casamento integralista

Odilon Caldeira Neto: "A primeira organização de massas no Brasil era fascista"

Em poucos anos, a Acção Integralista Brasileira tornou-se o maior movimento fascista fora da Europa. Embora a experiência tenha sido curta, os seus ideólogos continuaram a influenciar a política do Brasil durante décadas e as suas ideias e símbolos são hoje recuperados por grupos da extrema-direita terrorista.

Entrevista
31 Março 2022

Na madrugada da véspera do dia de Natal de 2019, a sede da produtora Porta dos Fundos foi alvo de um atentado com engenhos incendiários, dias depois do lançamento de um dos seus já tradicionais especiais de Natal. N'A Primeira Tentação do Cristo o grupo de comediantes retrata, entre outras coisas, Jesus numa relação com outro homem e sua mãe, Maria, enquanto adúltera. 

O ataque foi reivindicado, em vídeo, por um autoproclamado Comando de Insurgência Popular Nacional, parte de uma suposta Família Integralista Brasileira. Aproveitaram ainda para acrescentar que os comediantes tomaram “uma atitude blasfema, burguesa e anti-patriótica” enquanto “militantes marxistas culturais”, praticando “um crime de lesa-pátria”. Sobre o ataque, levado a cabo por “integralistas que não renegam o seu “papel histórico” e se incumbem de ser 'a espada de Deus'”, afirmaram “satisfazer parcialmente” as “inquietações do espírito popular”.

Na mise-en-scène do vídeo aparece em destaque a bandeira da Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1932 e que em poucos anos se tornou no maior movimento fascista de massas da história do Brasil – e o maior fora da Europa. Ladeando a bandeira de inspiração nazi, com um sigma ao centro no lugar da suástica, homens encapuzados envergam camisas verdes, iguais às usadas como uniforme e “manto sagrado” pelos militantes e dirigentes da AIB.

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neointegralistas brasileiros
Imagem do vídeo onde neointegralistas reivindicam ataque à Porta dos Fundos.

São estas mesmas camisas que dão corpo ao livro O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo, escrito por Odilon Caldeira Neto e Leandro Pereira Gonçalves e editado em 2020. Tendo como mote o ataque à Porta dos Fundos, os autores retornam a 1932 para nos elucidar sobre o nascimento e crescimento dum movimento influenciado pelo fascismo italiano e o integralismo lusitano, e daí encetar um “trânsito histórico” que desemboca no presente, onde movimentos neointegralistas e de extrema-direita são nutridos e inspirados pelo integralismo dos anos 1930, chegando a tomar acções terroristas.

Para entender como o fascismo e os seus ideais atravessaram o Atlântico e encontraram no Brasil chão fértil para alastrar, adaptando-se ao clima, às tensões políticas e às relações raciais, o Setenta e Quatro conversou com Odilon Caldeira Neto, historiador, professor e investigador das extremas-direitas brasileiras, das suas raízes históricas e dos seus diálogos internacionais.

De onde veio a necessidade de pensar o integralismo brasileiro em articulação com a nova extrema-direita brasileira?

A publicação do livro vem de um certo cálculo académico e intelectual. Tornou-se mais pertinente trabalhar este tema a partir do momento em que existe um governo de extrema-direita no Brasil e há um atentado terrorista levado a cabo por neointegralistas. Existe uma larga historiografia sobre a história do integralismo no Brasil, mas não é consolidada. São dezenas ou centenas de estudos, mas não havia ninguém que o tivesse tratado numa linguagem acessível para o grande público e com uma rigidez académica que pensasse esse trânsito histórico entre o integralismo histórico e o atual.

Pensámos que se não o escrevêssemos ele seria escrito por outra pessoa, muito provavelmente um jornalista que não iria dar o rigor conceptual que nós queríamos dar ao tema. Isso aconteceu, inclusive. Um jornalista brasileiro escreveu um livro sobre o integralismo histórico dos anos de 1932 a 1935 e vendeu bem. Percebemos que existe uma procura muito grande da sociedade em querer entender o que são estes movimentos, de onde surgem. No apogeu meteórico de Bolsonaro, muitas pessoas se questionaram: "de onde veio?", "para onde iremos?".

E então quiseram fazer uma genealogia.

Exatamente. Pegámos no ataque à Porta dos Fundos como mote para a escrita do livro, mas, no fundo, fomos pensar uma cultura política fascista transversal à história do Brasil. Não é preciso estar escrito em letras garrafais no livro que estamos também a falar sobre a formação do bolsonarismo. Ou sobre todo o imaginário político que é trazido e revivido por gerações de intelectuais e militantes conservadores e reacionários brasileiros e que desemboca no bolsonarismo. 

Queríamos entender como o bolsonarismo é uma novidade política, mas de como a extrema-direita brasileira não pode ser interpretada como tal. Se queremos compreender a articulação, a fundamentação, a penetração e a longevidade da extrema-direita brasileira, é necessário pensar esse trânsito entre o passado e o presente. 

É possível ir-se mais atrás? Quais são as origens históricas da extrema-direita no Brasil? 

A formação de uma extrema-direita no Brasil remete à própria formação republicana brasileira em 1889, com a proclamação da república. Constroem-se alguns agrupamentos pré ou proto-fascistas ou nacionalistas de direita. E algumas ligas nacionalistas que foram depois embebidas do próprio quotidiano nacionalista da I Guerra Mundial, com a influência das ligas nacionalistas europeias no Brasil. Sobretudo a partir da década de 1920, começaram a surgir os primeiros agrupamentos fascistas no Brasil.

O integralismo brasileiro não é o primeiro agrupamento de tipo fascista no Brasil, mas é, sem dúvida, a principal força de organização de tipo fascista e um receptáculo de organizações precedentes, como a Legião Cearense do Trabalho, do tenente Severino Sombra, ou a Ação Imperial Patrianovista Brasileira, que comungava de tendências reacionárias e monárquicas contra o ideal republicano. São uma espécie de antecâmara do fascismo no Brasil.

Mas não conseguiram singrar?

Eram agrupamentos inspirados pelas novas formações das direitas radicais, mas que não se conseguiram articular por uma diversidade de fatores. É a partir da criação da Acção Integralista Brasileira (AIB) que a extrema-direita brasileira consegue a formalização de um agrupamento político coeso na sua multiplicidade de movimentos e organizações que convergem na Sociedade de Estudos Político, primeiro, e depois na AIB.

Os anos 1930 são um momento de crise da política oligárquica. Essa política era objeto de discussão e descontentamento de muitas parcelas políticas que não conseguiam representatividade. Uma nova intelectualidade nacionalista não se via representada pelos modelos oligárquicos de se fazer política. E os anos 1930 também são o início de um longo processo de industrialização do Brasil.

"Há uma cultura política fascista transversal à história do Brasil."

Essas tensões que se manifestam de uma forma tão presente na sociedade brasileira, sobretudo nas classes médias urbanas, tornam-se no espaço ideal para a receção de ideais de extrema-direita. A organização de movimentos comunistas e anarquistas, de movimentos sociais e revolucionários à esquerda, também vai criar o temor do comunismo. O anticomunismo torna-se uma força de mobilização da extrema-direita. 

E esta extrema-direita era uma vaga a ser preenchida. O integralismo consegue trazer respostas imediatas para problemas urgentes. Consegue, também, integrar uma parcela da sociedade brasileira que estava afastada da participação política. Muitos intelectuais jovens, emergentes, veem no integralismo brasileiro uma forma de escalada política. Isso explica, em certa medida, um pouco dessa capacidade de convergência de correntes no integralismo. E também a transformação, em poucos meses, de um pequeno agrupamento político surgido em São Paulo na primeira organização política de massas no Brasil. A primeira organização política de massas no Brasil não é comunista, não é sindicalista ou anarquista. É um agrupamento fascista. 

Plínio Salgado, o líder da AIB, veio à Europa em 1932 e conheceu pessoalmente Benito Mussolini.

Sim, ele passa por diversos países, inclusive pela Itália. Na narrativa integralista terá sido um grande e belo encontro, mas foi algo protocolar. Os registos dos diários de Mussolini mostram que foi uma coisa de 15 minutos. Mas um político minimamente hábil entende que havia esta abertura para uma organização de tipo fascista, e capitaliza politicamente esse encontro. Formou-se ali a ideia de uma organização política, e posteriormente de um partido de tipo fascista. Começou a gestação do integralismo.

De 1932 a 1933, o integralismo se transforma numa força nacional. A sua capacidade de penetração nas regiões do interior do Brasil e a sua capacidade de nacionalização — e estamos a falar de um país continental — são de um caráter imediato e de um grau de sucesso impressionante. 

As forças de esquerda estavam a se desenvolver nas grandes cidades. O integralismo, também por conta dos seus valores altamente ligados à Igreja Católica, à busca pela nacionalidade interiorizada, contra o cosmopolitismo do litoral brasileiro, passa a ser um fator de atração. Vivia-se um momento de discussão da nacionalidade brasileira. 

"Uma característica do fascismo é ser um fenómeno internacional. Os movimentos fascistas moldam-se às urgências de repensar cada nacionalidade."

Há uma crise de nacionalidade? Na Europa foi isso que aconteceu. Como é que se processa no Brasil?

O início do século XX no Brasil, antes da chegada do fascismo, é um momento de discussão da nacionalidade. Inicialmente, o pensamento autoritário e nacionalista brasileiro é baseado nas ideias de Oliveira Vianna, de Alberto Torres e de outros intelectuais, que vão pensar as raízes do atraso brasileiro. Na necessidade da criação de um novo povo brasileiro, por meio de processos de branqueamento, de uma estrutura altamente hierárquica, e a partir dessa primazia.

Em certa medida, essa discussão é sobre uma nacionalidade nascente, mas que deve já criar-se a si mesma. A maneira como pensam resolver os problemas inerentes a essa nacionalidade tardia dá um pouco a tónica desse sentido da busca por uma criação de nacionalidade que vai olhar muito para si e para o interior do país, e vai tentar pensar a partir dessa composição multiétnica a ideia da criação de um novo brasileiro. 

Existe uma necessidade de uma imaginação de uma nacionalidade. E de entender o que é o brasileiro. Evidentemente, não pode remeter simplesmente ao passado lusitano, mas, afinal de contas, é uma nação nascente que tem de fazer um elogio às autoridades ou a uma hierarquia previamente assente na primazia do homem branco. 

As estruturas que os portugueses lá deixaram.

Exatamente. E, em contrapartida, tem que dar conta da multietnicidade da nação brasileira. Mais do que isso: um estatuto político, de cidadão e votante, que é estabelecido depois da implantação da república. Primeiro a negros e posteriormente a indígenas. 

O integralismo tinha de lidar com essa questão. Por definição, os fascismos têm a ideia de um passado glorioso que é retomado num processo de regeneração e criação de uma nova humanidade ou civilização. O integralismo queria muito olhar para um certo passado mítico dentro do próprio processo da colonização. Nisso me parece que é bastante instrumental a relação com a ideia do mito da democracia racial, em que se coloca a colonização como um processo positivo e pacífico.

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militante integralista
A ideologia racial integralista permitia militantes negros e tinha uma visão idealizada e paternalista do indígena. A saudação romana era acompanhada da palavra "Anauê", que em tupi significa "és meu irmão". | Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro

 A figura do mestiço, também enxergado como possível militante ou eleitor, é o tipo ideal do homem integral. Porque é ele que vai estar longe dos grandes centros urbanos, dos ideais alienígenas àquilo que se imaginava ser a sociedade brasileira. A partir desse caráter do "homem caboclo", do interior, é necessário criar o "homem puro", o homem que não está eivado das modas que chegam do exterior, das ideias revolucionárias à esquerda e que é, a partir de uma noção de um forte caráter cristão, o reduto da nacionalidade.

O integralismo vai assumir uma nacionalidade que, primeiro, precisa de uma via autoritária de construção. É necessária uma nação forte e é preciso que essa autoridade seja atribuída à própria nacionalidade. A miscigenação é um fator incontornável. Então constrói-se um tipo brasileiro que vai, a partir dessa fusão das três “raças”, encontrar a verdadeira nacionalidade e criar um tipo ideal de brasileiro, que será fascistizado. 

Portanto, o “homem novo” que na Alemanha seria o ariano puro, no Brasil é o aperfeiçoamento da “união” entre o europeu, o indígena e o negro. 

Sim, mas é uma relação que não é dividida igualmente entre as três "raças". A primazia do homem branco é absoluta no integralismo. A religiosidade integralista é ocidental. É branca, cristã. Qual é o papel do indígena ou do negro no Brasil, na nacionalidade e no próprio integralismo? Servir os ideias dessa nacionalidade imaginada pelo integralismo. Assimilam a cultura branca e são assimiláveis à medida que são fascitizados. Houve muitos negros de destaque no movimento integralista, eram usados na propaganda política do movimento.

O integralismo é "melhor" enquanto fascismo porque entende as urgências da nacionalidade brasileira. Entende as angústias dos homens do campo, dos que defendiam os valores conservadores da nação brasileira. À mesma medida que esse homem mestiçado é o reduto da nacionalidade, ele tem o problema da falta de autoridade.

"O integralismo chegou a sítios onde o Estado não se fazia presente. Criou escolas, hospitais, distribuiu medicamentos."

O autoritarismo passa a ser um fenómeno central, porque resolve as mazelas dessa miscigenação. O ideal dessa nova humanidade será de retorno a uma noção monoteísta da civilização brasileira e ao primado do modelo colonial, da centralidade e primazia hierárquica branca. 

O racismo não escancarado do integralismo acaba sendo muito hábil e muito útil para a sua penetração na sociedade brasileira. Torna-se nacional, pois não pensa abertamente a primazia do homem branco como pensavam os núcleos nazistas no sul e sudeste do país. Esses núcleos nunca conseguiriam penetrar no nordeste do país, até porque não existiam imigrantes alemães, italianos, portugueses em larga escala. É uma característica também do fascismo como fenómeno internacional. Os movimentos fascistas moldam-se às necessidades — ou às urgências, na óptica fascista — de repensar essa nacionalidade. 

Ligando o mito da democracia racial à teoria do lusotropicalismo que foi adaptada em Portugal para responder a certas urgências, ou mesmo no esoterismo de um certo imperialismo espiritual em que Portugal se realizaria no Brasil, há alguma ligação especial entre o integralismo brasileiro e Portugal?

Há pesquisas bastante aprofundadas nesse sentido, inclusive de Leandro Pereira, sobre a presença de Plínio Salgado em Portugal, que pensam um pouco sobre o trânsito intelectual com o integralismo lusitano a partir da formação intelectual dos integralistas brasileiros, sobretudo de Salgado. Por muito que o integralismo brasileiro esteja mais ligado, na sua matriz, ao fascismo italiano, por meio de Miguel Reale [ideólogo da AIB], ou até ao nazismo alemão, por meio do anti-semitismo de Gustavo Barroso [também ideólogo da AIB], a centralidade de Plínio Salgado tem uma influência portuguesa muito forte.

A importância de Portugal é muito grande para a sua imaginação política e para o próprio integralismo brasileiro. Tanto para pensar a composição política, geográfica, étnica, transcendental da própria nação brasileira, como também para qual o papel do Brasil sob a égide do integralismo. 

A ideia é a de que o integralismo teria, inclusive, uma dimensão imperial – está delineado muito tangencialmente, mas está presente. O Brasil integralista poderia ser uma potência imperialista, tendo já um passado de subsídio imperial e a composição multiétnica da nacionalidade, que alimenta um certo espírito imperial. Plínio Salgado retorna a Portugal no fim da AIB e Gustavo Barroso, que já não era integralista na altura, vem a Portugal também. 

É o idealizador do Museu Histórico Nacional Brasileiro e tem um livro chamado Portugal, Semente de Impérios. Já não é o Gustavo Barroso integralista, mas a sua visão de mundo é embebida pela sua experiência integralista. Faz elogios a António Ferro, a António Sardinha. É uma dinâmica que pensa uma experiência dessa nova identidade, dessa nova humanidade, que ultrapassa a exclusividade da própria identidade nacional brasileira. Vê com muitos bons olhos tanto a experiência colonial como a experiência imperial brasileira.

Mencionou há pouco que o crescimento do integralismo foi meteórico. Tudo parecia muito bem organizado, a roupa, os símbolos, os códigos de conduta, as conspirações, os ritos batismais e funerários. Até que ponto é que Plínio Salgado e os outros dirigentes planearam tudo isto? Foi tudo metódico? O crescimento foi orgânico? 

O integralismo construiu uma máquina política muito hábil em poucos meses. A imprensa integralista explica um pouco isso. Os núcleos integralistas eram obrigados a assinar os jornais integralistas, eram instados a produzir jornais e boletins que relacionavam a realidade política integralista às realidades políticas locais. Mas a imprensa não explica isso completamente, até porque o analfabetismo era muito grande. Mais importante que a imprensa foi a capacidade assistencialista do integralismo. Chegavam a lugares onde não existia uma presença do Estado de maneira forte. 

Criaram escolas...

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crianças de uniforme integralista
Juventude integralista, os plinianos. Fonte: Acervo AIB/PRP-Delfos/PUCRS

Criaram escolas, berçários, hospitais, centros de educação física, associações desportivas, ambulatórios, até faziam distribuição de medicamentos. Isso fez com que o integralismo chegasse a  localidades onde existia um vazio, onde o Estado não se fazia presente. As crianças poderiam ir à escola. Eram claramente doutrinadas e muitas vezes eram levadas pelos próprios pais integralistas. Isso criou um sistema de produção de sentido e óptica integralistas, uma maneira de ver a vida desde a infância, desde o momento nascente da formação política e humana da criança.

O integralismo pensou uma estrutura onde pudesse estar presente em todas as esferas e instâncias do indivíduo. O integralista que não tinha dinheiro encontrava no integralismo um momento de socialização, de formação política e intelectual, de articulação e interatividade política.

O integralismo se tornou numa máquina de doutrinação e de publicidade. Pensaram revistas voltadas para a política e para o público feminino. Algumas delas coloridas, o que era uma grande inovação para a época. Tinham emissoras de rádio, fizeram filmes. Isso demonstra uma preocupação do integralismo em se fazer sempre presente.

E conseguiu moldar-se às particularidades regionais. No nordeste brasileiro, onde existia uma cultura mais conservadora, o integralismo vai ter uma ligação muito grande com os intelectuais conservadores e a igreja católica. No sul do país, o integralismo absorve muitos dos imigrantes que não conseguiam postos de trabalho ou que não se relacionavam com as propostas políticas existentes. Os imigrantes italianos, alemães ou de outras nacionalidades, e os seus filhos, que não conseguiam espaço político, nem tinham agencialidade, viam no integralismo a única forma de articulação política. E muitos nem eram católicos, mas protestantes. 

Ao mesmo tempo vai desaparecer muito rápido, com o início da era Getúlio Vargas.

Sim, a partir de 1937. Primeiramente, porque o integralismo era um movimento de massas, que, como todo o movimento fascista, planeava e propagandeava um poder político que na realidade não tinha. O integralismo dá apoio ao golpe de Getúlio Vargas acreditando piamente que conseguirá participação no seu governo e manifestar a sua força política, transformar o Estado Novo em "Estado Integralista". No entanto, isso nunca foi a realidade.

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o fascismo em camisas verdes - livro

O génio político de Getúlio Vargas conseguiu cooptar algumas das bandeiras integralistas, algumas das suas lideranças intelectuais e políticas. O próprio Plínio Salgado é atraído para o golpe. O ministério da Cultura e da Educação havia sido prometido a Salgado, e ele acreditava que isso seria uma chave para a transformação da cultura brasileira. Não aconteceu. Isso intensificou um sentimento de descontentamento muito grande entre os integralistas.

Essa estratégia de alianças não resultou em absolutamente nada para os integralistas, o que vai alimentar a sua tentação golpista. Em 1938 tentam levar a cabo alguns golpes, em algumas disputas regionais, e depois tentam mesmo matar Getúlio Vargas, sem sucesso. 

A partir de 1938, depois da tentativa de putsch integralista, eles são colocados na ilegalidade. De aliados ocasionais num golpe de Estado com componentes anti-comunistas e anti-semitas, que dialoga mutuamente com o imaginário conspiracionista dos integralistas através do "plano Cohen" [documento anti-semita e anti-comunista forjado por militares brasileiros com a intenção de instaurar a ditadura do Estado Novo], passam à ilegalidade. Vão tornar-se objeto de intensa perseguição política. São perseguidos politicamente tal como os comunistas. Há relatos de integralistas que foram presos e colocados na mesma cela com comunistas. 

Houve uma fragilidade política dos integralistas em pensar que conseguiriam fazer uma espécie de "marcha sobre Roma", mas também uma certa habilidade política do próprio Vargas, que consegue construir um Estado Novo que tem já características fascistas, que bebe do corporativismo de influência italiana, e que esvazia a força política dos integralistas. Muitas das propostas integralistas foram absorvidas e neutralizadas pelo próprio Estado Novo. A partir do início da ditadura de Vargas, o integralismo já não ocupa o espaço onde o fascismo normalmente cresce.

As massas populares.

Exatamente. A nacionalização das massas, as campanhas de massas, são encampadas pelo Estado Novo brasileiro.

O Estado Novo vai criar essa noção de Brasil?

Sim. Uma noção que não é fascista, mas que é autoritária e esvazia o fascismo. 

Vargas é uma reação de poder instalado ao integralismo?

Não diria isso. Vargas é fruto de uma reação à política oligárquica, que é fruto da aliança entre dois estados-chave na política brasileira: Minas Gerais e São Paulo. Vargas vem da elite política do Rio Grande do Sul, e com a ligação aos militares ele constrói uma alternativa política à oligarquia.

O autoritarismo da era Vargas dá continuidade a algum aspecto do integralismo? Disse que "esvaziou o fascismo", mas que também o "absorveu".

Ele absorve algumas questões: a crítica aos partidos políticos, ao liberalismo, à fragmentação da nacionalidade por meio dos regionalismos e das suas elites políticas. São elementos muito presentes no Estado Novo. Não diria que o processo educacional autoritário do Brasil da Era Vergas seja uma incorporação do modelo integralista, mas há uma similaridade em torno da ideia de autoritarismo, na qual converge o pensamento nacionalista autoriário que antecede o Estado Novo. 

A ideia da necessidade de criação de uma nação sob uma égide autoritária é um elemento de convergência entre fascistas, positivistas, militares e assim por diante. O Estado Novo brasileiro incorpora algumas premissas do integralismo brasileiro, mas não é como se ele passasse por um processo de fascistização. Chamar-lhe-ia uma incorporação desfascistizada. 

Então Vargas rompe com o poder tradicional.

Rompe. Ele é uma nova expressão política e significa um rompimento com as políticas oligárquicas, ainda que lhe dê algum espaço, claro. Mas é uma novidade política.

Ele passa por várias fases, também, como bom populista que era.

Exato. A própria noção do trabalhismo varguista vai incorporar reivindicações das classes trabalhadoras. Vargas é, muito provavelmente, a liderança política mais importante da história brasileira. Vai lidar com as questões do trabalho, da nacionalidade, da autoridade. 

Em 1964, dez anos depois do suicídio de Vargas, inicia-se a ditadura militar. Como é que a caracterizaria? Muitos portugueses exilaram-se lá depois de 1974. Era uma ditadura fascizante?

"As ditaduras brasileiras têm alguma inspiração fascista, absorvem algumas das suas ideias, mas levam a cabo uma despolitização e desmobilização da sociedade."

Não. Era uma ditadura militar autoritária. O fascismo era colocado como referência. A experiência do Estado Novo foi de neutralização das variações fascistas. O fascismo no Brasil, a partir do golpe do Estado Novo, acaba perdendo a sua capacidade política, mas contribui para o imaginário político da extrema-direita brasileira. A forma como se vai imaginar o anticomunismo no Brasil é inspirada no fascismo. Mas é um elemento apropriado por sectores do pensamento autoritário, não a partir de uma primazia do fascismo. A ditadura do Estado Novo e, sobretudo, a ditadura militar não pensam em elementos como a mobilização constante das massas, uma característica do fascismo. 

As ditaduras levam a cabo, sim, uma despolitização e desmobilização da sociedade. Os ritos que foram, e são, muito importantes para os fascistas não são encontrados nas ditaduras brasileiras, especialmente na militar. 

A transição democrática rompe efetivamente com essas experiências? Ou melhor, onde é que começa essa transição democrática?

Há alguns debates sobre isso. Se é no fim do bipartidarismo, se é a partir do início da assembleia nacional constituinte ou se é, efetivamente, a partir do primeiro civil eleito por meio de eleições livres e diretas. É um longo processo que começa em 1975 e vai até 1989. 

Mas depois de tantas experiências autoritárias como se efetiva essa transição? Onde ficam os sectores que se alimentavam da primazia da autoridade?

A sociedade brasileira imagina uma condição essencialmente democrática a partir da própria transição para a democracia. O problema do autoritarismo é relegado para os sectores militares. É por conta disso que existe a discussão de se referir a ditadura como "civil-militar". Até que ponto a incorporação de civis na ditadura militar explica a sua longevidade e a sua penetração na sociedade?

Quando se constrói a ideia das eleições diretas, da defesa da democracia, quando é fundado o Partido dos Trabalhadores, começa a construção de outras alternativas mais à direita, como o PSDB, e tem-se a noção de que a sociedade civil é democrática. Os militares é que são os redutos, os resíduos, ou os entulhos, autoritários. Isso leva também a uma certa tradição brasileira de não discutir os seus legados autoritários e traumáticos. A escravidão também não é discutida de uma maneira efetiva até muito recentemente, até à política de quotas, que introduz a questão da reparação histórica.

Estabelecer a questão autoritária somente ao caudilho, seja a Getúlio Vargas ou aos militares, é muito confortável e reconfortante, mas irrealista. A sociedade brasileira é uma sociedade profundamente violenta, hierárquica, racista.

E a Comissão da Verdade brasileira é instaurada muito tarde, comparando com os casos do Chile ou da Argentina.

É como se as experiências autoritárias brasileiras estivessem encobertas por breves experiências democratizantes que não deixam que se discuta o passado autoritário. A transição democrática leva ao fenómeno da "direita envergonhada", onde não se discute o papel da sociedade civil na construção do autoritarismo. 

Porque a ditadura militar brasileira tem a sua dimensão civil, inclusive no seu apoio. Os índices de popularidade da ditadura têm picos absolutos. Claro, são itens, dados mapeados, mas isso reflete alguma verdade. A  sociedade, em certa medida, desejou e apoiou essas experiências. E a transição democrática constrói essa condição de autoritarismo ligado ao sector militar. Então, os militares é que são os brutamontes, os autoritários, as pessoas do passado, e a sociedade passa a não buscar uma discussão do seu passado recente e traumático. E decide não lidar com ele.

A comissão nacional da verdade é instituída pelo governo de Dilma Rousseff, não é sequer pelo de Lula da Silva. Isso gera o reaparecimento dessas feridas encobertas por essa falsa noção de uma sociedade essencialmente democrática. Uma sociedade que assim se imagina não discute a sua dimensão civil na composição de uma ditadura civil-militar. 

Notamos isso de uma maneira escancarada no surgimento dessa nova direita brasileira. O apelo aos militares, o ressentimento às políticas afirmativas, o rechaço de quaisquer elementos que demonstrem efetivamente uma possibilidade de democratização da sociedade brasileira. Estabelecer a questão autoritária somente ao caudilho, seja a Getúlio Vargas ou aos militares, é muito confortável e reconfortante, ao mesmo tempo que é irrealista. A sociedade brasileira é uma sociedade profundamente violenta, hierárquica, racista.