Maus-tratos, racismo e discriminação são relatados por vários refugiados nas fronteiras de saída da Ucrânia. Ativistas dos direitos humanos, estudantes e imigrantes defendem que não pode haver tratamento diferenciado de refugiados e que a Europa deve abrir as suas portas a todas as pessoas que fogem da guerra.
Naquele dia, Domingos Ngulonda correu como nunca tinha corrido. As sirenes ucranianas já soavam quando ele e Mário Biaguê deixaram a sua casa em Ternopil. Durante cinco dias, foram desrespeitados, “tratados como animais de carga” e não lhes foi permitido passar a fronteira apenas por serem negros. Estas foram as primeiras memórias que Domingos Ngulonda contou ao Setenta e Quatro uma semana depois de chegar a Portugal.
De malas feitas, a ida sem volta tornou-se real. Fugia da guerra, assim como a maior parte dos estudantes estrangeiros que viviam na Ucrânia. O objetivo era chegar a Medyka, cidade ucraniana próxima da fronteira com a Polónia, para depois Domingos, Mário e um grupo de quatro jovens regressarem ao seu país. No entanto, a porta de saída da Ucrânia não está aberta a todos.
Os seus amigos passaram a fronteira, mas Domingos e Mário não. Ao longo de um corredor de pessoas, quase em jeito de fila, mulheres e crianças ucranianas tinham prioridade no acesso ao portão que as levaria ao outro lado da fronteira. Ao lado desse corredor, numa segunda fila, passavam os estrangeiros: mulheres, crianças e depois os homens, mas não todos. Ali cruzavam-se as vidas de quem fugia da guerra e de quem só se podia preparar para o pior.
Os polícias, armados da cabeça aos pés, e os civis, de coletes verdes com cassetetes e tacos de beisebol, tinham a frase na ponta da língua: “africanos para o fundo da fila”. Sempre que chegava a sua vez eram rejeitados e mandados para trás. Todos os cidadãos africanos, indianos ou de países do Médio Oriente eram rejeitados tendo como factor determinante a sua cor de pele. Com um tratamento que consideram “desumano”, Domingos e Mário denunciam ao Setenta e Quatro atos de racismo, discriminação e maus-tratos.
“Ouvimos pedidos de ajuda nas últimas noites que lá estivemos, mas as ambulâncias nunca chegaram. No dia seguinte informaram-nos que três jovens indianos tinham morrido de hipotermia”, afirmam indignados.
Os jovens estudantes contam que viram muitos homens estrangeiros entrar em desespero ao verem as suas mulheres e filhos passarem a fronteira e eles a ficarem para trás. Depois de vários dias de espera, as suas esposas começaram a ficar doentes. “Sentiam-se desesperados de tal forma que tentaram trepar [a rede que separava] a fronteira. Faziam barulho e reclamavam”, recorda Domingos Ngulonda. “Os guardas começaram a bater com bastões, a entrar com tacos de beisebol, a empurrar as pessoas que estavam desidratadas, que não comiam há horas, que estavam ao frio”, continua, salientando que ficaram “completamente enfraquecidos” e que “não era necessário sequer [usar] a força para nos mandar para trás”. “Mas eles, mesmo assim, batiam-nos.”
Os dias foram passando, já não importava se as pessoas tinham acabado de chegar ou se já lá estavam. A violência continuava, garantem. Esta foi a realidade que estes estudantes, entre muitos outros, dizem ter vivido ao longo de cinco dias em Medyka.
Recuemos até dia 24 de fevereiro, quando a invasão russa começou. O telefone de Domingos tocou quando Dnipro tinha acabado de ser bombardeada. Depois de fazer as malas, saiu juntamente com Mário e deslocaram-se para uma casa próxima da estação de comboios. Horas depois, ainda que com muita dificuldade, apanharam o comboio em direção a Lviv, a principal cidade ucraniana mais próxima da fronteira. O cenário já era de guerra, “estávamos efetivamente na luta pela lei do mais forte”, conta Domingos.
Chegaram depois de duas horas de viagem. Passaram-se mais quatro horas e os atrasos e as dificuldades nos transportes mantiveram-se. Era normal, pensaram, pois o fluxo humano não parava de aumentar. Foi então que encontraram um taxista que lhes cobrava cerca de 3000 hryvnias (90 euros) para os levar até Medyka, mas isso nunca chegou a acontecer. Foram enganados pelo taxista.
Com malas extremamente pesadas viram-se obrigados a percorrer estradas de terra batida e outras de alcatrão durante horas até chegarem a Shehiny, a mais de duas dezenas de quilómetros. Foi um percurso que milhares de refugiados ucranianos percorreram antes deles, e que muitos vieram depois a fazer, já com os portugueses em Portugal. “Tudo o que era branco passava à frente.”
“Estávamos esgotados. Tínhamos de fazer pausas de cinco em cinco minutos”, acrescenta Mário, depois de Domingos detalhar como chegaram até ao “primeiro” checkpoint, ainda na Ucrânia. Aquele era um local onde as tropas governamentais regulavam o fluxo de pessoas, pouco antes de chegarem à fronteira. Ficaram lá mais quatro horas parados ao frio, sem qualquer detalhe ou informação sobre o porquê de os manterem naquele local. Seguiram-se mais dois quilómetros, até finalmente chegarem à fronteira.
A quantidade de gente que lá estava era tanta ou superior ao que tinham visto em Lviv, recordam. Após o primeiro contacto direto com os guardas, as divisões começaram: “polacos para um lado, negros para outro”.
Domingos tentou pedir ajuda e questionou os forças governamentais sobre o porquê de não poderem estar do mesmo lado que os polacos, recebendo como resposta que eles tinham prioridade porque iam entrar para a Polónia - algo comum entre todo aquele mar de gente que queria fugir. Deixaram-se ficar para trás. Seguiram-se cerca de 18 horas de espera numa fila interminável, onde só mulheres e crianças estrangeiras atravessavam a fronteira.
Com um frio cada vez mais entranhado nos corpos, água e comida reduzida, viam-se obrigados a manter-se na fila para que não perdessem o seu lugar. Foi então que chegaram aos portões da frente. Vanessa, Pamela e David, os jovens que os acompanhavam, passaram. Philip, nigeriano, também escapou, já Domingos e Mário, ambos com passaporte português, ficaram retidos.
Contra-argumentaram em ucraniano para que a comunicação fosse facilitada, mas a resposta que obtiveram foi “senhor português, digo-te que os africanos têm de esperar”.Explicaram aos guardas que eram portugueses e que por isso podiam entrar na Polónia sem visto. Não quiseram saber. Depois de barrados, foram obrigados a deslocar-se até ao final da fila.
"O rapaz foi enxovalhado ali, à força toda." Ele continuou a dizer que só queria fazer uma pergunta e o guarda partiu o taco de madeira que tinha a tentar bater-lhe. Deu-lhe com o taco nas pernas", denuncia Domingos.
Passaram-se mais de 30 horas sem que conseguissem dormir, até chegarem uma segunda vez junto dos portões. Ouviram novamente que os “africanos têm que esperar, não importa o passaporte que tenham”. Foi então que Domingos abordou uma outra militar. “Depois de lhe dizer que éramos portugueses, para grande surpresa minha, ela perguntou-me se Portugal pertencia à União Europeia.” Foi aí que percebeu o quão grave a situação se estava a tornar. Quase sem bateria nos telemóveis e sem conseguir contactar os familiares, os jovens começaram a entrar em pânico. Assinalava-se o terceiro dia de espera.
As comunicações com o embaixador de Portugal na Polónia foram-se mantendo para que os guardas fossem chamados à razão, sempre sem sucesso. O último e quinto dia foi o pior, diz Domingos.
Afirmam ter visto um rapaz negro, que tinha acabado de chegar à fronteira, dirigir-se a um dos guardas, porque queria fazer-lhe uma pergunta. Vinte segundos depois foi a vez de um cidadão ucraniano fazer uma pergunta, e a atitude foi outra, “bem mais apaziguadora”.
Revoltado, diz que “os guardas estavam a levar isto como uma brincadeira. Para eles era uma fonte de entretenimento. Estavam a brincar com as vidas das pessoas”. Seguiram-se atos humilhantes. “Diziam: ‘quem quiser entrar que se sente’; depois ‘quem quiser entrar que se levante’; depois ‘os negros para a direita’ e íamos todos para a direita, e depois os ‘indianos para a esquerda’. Começámos a perceber que era mesmo para fazer troça de nós.”
Reconhecendo que quase nenhum dos seus direitos, integrantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram ali respeitados, os jovens de 22 e 24 anos não deixam de reforçar esta realidade. Sem saberem como lidar com a situação, falar na Ucrânia ou na Europa é enredo sem fim. Para eles, a Europa não pode abandonar as pessoas racializadas presas nas fronteiras do conflito ucraniano.
“Não odeio os ucranianos, não são todos iguais, tenho amigos ucranianos que amo como irmãos, mas aquilo que eu vi e vivi naquela fronteira fez com que eu nunca mais queira voltar”, garante Domingos.
“Eu estava a ficar desesperado e a considerar voltar para trás”, admite Mário. Ainda assim, nas poucas oportunidades em que conseguiu falar com os pais, tanto ele como Domingos convenceram-se que o melhor seria ficar por ali. “Os nossos pais disseram-nos que não era a coisa certa a fazer, porque os cidadãos já estavam com armas e, como sabemos, numa guerra, qualquer pessoa pode atirar e matar. Tendo em conta a nossa condição neste país, sabemos que nada lhes iria acontecer”, lamenta.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros acompanhava a situação. Em simultâneo, os pais de Mário também moviam todos os conhecimentos que tinham para falar com as autoridades diplomáticas portuguesas, que lhes deram uma declaração em inglês para os deixarem passar. Numa das noites em que lhes foi possível pernoitar e carregar os telemóveis falaram com a mãe de Domingos, Ana Maria Costa, médica no Hospital de Portalegre. “Descrevemos tudo o que se estava a passar e foi nessa altura que a minha mãe contactou a comunicação social.”Ana Maria Costa deu uma entrevista à RTP a denunciar a situação.
Mas os guardas não quiseram saber, e os atos de racismo voltavam a repetir-se, salientam os jovens portugueses. Os dias iam passando e os pais dos jovens não conseguiam controlar o que se passava. Ficaram cinco dias na fronteira. As mães ligavam-lhes muito abatidas e, no caso de Domingos, preferia até não falar com a sua por chamada. “Tenho que lhe dar todo o crédito, porque foi a primeira pessoa a decidir que tinha de fazer barulho senão não nos tirariam de lá. Não há forma sequer de relatar. Nem consigo imaginar como ela se estava a sentir, a única coisa que sei é que não dormia”, lamenta.
As situações de Domingos Ngulonda e Mário Biaguê foram dois casos entre vários que se vieram a saber. O mesmo aconteceu com milhares de estudantes nigerianos, congoleses e de outros países africanos e do Médio Oriente. Após chegarem às redes sociais e, posteriormente, aos media, a African Union, organização que reúne 55 países do continente africano, e o presidente nigeriano, Muhammadu Buhari, condenaram o tratamento dado aos cidadãos africanos. A denúncia não recaiu só sobre o impedimento dos guardas na saída da fronteira mas também sobre a violência e das agressões exercidas pelas autoridades ucranianas.
No comunicado divulgado a 28 de fevereiro de 2022, assinado por Macky Sall, presidente do Senegal, e por Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana e ex-primeiro ministro da República do Chade, queixam-se dos “tratamentos dissimilares”, “inaceitáveis” e “chocantemente racistas” que violam da lei internacional."
Pronunciaram-se ainda na reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas no mesmo dia. Martin Kimani, embaixador queniano nas Nações Unidas, condenou veementemente um racismo que acredita ser “prejudicial ao espírito de solidariedade que é tão necessário” e que “os maus-tratos a africanos nas fronteiras da Europa têm de parar imediatamente, quer seja em relação aos africanos que fogem da Ucrânia ou em relação àqueles que atravessam o Mediterrâneo”.
Os relatos que foram chegando revelaram que o Governo polaco não estava a deixar todos os refugiados entrar no seu país, ao contrário do que afirmou publicamente. As pessoas racializadas começaram a ser perseguidas por Hooligans nacionalistas, ligados à extrema-direita polaca. Em simultâneo, começaram a difundir informações falsas sobre crimes cometidos por pessoas que fugiram da Ucrânia, tendo sido identificadas pela polícia polaca.
Pelo menos três indianos foram alvos destes atos discriminatórios que já se registaram em território europeu. O site Notes from Poland mencionou que especialistas mencionam que estes grupos podem fazer parte de uma campanha russa de desinformação”
A European Network Against Racism (ENAR) denunciou a forma como alguns jornalistas dos meios de comunicação ocidentais “insistem em banalizar o racismo a um novo nível, com alegações de que os ucranianos exigem protecção, classificando-os como merecedores de apoio ao contrário dos migrantes ou refugiados não europeus”, lê-se num comunicado da rede de organizações não-governamentais antirracistas. A rede defende que a Europa tem a responsabilidade de denunciar e lutar contra o racismo sistémico que submete uma percentagem da sua população a um “estatuto de segunda classe”. As políticas de fronteira europeias que vêm impedindo a passagem da maioria dos cidadãos estrangeiros também exigem um escrutínio rigoroso, garante a organização.
Apenas na resolução de 1 de março de 2022 sobre a agressão russa contra a Ucrânia, é que o Parlamento Europeu se referiu ao sucedido: “Condenamos o racismo experimentado pelos estudantes africanos e do Médio Oriente que foram impedidos de embarcar em autocarros e comboios na Ucrânia para chegar à fronteira ou impedidos na fronteira sem que pudessem procurar segurança”.
Já o chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell, pediu também às autoridades das fronteiras ucranianas para darem “oportunidades iguais” aos africanos que tentam sair da Ucrânia.
Entretanto, representantes do movimento Black Excellence Global Network foram recebidos pelo presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio de Belém, a 10 de março. Apelaram para que sejam respeitados os direitos humanos de comunidades africanas, árabes, brasileiras, indianas e outras nas fronteiras ucranianas com países vizinhos da UE e pediram uma “resposta política” para fazer frente “à situação desumana de violação dos direitos humanos e salvaguardas de proteção internacional”.
Os representantes do movimento desafiaram ainda o governo português a não deixar ninguém para trás, a dar o mesmo tratamento a todos os refugiados, ucranianos e aos oriundos de outros países não-europeus que se encontram indocumentados na Ucrânia, incluindo os estudantes não ucranianos que fogem da guerra russo-ucraniana”.
Myriam Taylor de Carvalho, uma das signatárias da declaração coletiva que o movimento assinou, explicou unicamente ao Setenta e Quatro na apresentação da declaração coletiva, que o problema não se esgota na resposta humanitária à invasão russa da Ucrânia, residindo antes na questão da lei política de imigração europeia ser discriminatória. “Existe um sistema de privilégios que está indumentado em função da sorte que alguém tem em nascer em uma determinada zona do globo”, explica. “Procuramos uma resposta imediata ao abrigo da proteção temporária que seja estendida a todas as pessoas, que não se deixem pessoas do lado de lá da fronteira.”
“Nestas crises, seria de esperar que a população afetada recebesse ajuda humanitária igual e imparcial, independentemente de cor, etnia ou local de origem”, aponta, por sua vez, a Associação Pan-Africana de Mulheres numa carta por si tornada pública.
Medyka tem sido a fronteira mais afetada pelas situações de racismo, segundo as denúncias feitas publicamente por diversos estudantes e trabalhadores imigrantes. Embora os africanos constituam 20% da população estudantil internacional na Ucrânia, há uma ausência de embaixadas representativas no país. Estes dados, elencados na carta da Associação Pan-Africana de Mulheres, são também reflexo das palavras dos jovens portugueses que frequentavam agora o quarto ano do curso de Medicina.
Domingos refere que houve uma “espécie de formação” para todos os ucranianos, de forma a saberem e identificarem o bunker mais próximo. Os estudantes estrangeiros desconheciam essa informação.
“Uma das coisas que pesou imenso nesta situação toda de guerra foi efetivamente a universidade. Há semanas que os alunos já se tinham organizado e pedido que colocassem as aulas online para que nos permitissem voltar a casa, devido à tensão que se estava a gerar entre a Ucrânia e a Rússia”, explica Domingos.
Os jovens relatam que as situações de racismo e discriminação na Ucrânia, a partir de entidades ou cidadãos, não são novidade para ninguém. Ambos já tinham passado por elas. Domingos conta que juntamente com um grupo de amigos chegaram a ser seguidos por alguns ucranianos apenas por serem estrangeiros. “Isso acontece com todo o estrangeiro negro na Ucrânia. Se alguém fizesse alguma coisa e eu reagisse, a culpa seria sempre minha”, diz Mário.
A comunidade cigana ucraniana também tem sido alvo de grandes dificuldades e episódios de discriminação. O New York Times noticiou a 6 de março que famílias ciganas tiveram de mostrar os seus passaportes aos policias antes de receber comida, coisa que outros ucranianos não foram obrigados a fazer. Cada criança cigana recebia apenas uma bebida e o equivalente a um pão, enquanto os outros refugiados recebiam o quanto quisessem.