Estado não está ou não chega. Estão a fazer ação política direta e respondem ativamente a problemas sociais que vão surgindo. E isso cria um sentimento de confiança que ajuda a desmentir a ideia de que a sociedade ucraniana é impotente e deve estar sob o poder dos burocratas e dos oligarcas. Não basta ir para a rua protestar e afastar do poder um político de cada vez. É preciso arregaçar as mangas e meter mãos à obra. As pessoas estão a perceber isso e é extraordinário. 

Espero que isso continue depois do fim da guerra. As organizações populares que estão a assumir as funções do Estado ao nível local ou regional devem ser institucionalmente apoiadas para que continuem a fazê-lo, porque sabem o que estão a fazer e fazem-no bem: limpar florestas, gerir os canis municipais,  tomar conta de idosos. É preciso fomentar sistemas descentralizados de governação que evitem usurpações de poder, pelo menos a nível regional. Isso deixa-me esperançosa.

Acha que tem havido uma simplificação das causas e do significado deste conflito na imprensa "ocidental"? 

Há uma má interpretação daquilo que é a Ucrânia, sem dúvida. Mesmo os comentadores, ativistas ou politólogos mais bem-intencionados têm-se esquecido de separar a Rússia da União Soviética. Ainda se olha para a Rússia como um contrapeso aos Estados Unidos. A União Soviética era um contrapeso ideológico, mas a Rússia não é. 

A Federação Russa - e é importante dizer o seu nome por extenso - é uma federação de múltiplas regiões que têm direitos de devolução, mas que se tornaram parte daquilo que é conhecido internacionalmente como Rússia, através do imperialismo russo - dos czares à URSS - na Eurásia. Não sou daquelas intelectuais que dizem que a URSS era o mesmo que a Rússia Imperial. Eram decididamente diferentes e é ridículo fazer essa comparação. 

Todavia, é importante sublinhar que havia uma hegemonia russa sobre as restantes regiões e repúblicas, algo que passou da Rússia Imperial para a União Soviética. A cultura russa era suprema, com a língua e a literatura a serem as mais importantes. Intelectuais, artistas e escritores tinham de produzir em russo.

Construí a minha visão deste assunto pelo prisma gramsciano. É preciso notar onde se situa a cultura, qual o papel da língua, das políticas étnicas, em qualquer estrutura política, porque essas coisas importam. Aqueles que dizem que isso não importa tendem a ser de nações colonizadoras.

Como é que isso se relaciona com a história recente da Ucrânia? 

A União Soviética não foi sempre de facto aquilo que era no papel. As repúblicas soviéticas, incluindo a Ucrânia, lembram-se disso bastante bem. A Ucrânia não se deu mal sob o poder soviético. Era a segunda maior economia, tinha boas infraestruturas e bons serviços públicos, uma população altamente educada, grande produção tecnológica. Tinha o seu lugar nas Nações Unidas. Estava muito bem em comparação com algumas repúblicas soviéticas da Ásia Central. 

Mesmo assim, a língua e a cultura ucranianas eram vistas como exóticas, assim como as das outras repúblicas. Havia uma cultura russa, superior, que fornecia o russo como língua franca, e as outras culturas eram vistas como algo castiço, vindo do passado. A cultura comum deveria ser a russa. Este tipo de coisas perdura dentro de ti. Na viragem para a década de 1990, andei numa escola de língua ucraniana, onde aprendia e falava em ucraniano. Lembro-me de ser gozada por isso, por andar na escola dos "falhados" e falar na minha língua.

"Há uma fascização do discurso político na Ucrânia e é assustador. Quanto mais esta guerra se arrastar, mais difícil será lutar contra isso."

Não entender a história do imperialismo russo e as desigualdades nacionais dentro da União Soviética, não querer entender o que aconteceu na Rússia desde que a União Soviética se desmoronou (o tipo de país que se tornou e aquilo que está atualmente a fazer, não só internamente como no espaço pós-soviético), é algo que estorva o entendimento daquilo que é a Ucrânia. 

Ainda ouvimos muitas pessoas referirem-se à Rússia como União Soviética. Ouvimos comentadores à esquerda que, toldados pelo seu anti-americanismo e pela sua posição anti-NATO, parecem não conseguir perceber as ambições imperialistas da Rússia. Claro que os Estados Unidos são um tirano internacional. Claro que a NATO não é um gatinho fofo que toda a gente deveria afagar e que já participou em mais crimes de guerra do que dá para enumerar neste momento. Isso não justifica o que a Rússia está a fazer. Um erro não justifica outro.

Tendo em conta tudo isso, não é surpreendente o vigor do nacionalismo ucraniano, seja na vertente civil e patriótica, seja nas suas expressões mais radicais.

Considero difícil entender a questão do nacionalismo ucraniano sem compreender antes a história da Ucrânia enquanto colónia. O nacionalismo ucraniano parece-se com a forma como a imprensa ocidental o apresenta. Há batalhões desprezíveis que entretanto se podem ter tornado mais suaves, mas que não são motivo de qualquer orgulho. Usam insígnias do Terceiro Reich, alguns dos seus textos fundacionais usam linguagem racista e supremacista. É preciso ser honesto em relação a isso: eles existem. 

Tornaram-se proeminentes durante os protestos de Euromaidan, em 2013. Esses grupos de extrema-direita eram os únicos com os meios e os homens para "fortificar" os protestos, sequestrando-os. Não foram eles que mobilizaram as pessoas, simplesmente tomaram conta dos protestos. Muitas pessoas nem sabiam quem eles eram ou o que eles queriam. Foi um processo confuso.

As opiniões sobre estes grupos costumam dividir-se entre dois largos campos: aqueles que dizem que eles não interessam para nada e aqueles que dizem que a Ucrânia se tornou num Estado nazi ou fascista. Há os que subvalorizam e os que exageram. A verdade está algures no meio. Comparando com outros países, estes grupos não são tão influentes como os querem pintar. Nem as suas ideias têm uma representação parlamentar significativa. Ninguém olha para o resultado que Marine Le Pen conseguiu nas eleições presidenciais francesas e passa a considerar a França uma nação fascista.

Há uma fascização do discurso político na Ucrânia?

Sim, e é assustador. Claro que é condicionado por uma guerra onde se está a combater pelo direito à existência de uma nação inteira. Esse contexto explica o ressurgir mediático das camisas bordadas e das canções nacionais, explica o apelo à cultura "antiga". Isso só por si não seria grande problema, mas atrelada vem uma desconfiança russofóbica ocasionalmente justificável e que facilmente se pode tornar num ódio geral a todos os russos. É um ódio que define a Ucrânia como "tudo menos russa" e estabelece uma rejeição fanática da história comum dos dois países. 

Ainda há muitos ucranianos que falam russo como língua materna. Há ligações incontornáveis nas nossas culturas, mas, neste momento, com a atrocidade desta guerra, acho que já atravessámos o Rubicão. Parece que qualquer pessoa na Ucrânia tem carta-branca para usar a retórica mais desumanizante possível contra os russos. Ouvimos isso em discursos de ministros, lemos isso em canais do Telegram. Normalizaram-se os termos depreciativos e insultuosos, que não quero mencionar, e a linguagem desumanizante. 

Quanto mais esta guerra se arrastar, mais difícil será lutar contra isso. É isso que me preocupa. Acho perfeitamente aceitável o nacionalismo enquanto parte de um processo de descolonização e libertação, se não incorporar xenofobia. É importante celebrar a história nacional, a música nacional, a comida, o que seja, mas não podemos condenar por associação, por muito atroz esta guerra seja. Queremos acreditar que aprendemos alguma coisa com a II Guerra Mundial, mas parece que continuamos a repetir os mesmos erros. 

Espero, sinceramente, que este tipo de "veneno" não se torne normal e que desapareça quando a guerra acabar, porque não pode fazer parte de um projeto de emancipação nacional. Estar constantemente a afirmar que não se é russo não pode ser o caminho da afirmação da nação ucraniana. É tóxico e é preciso tirar essa bola de naftalina de dentro da cabeça.

A Yulyia faz parte de um movimento que tem intercedido um pouco por toda a Europa, e não só, pelo cancelamento da dívida externa ucraniana. Como é que esse cancelamento consistiria num "ato de descolonização", como já lhe chamou?

A luta pelo cancelamento da dívida ucraniana é importante também pelo exemplo que pode estabelecer para outros países. Temos trabalhado com diferentes políticos e ativistas, em diversos países, sobre o problema da dívida através do Sotsialnyi Rukh e da Ukraine Solidarity Campaign. 

É um problema que está intimamente ligado ao capitalismo imperialista, mas também à sabotagem da liberdade que as pessoas comuns e os seus governos devem ter para melhorar as suas vidas. Isso é devastador. E esta dívida é imoral. É imoral sobrecarregar com mais dívida um país que atravessa uma guerra. É imoral esperar que um governo dê prioridade ao pagamento da sua dívida externa quando está a passar por uma crise humanitária em que milhões de pessoas foram deslocadas, milhares perderam a vida e muitas mais estão feridas e estropiadas nos hospitais. Ou quando grande parte da sua infraestrutura foi destruída e o seu orçamento foi estourado em armamento para lutar contra uma invasão. 

Isso aplica-se à Ucrânia ou a qualquer país em estado de guerra ou sob um pesado choque económico. A sobrevivência das pessoas - a preservação da vida - deveria ser o mais importante. Os investidores privados podem esperar uns anos. Desde a anexação da Crimeia que a moeda ucraniana caiu a pique três vezes. As dívidas têm de ser pagas em euros ou dólares. Portanto, o valor dos pagamentos da dívida triplicou da noite para o dia. Não importa o quão bom és a gerir a tua dívida se não a consegues pagar por causa de abalos ou choques vindos do exterior. 

E a Ucrânia não tem culpa de ter sido invadida.

Exato. Esta crise não se deve a má gestão. As últimas previsões apontam para que o PIB ucraniano caia para metade. Isto é um castigo que a Ucrânia não merece. Se há interesse em que a Ucrânia honre os seus compromissos e pague a sua dívida, então devíamos ter a oportunidade de salvar a nossa economia em vez de condenar ao abandono os seus setores mais importantes. 

Precisamos de uma moratória nos pagamentos da dívida até ao final do ano, do cancelamento da dívida e de uma reestruturação económica séria e profunda, com financiamento na forma de reparações de guerra. Alguns países estão a oferecer doações, mas essas doações são mais necessárias do que seriam se a Ucrânia não estivesse a pagar a sua dívida. Porque devem outros países estar a financiar o pagamento de juros de dívida a investidores privados quando o que querem é ajudar um país, a sua população e a sua economia?

"Qualquer partido de esquerda que queira apresentar uma alternativa às políticas neoliberais é imediatamente rotulado de estalinista ou agente do Kremlin."

A dívida é um instrumento de controlo externo para qualquer país. É expropriação da riqueza nacional. Marx já tinha reparado que a dívida é um poderoso corrosivo da autonomia decisória que é fundamental ao exercício da soberania política. Com mais dívida, vêm mais exigências, estipuladas em memorandos, sobre aquilo que os governos podem ou não fazer. Há restrições orçamentais e austeridade fiscal, coisas que vocês em Portugal conhecem demasiado bem. Já sabemos que a austeridade fiscal não resulta e não cria crescimento económico. O próprio FMI reconhece isso.

Marx também reconheceu aquilo a que se chamou a alienação do Estado: quando os Estados nacionais deixam de ser agentes autónomos de autoridade e representativos da sua população, porque estão a executar condições que lhes foram impostas externamente. Isso é uma extensão do imperialismo económico: os países deixam de mandar nos seus próprios orçamentos. Certos sectores da economia trabalham apenas para o pagamento da dívida. Isso é grotesco. 

Espero que o exemplo ucraniano possa inspirar outros países, especialmente as ex-colónias europeias que se tornaram independentes mas que ainda sofrem com a exploração neocolonial sob a forma de dívida. O cancelamento da dívida costumava ser uma prática comum. Está na hora de trazer isso de volta.

Como vê a suspensão na Ucrânia, sob lei marcial, de qualquer partido político com "social", "esquerda" ou "progresso" no nome?

Putin faz a sua própria historiografia, uma salada em que o imperialismo russo, o estalinismo e a grandeza da Rússia contemporânea são misturados numa só trajetória histórica. Os ucranianos estão a fazer o mesmo, refletivamente, desde 2014. Não no mesmo grau de fantasmagoria histórica, mas não deixa de ser inútil ou contraproducente. O que temos visto na Ucrânia é a equalização do imperialismo russo com a União Soviética, o comunismo e Putin. 

Isso tem de ser rejeitado politicamente. As infames leis de descomunização igualaram os crimes do nazismo aos crimes do comunismo. Toda esta terminologia deixa-me enervada. Uma coisa é falar do Terror Vermelho e de Estaline, outra coisa é dizer que a culpa é do comunismo. Esta associação torna difícil à esquerda operar no país. É um grande obstáculo para a esquerda progressista.

Muitos dos partidos afetados por essa suspensão são vistos como agentes do Kremlin. Como o comunismo é soviético e tudo o que é soviético é russo, então trabalhas para o Kremlin. Pode acontecer que seja verdade, mas na maioria das vezes não é. Alguns desses partidos colaboraram com oligarcas pró-russos e votaram contra leis que iriam melhorar as condições de trabalho. Portanto, não merecem sequer ser chamados de socialistas. 

Todavia, o problema não é um partido ter uma ideologia que não corresponde ao nome que escolheu. É dificultar a vida a qualquer partido de esquerda que se queira registar e apresentar uma alternativa às políticas neoliberais, porque são imediatamente rotulados de estalinistas ou de agentes do Kremlin, o que cria uma perceção negativa e torna difícil convencer as pessoas a votarem em ti.

Há lugar na Ucrânia para um partido popular, anti-oligárquico e de esquerda socialista?

Sim, temos tentado contornar essa perceção negativa e encontrar espaço com o Sotsіalniy Rukh, mas não é fácil. Quando falamos com as pessoas e lhes perguntamos sobre quais as políticas que gostariam de ver implementadas, quais as suas necessidades, que tipo de economia e sociedade desejam, percebemos que querem um Estado com um forte sistema de assistência social e uma economia socialista. 

O capitalismo nunca lhes dará o que querem, mas este discurso de associação à União Soviética e a ideia de que tudo o que vier do Ocidente é automaticamente melhor é prevalente. Há muito trabalho a ser feito. O Sotsіalniy Rukh chama-se "movimento social" e não "movimento socialista" para que as pessoas não tenham uma reação imediata de desprezo. 

É frustrante, mas talvez faça sentido adaptar a linguagem para conseguir passar a mensagem de que precisamos de um novo sistema económico, não de uma empresa privada diferente a monopolizar o sector da saúde. Ou que as linhas ferroviárias funcionam bem porque ainda não foram privatizadas, apesar de várias tentativas.

"Entendo que seja difícil para algumas pessoas escolher um lado, mas numa guerra confusa como esta será sempre assim. Eu sei que estou contra as bombas russas."

Onde é que estão os oligarcas nesta guerra? Atiraram algum dinheiro para aqui e para ali, mas não são eles a organizar as coisas. São as pessoas comuns e as empresas estatais. Este é um momento muito importante para construir um movimento anti-oligárquico. Eles próprios foram-se embora para o Mediterrâneo ou para os Alpes nos seus jatos privados e estão sentados em cima dos seus milhões à espera que isto passe. As pessoas comuns perderam familiares e amigos. Alguns perderam pernas ou braços e viram as suas casas destruídas por bombas.

As pessoas estão a começar a entender. Têm sido os oligarcas a comprar eleições e a acicatar os desentendimentos entre este e oeste para conseguirem apoio eleitoral e ter acesso aos poderes do Estado. Foram eles que criaram as divisões exploradas pela Rússia nesta invasão. Encheram os bolsos com empréstimos que agora os ucranianos têm de pagar. Têm de ir embora, ou para a prisão. E os seus negócios, construídos e mantidos pelos ucranianos, as riquezas por eles criadas, devem financiar a reconstrução da Ucrânia, não fugir para uma conta offshore.

Quão importante tem sido o esforço de guerra de alguns movimentos anarquistas e antifascistas? 

Há alguns batalhões de esquerda, anarquistas e socialistas, a lutar contra a invasão. Não são menos dedicados ou patriotas que qualquer outro batalhão. É uma guerra existencial para nós. É a sobrevivência da Ucrânia que está em jogo. E, depois de garantida, todos poderemos discutir sobre como a iremos reconstruir. Conheço alguns pacifistas e objetores de consciência que acabaram por ir combater, deixou de ser uma questão de escolha: ou lutas ou perdes o teu país. 

No dia 25 de fevereiro, um amigo meu, anarquista toda a vida, decidiu alistar-se no exército. Achou que era a única coisa que podia fazer. E o facto de haver vários batalhões anarquistas, socialistas e antifascistas, toda essa mobilização, é um argumento muito forte para apoiar a afirmação de que é realmente a guerra de um povo pela sua sobrevivência. 

Sim, há batalhões de extrema-direita. Só que, ao mesmo tempo, na batalha por Azovstal eu consigo ver perfeitamente quem está a atacar e quem está a proteger. É o batalhão Azov que está a proteger os civis até ao último homem. E são as tropas russas que os estão a bombardear. E mesmo nessa situação horrenda oiço pessoas dizerem que não é possível ajudar a armar os ucranianos porque o Azov tem gente desprezível lá no meio. Também há falantes de russo, judeus e tártaros da Crimeia, ao lado dos quais estão a combater.

Não poderão vir a ser um problema num futuro pós-guerra?

É um fenómeno muito complexo e será amplamente estudado. Entendo que seja difícil para algumas pessoas escolher um lado, mas numa guerra confusa como esta será sempre assim. Nesta situação específica, sei que estou contra as bombas russas. Ter problemas com o batalhão Azov não significa que a Ucrânia não deva ser ajudada. É pesado, é confuso, é a guerra. 

Se os soldados do batalhão Azov forem considerados suspeitos de crimes de guerra, devem ser investigados. Se forem considerados culpados, devem ser condenados. Neste caso específico da fábrica de Azovstal, acho que é bastante claro quem está certo e quem está errado. Neste momento, o Azov faz parte das Forças Armadas e recebe ordens. Se não deixaram os civis sair de Azovstal, como é alegado em alguns vídeos, foi porque não receberam ordens para isso e porque não havia qualquer corredor humanitário. Deixar os civis sair seria mandá-los para a morte e as ordens que receberam foi de proteger os civis. 

Dito de outra maneira, tudo isto vai dar muito trabalho aos historiadores militares. É importante lembrarmos-nos de onde nos colocamos ideologicamente e com quem temos problemas, mas também é importante perceber quem está a perpetuar a violência, a tirar vidas, e quem está a lutar contra isso. E talvez não seja nem fácil nem confortável, mas a pureza na guerra não existe. É um luxo da vida burguesa. Essa pureza também não pode ser pura, porque depende da exploração do trabalho, portanto, aí tens: a pureza não existe!