No Brasil, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia da covid-19 tem tido sucesso inigualável nas redes sociais. Graças à cobertura incisiva de vários internautas e à pressão exercida sobre os senadores responsáveis, a CPI passou de processo burocrático a fenómeno cultural. E pode mesmo ditar o fim do bolsonarismo.
Nada parecia capaz de realmente abalar a popularidade de Jair Bolsonaro: a Amazónia em chamas, as constantes ameaças à democracia, os escândalos de corrupção, o escárnio em relação às vítimas da pandemia, a falta de decoro, o nepotismo, o desemprego e a fome, o preço alto do gás, da luz, da carne. Nem, sobretudo, o meio milhão de mortos pela covid-19.
Havia sempre uma narrativa pronta que o desresponsabilizava das tragédias que infligem o país desde que tomou posse, em janeiro de 2019. O seu grupo de fiéis apoiantes (cerca de 30%) era o suficiente para levá-lo à segunda volta nas eleições de 2022.
Finalmente, as coisas começaram a mudar com os altos índices de audiência da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid, que começou a 27 de abril de 2021. Trata-se de uma investigação aberta pelo poder legislativo a fim de recolher informações através de depoimentos e testemunhas. Se for o caso, os resultados serão encaminhados para serem apreciados pelo Ministério Público.
A atuação da CPI da covid é considerada muito importante por 66% da população brasileira. Isso pode representar uma virada no sentimento antissistema que elegeu Bolsonaro.
Desde o início da pandemia, Bolsonaro tem ativamente boicotado as medidas contra o vírus, minimizando a doença, que seria somente uma “gripezinha”, criticando medidas de confinamento, indo contra o uso de máscara, divulgando informações falsas, dificultando o acesso a vacinas, apostando na imunidade de rebanho natural, mesmo que à custa de milhares de mortes. Sem esquecer a promoção de remédios comprovadamente ineficazes, como a hidroxicloroquina e a ivermectina.
Ainda assim, até então a aprovação do seu governo mantinha-se estável, graças à estratégia de transferir a culpa ora para os governadores, ora para o Supremo Tribunal Federal.
Segundo dados obtidos pelo jornal O Globo, a CPI obteve mais engajamento online em maio que a discussão sobre vacinas, a morte do ator Paulo Gustavo e o Big Brother. No primeiro dia, a CPI atingiu 37,85% das publicações no Twitter e Facebook no Brasil. E, de facto, os números comprovam-no: a rejeição do presidente coincide com o momento em que o inquérito parlamentar virou assunto nacional. Inclusive, não seria exagero dizer que está sendo acompanhado ao vivo pela população brasileira tal qual um reality show.
Além da TV Senado, a melhor ferramenta para entender o que está acontecendo em Brasília é o Twitter, através de perfis como @jairmearrependi, @tesoureiros, @carapanarana e @anarcofino – este último, o antropólogo Orlando Calheiros, também faz excelentes lives na plataforma de streaming Twitch.
No entanto, o perfil que mais se sobressai é o @camarotedacpi, que funciona como uma cobertura, minuto a minuto, do que acontece no Congresso. A bio bem-humorada dá o tom do tipo de análise por vir: “Pega a pipoca e vem acompanhar a CPI da Pandemia com a gente”. São 90 mil seguidores (ou, como eles chamam, CPI Lovers), entre veículos de comunicação, cientistas, deputados e senadores.
⚠️ Senador Renan Calheiros (@renancalheiros), relator da #CPIdaCovid, acusou líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, de comandar "um dos maiores esquemas de roubalheira" do país.
— Camarote Da CPI (@camarotedacpi) August 31, 2021
Embora o Twitter não seja a rede social mais usada no Brasil, tem a vantagem do acesso mais fácil aos perfis oficiais, permitir a cobertura ao vivo, por escrito, em formato de fios (threads), além de ser mais horizontal, menos suscetível a sabotagens do algoritmo. Tudo isso viabiliza o acesso a informação e a interação de forma mais democrática.
“Fomos surpreendidos com o sucesso porque outras comissões não tiveram o mesmo alcance, como a CPMI das Fake News (responsável por investigar o “Gabinete do Ódio”)”, explicam os moderadores do @camarotedacpi em entrevista exclusiva ao Setenta e Quatro. Os senadores considerados da oposição na sua maioria interagem com a página; os do governo não.
“É uma interação muito orgânica, que surgiu de forma espontânea. Logo no primeiro depoimento, começamos a marcar os perfis dos senadores em tweets que desmentiam o depoente. A resposta foi muito rápida e percebemos que tínhamos um canal aberto. Nossa interação é pública e nos focamos em passar informações aos senadores que seja de relevância ao depoimento”, continuaram os moderadores.
Quem está por trás da conta é um mistério: a conversa ocorreu por escrito sob a condição de anonimato até mesmo para a jornalista. Mas é razoável supor que sejam pessoas que acompanham de perto as movimentações online da extrema-direita.
“Todos os documentos que lidamos são públicos, são vídeos em redes sociais, registos de notícias e de postagens. Quando identificamos que os próprios depoentes ou alguns senadores estão expressando meias verdades ou falsas afirmações, contrapomos essas declarações a informações prévias públicas e também informações juntadas pela CPI”, contam.
E, de facto, não é preciso ser nenhum hacker para captar as contradições dos membros do governo. Afinal, são uma trupe de bufões que se elegeu através de “lacradas” na Internet, para entretenimento de seu público.
“As pessoas se interessam por política de uma forma genérica, mas não entendem como funciona uma CPI. E se frustram porque têm a expectativa que a CPI vai prender o Bolsonaro. A CPI não tem esse poder", disse Orlando Calheiros.
Enfim, o feitiço começa a virar contra o feiticeiro. Em maio, por exemplo, Fábio Wajngarten, então secretário de comunicação, declarou que não estava trabalhando durante o lançamento da campanha “Brasil não pode parar”, pois estava em isolamento por ter contraído covid-19.
No entanto, nesse mesmo período, participou numa live com Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, em que diz o contrário: “Estou trabalhando normal, tenho feito calls com os ministros, aprovado campanhas, conversado com criativos das agências de publicidade”. O vídeo em questão ainda está no ar no YouTube.
Segundo uma sondagem realizada em 20 de julho pelo Instituto DataSenado, 66% da população brasileira considera muito importante a atuação da CPI da covid. Isso pode representar uma virada no sentimento antissistema que elegeu Bolsonaro.
“O que acontece em Brasília não vira necessariamente um acontecimento político para a população. É preciso instalar uma cultura de cobertura política que vai além do recorte feito pelo telejornal, porque uma coisa é saber através de um resumo, outra é acompanhar ao vivo”, explica o antropólogo Orlando Calheiros. “As pessoas se interessam por política de uma forma genérica, mas não entendem como funciona uma CPI. E se frustram porque têm a expectativa que a CPI vai prender o Bolsonaro. A CPI não tem esse poder. O tempo da política não é o tempo do espetáculo”.
Alguns senadores estão aproveitando os holofotes para criar uma ligação maior com o público – no fim das contas, são políticos, precisam de votos, sobretudo em ano pré-eleitoral. Até Renan Calheiros (sem parentesco com o antropólogo), raposa velha do fisiologismo político, abriu uma “caixinha de perguntas” no seu Instagram para saber o que seus seguidores gostariam de perguntar ao ex-ministro da saúde Eduardo Pazzuelo. Nesse dia, o mais esperado desde que começou a investigação, ele replicou algumas das sugestões, dando o devido crédito aos internautas, e agradeceu as milhares de propostas que recebeu – foram mais de 5 mil.
Em junho, Renan chegou a declarar no plenário: “Essa é a CPI mais conectada da história, contamos com a participação de todos os brasileiros”. Ele é o membro da comissão com mais seguidores no Twitter, 233 mil. O senador do estado de Alagoas recebe em tempo real o monitoramento com a repercussão das suas perguntas nas redes sociais, e adapta o discurso conforme essa resposta. Durante o depoimento de Pazuello, por exemplo, recebeu críticas por sua postura amena, uma vez que os internautas esperavam que fosse mais incisivo.
A sua popularidade durante a comissão chegou ao ponto de inspirar um funk, “Capricha, Renan”. No entanto, Orlando Calheiros garante não haver risco que a performance possa afetar os resultados da investigação. “Aquele ritual é só a parte visível. Existe um trabalho imenso nos bastidores. Minha esperança é que as pessoas possam começar a debater a política de forma realista, fora da performance das redes. A política real não é complexa, ela só não é espetacular”, explica.
No entanto, com um elenco surrealista e tragicómico que só o bolsonarismo é capaz de produzir, o potencial memético é irresistível, principalmente num país que prefere rir para não chorar – e que é um tanto viciado em Internet. Desde o agente policial que, para complementar a renda, organizava um esquema bilionário de compra de vacina, até o religioso aleatório que enviou um e-mail ao meio-dia oferecendo vacinas, e foi prontamente atendido quatro horas depois no Ministério da Saúde (isso tudo, vale lembrar, depois do governo brasileiro ignorar mais de 81 e-mails da Pfizer). O site Buzzfeed chegou a fazer uma compilação dos melhores memes sobre a CPI.
Sobrou até para a ex-atriz pornográfica norte-americana Mia Khalifa, uma vez que o senador Luís Carlos Heinze, da tropa de choque bolsonarista, mencionou o caso de uma antiga artista porno estar envolvida em pesquisas sobre a eficácia da cloroquina (fruto de uma confusão do congressista entre um meme e uma reportagem do The Guardian). A citação não foi nominal, mas a Internet fez o resto do trabalho, a ponto da própria entrar na brincadeira. Khalifa interage agora com os senadores da oposição, pediu para avisar o senador do Rio Grande do Sul que está no OnlyFans e não no WebMD, e mudou a sua bio no Twitter para “Líder da resposta do Brasil à covid”.
Por mais que tenha uma camada de leviandade fazer piada com um assunto tão sério, é um alívio que uma pauta que favorece a esquerda esteja em voga, tanto na Internet quanto no cotidiano. “Isso não aconteceu do nada, houve um trabalho de influenciadores de esquerda para levantar hashtag e viralizar memes”, explica Orlando Calheiros, “E deu certo, a CPI virou assunto de Uber, é um fenómeno de borda que extrapolou os limites da cobertura política tradicional, e foi atingindo pessoas que normalmente nem parariam para prestar atenção nisso”.
O @camarotedacpi brinca com o ar folhetinesco da investigação. Às segundas-feiras, dia que não tem sessão no Senado, é feita uma retrospetiva com os pontos fortes da semana anterior, acompanhada pelos dizeres: “Previously on CPI”. Já canal de Telegram “Espiadinha”, que acompanha reality shows como Big Brother Brasil e No Limite, passou a narrar, também, a CPI.
Bom dia, CPI lovers! Essa semana temos:
— Camarote Da CPI (@camarotedacpi) August 30, 2021
Terça-feira, 31/08: motoboy Ivanildo Gonçalves
Quarta-feira, 1°/09: Marcos Toneltino, suporto sócio oculto da FIB Bank
Quinta-feira, 02/09: Francisco de Araújo, ex-secretário de Saúde do DF pic.twitter.com/sCpICI1rPk
Ali, de maio a julho, as informações foram repassadas com humor para os mais de 150 mil inscritos. “O canal sempre teve um leve toque de política porque nem todo mundo tem tempo de se informar, principalmente se a linguagem for jurídica. Então, é ótimo se posso traduzir o que está acontecendo através de memes", diz Erica Mathias, de 19 anos e moderadora do canal.
"Assim, foi natural começar a cobrir a CPI. No início, a resposta foi muito positiva e o engajamento gigante. Todos estavam com sede de um arco narrativo que trouxesse respostas”, continuou a moderadora. “É como um filme, no final descobrem a verdade, o culpado é preso. Essa sensação traz esperança.” Dessa forma, pela primeira vez, Bolsonaro começa a perder terreno na arena que mais domina: a Internet.
“Os senadores governistas se elegeram pelas redes sociais e publicitam o seu mandato através de lives e canais em aplicativos de mensagens criptografadas, portanto a prática de tentar viralizar está na base do bolsonarismo”, afirmam os responsáveis pelo @camarotedacpi. “As fake news viralizam muito rápido e suas consequências foram devastadoras. Acreditamos que passou da hora de viralizar a verdade.”
Sem saber, Erica Mathias estava replicando uma tática de convencimento político que fora muito eficaz em 2018. O sucesso da estratégia eleitoral da extrema-direita era justamente o cruzamento algorítmico de política com atividades insuspeitas.
Não é exagero quando a população chama o presidente de genocida. Hoje, sabe-se que ao menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso as medidas corretas tivessem sido tomadas.
“Eles arregimentavam pessoas em fóruns de videojogos, por exemplo. Se alguém reclamava do preço do jogo, eles diziam que era culpa desse governo corrupto, que cobravam impostos e depois roubavam tudo, e assim o condicionavam para esse discurso pseudoliberal”, explica Calheiros. “Em seguida, quando essa pessoa ia pesquisar videogame, o algoritmo sugeria conteúdos de extrema-direita. Foi a partir dessa referência cruzada que começou a radicalização de jovens que entravam no YouTube para procurar Minecraft.”
A realidade parece mesmo ter batido à porta mesmo do eleitorado mais fiel. Orlando Calheiros monitoriza diversos grupos de Whatsapp simpáticos a Bolsonaro desde 2014. Primordialmente, são grupos de bairro, de pais de alunos e de igrejas evangélicas. Cada uma dessas categorias tem as suas demandas: as pessoas do bairro estão preocupadas com segurança pública, e gostam do discurso energético do presidente, o famigerado “bandido bom é bandido morto”.
Os evangélicos, no entanto, embora costumem votar em políticos conservadores por se preocuparem com a legislação referente às pautas morais, acreditam na ressocialização da população carcerária, e não veem com bons olhos esse tipo de incitação à violência. Em suma, são categorias que têm áreas em comum com o bolsonarismo, e são suscetíveis a esse tipo de propaganda, mas que se dececionaram com o governo.
“No começo, esses grupos só falavam de Bolsonaro. Agora, com o desemprego, a inflação, e o colapso da saúde, isso sumiu. Isso mostra uma retração da capilaridade do presidente. Com a pandemia, as narrativas foram ficando cada vez mais restritas aos grupos de apoiantes mais ferrenhos.”, explica o antropólogo. “Então, por mais que eu tenha ficado surpreendido com a popularidade da CPI, era só uma questão de tempo para que o derretimento do presidente aparecesse de uma forma estatística. É como se ele estivesse com uma ferida aberta, sensível a qualquer pancada.”
A grande esperança é que a classe política perceba que o país está prestando atenção e se sinta compelida a atuar de forma eficaz. Segundo o jornal O Globo, Omar Aziz, presidente da CPI, confessou a um interlocutor que tem medo da reação do seu eleitorado caso a investigação não resulte em nada concreto. “Como vou andar pela rua, como vou ser reconhecido pelas pessoas no aeroporto, se fizer isso?”.
Os moderadores do @camarotedacpi apostam que esse tipo de temor possa ter resultados positivos: “Neste momento, os cidadãos estão realmente exercendo seu o papel fiscalizador, e acreditamos que o empenho e zelo dos senadores na condução dos trabalhos tendem a ser mais incisivos, a fim de se obter resultados que sejam positivos. A pressão popular pode encaminhar para um desfecho diferente de outras CPIs, onde não havia esse alcance massivo”.
Atualmente, há inúmeros pedidos de impeachment em trânsito no Congresso, 31 dos quais ligados ao tema da covid-19 (ver a lista atualizada aqui). Todavia, Arthur Lira, presidente da Câmara e aliado de Bolsonaro, tem sua agenda própria, e não parece ter a intenção de dar andamento ao processo. Por ora, apesar dos crimes quase diários, o impeachment permanece um sonho distante, e as esperanças estão nas eleições de 2022.
Não é exagero quando a população chama o presidente de genocida. Hoje, sabe-se que pelo menos 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso as medidas corretas tivessem sido tomadas. O Brasil sempre foi referência mundial tanto em pandemias (como foi no caso do HIV/SIDA), quanto em vacinação.
Em 2010, durante a pandemia de H1N1, foi o país que mais vacinou no mundo, com cerca de 80 milhões de doses em apenas três meses, graças à estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS). É por isso que era desejo da Pfizer fazer do Brasil uma vitrine de vacinação para a América Latina. Inclusive, a farmacêutica prometera esforçar-se para diminuir o tempo de entrega do imunizante. Mas o governo Bolsonaro achou melhor outro caminho. O motivo – ignorância, incompetência, corrupção, ou tudo junto – está a ser desvendado.
Até agora, três tipos de crimes já foram identificados pela comissão: 1) crime de responsabilidade, que é um crime político; 2) crimes comuns, como charlatanismo, crime contra a ordem sanitária, corrupção passiva e talvez corrupção ativa; 3) crime de lesa humanidade, que levaria o relatório para o Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, na Holanda.
É válido ressalvar que outros órgãos passarão a ser responsáveis pelos desdobramentos da investigação após o relatório final elaborado pelos membros da CPI, previsto para o dia 5 de novembro. É preciso, portanto, que a opinião pública continue interessada, de forma realista, não como mero entretenimento, para que justiça seja feita.
Afinal, como diz Caetano Veloso, é preciso estar atento e forte.
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