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Foto: António Cotrim/LUSA

Luís Raposo: "O Estado Novo é o autor da mais vil destruição memorialista em Belém”

Viajando pela história de Belém como lugar de fortalecimento da identidade nacional, o arqueólogo considera que a construção em alvenaria dos brasões das "províncias ultramarinas" serviu para apaziguar "grupúsculos de extrema-direita" que pressionaram o poder autárquico lisboeta.

Entrevista
9 Março 2023

Era uma manhã soalheira em Belém e as atenções de turistas e excursionistas dividiam-se entre os pastéis topinímicos e a curiosa cerca policial formada ao redor do Mosteiro dos Jerónimos. Num espaço normalmente rasgado por filas intermináveis de gente estrangeira e vendedores de braceletes e óculos escuros, erguia-se apenas um palanque frente à porta lateral da igreja. Sobre ele, agitavam-se as bandeiras de Portugal e da Hungria. Era visita de Estado: Katalin Novák, presidente da Hungria, vinha encontrar-se com Marcelo Rebelo de Sousa.

Assim que começou a conversa com Luís Raposo, arqueólogo e atual presidente da aliança regional europeia do Conselho Internacional de Museus (ICOM), soou uma salva de tiros. Depois outra e outra e outra. “Belém tornou-se nisto”, afirmou Raposo ao Setenta e Quatro, “um lugar para cerimónias”, ou seja, “um típico não-lugar”.  O trote da cavalaria marcava o ritmo cerimonial sob a janela do seu gabinete, nos andares superiores do Museu Nacional de Arqueologia, instalado num acrescento feito ao mosteiro em meados do século XIX.

A Luís Raposo, que dirigiu o museu durante 16 anos, não são estranhos os anacronismos, especialmente se falarmos de Belém e deitarmos a vista sobre a Praça do Império. Dias antes desta entrevista, deu-se a reabertura da praça depois de obras de renovação, e foram descobertos os infames brasões, agora em alvenaria, das províncias ultramarinas. “O brasão de Angola, com as quinas portuguesas, está virado para o Mosteiro dos Jerónimos”, repara Raposo. “Imagine explicar a alguém que aquele brasão foi construído no ano de 2023 pelo regime democrático português.”

O arqueólogo, agora reformado, afirma que o poder autárquico ficou refém de um “bruaá imenso e artificial, vindo de grupúsculos de extrema-direita”, coletividades nacionalistas e saudosistas que se insurgiram contra a destruição dos brasões na sua anterior configuração: arbustos cuja forma mal se conseguia distinguir. Numa pequena praça da capital portuguesa disputa-se a memória ao “inventar património”.

Noutras latitudes, como na Hungria, essa disputa é feita omitindo. Enquanto diretor do ICOM Europa, alarmado pelo escalar institucional das extremas-direitas, Luís Raposo denunciou por diversas vezes os ataques feitos às direções de museus húngaros, polacos ou checos pelos governos dos respetivos países, feitos numa tentativa de instalar “narrativas políticas viciadas”. “Os museus devem ser lugares de resistência” perante aqueles que não querem confrontar a realidade. É essa “a sua missão”, afirma Raposo.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Numa das suas crónicas escreveu que "Belém é talvez o lugar mais simbólico do contrato social que Portugal fez". Que contrato social é este a que se refere?

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luis raposo
Luís Raposo é arqueólogo, antigo diretor do Museu Nacional de Arqueologia e atual presidente do ICOM Europa

Belém é um lugar com muitas explicações e acumulações de memória. Inicialmente, era uma praia de pescadores, um lugar inexpressivo e sem significado. Há uma primeira ideia, no século XVI, de se instalar aqui um mosteiro que marcaria a entrada em Lisboa, para quem viesse a subir o Tejo. Há a ideia de construir este marcador político de apropriação do território e é aí que começa uma marcação do lugar relacionada com o poder. Mas, e até por haver o mosteiro aqui, reforçou-se o bairro envolvente, que foi crescendo com o tempo.

Ao longo dos séculos seguintes, até ao século XIX, houve um sucessivo acumular de densidade urbana em Belém. Acabou depois por ser um concelho, no século XIX, que chegou até a ter como presidente de câmara o Alexandre Herculano. Era um bairro com muita vida comercial, conhecido pelo seu mercado de ferro forjado e por todas estas ruas que davam para o cais, perto do mosteiro. Até muito tarde, meados do século XIX, o rio chegava muito próximo do mosteiro. Há gravuras de pescadores a secar as suas redes debaixo das arcadas.

O mosteiro incluía-se na vida quotidiana.

Mosteiros e igrejas, quando não são em sítios ermos, são pólos de atração. Havia os pescadores, faziam-se feiras. Um dos maiores crimes urbanos que cometeu o Estado Novo foi destruir esse tal mercado em ferro forjado. Também destruiu toda uma correnteza de casas dos séculos XV e XVI que hoje estariam classificadas e protegidas. Nos jornais chamaram-lhe um "ciclone centenário", por terem destruído o bairro inteiro.

Há, portanto, vivências históricas que se vão acumulando. Não direi harmoniosamente, mas tornou-se um lugar cheio de emblemáticas, desde o mosteiro até à presença do Estado e a vida urbana normal. Até que chega esse "ciclone centenário", em 1940, que faz do bairro tábua rasa.

Para aqueles que hoje em dia são muito defensores da memória histórica, do respeito pelo passado, talvez o melhor seja distanciarem-se do Estado Novo. O regime destruiu tudo o que estava antes, inclusive as designações. Temos esta praça com um nome impróprio, a Praça do Império. Antes, a praça e o jardim tinham o nome de Vasco da Gama. Até a estátua de Vasco da Gama foi retirada e destruída. Portanto, não me venham a dizer que o Estado Novo era muito respeitador da História. 

Pelo contrário, o Estado Novo, além de destruir a vida no bairro, destrói a lógica da malha urbana desta zona. Até ao reordenamento urbano feito em 1940, Belém era um todo em que o mosteiro representava o centro de uma zona que se estendia para trás, pela chamada cerca conventual. Toda a colina que vai para trás do Mosteiro dos Jerónimos, a colina do Restelo, estava livre, eram quintas que tinham sido parceladas mas que em grande parte pertenciam ao poder público e ao mosteiro.

Em vez de centro urbano, e Estado Novo fez do mosteiro um cenário para desfiles e começou a urbanização da colina do Restelo. Primeiro um bairro comercial, de serviços, na parte baixa, e depois um local para as elites, na sua parte de cima. Toda a urbanização da colina do Restelo é feita depois de 1940, numa lógica em que o que interessava preservar acabava no Mosteiro dos Jerónimos. O Estado Novo é o autor da mais violenta e vil destruição memorialista cometida em Belém, feita apenas para ter um cenário, supostamente antigo, que servisse para o que se passava em frente, sobretudo desfiles militares. Enfim, aparato de poder.

Começa o processo de Belém como um não-lugar.

Começa aí, mas podemos recuar um pouco. O Mosteiro dos Jerónimos é construído e reconstruído violentamente em meados do século XIX, na época do fontismo tardio, por um industrial e provedor da Casa Pia de Lisboa que resolveu triplicar o tamanho do mosteiro baseado em ideias antigas. Além dos edifícios originais, a igreja e o claustro, havia uma alpendrada aberta, a tal onde ficavam os pescadores. Mas era menos de metade do que vemos hoje.

Sobra hoje uma agressão enorme ao manuelino: o zimbório da igreja dos Jerónimos é do século XIX. Tal como era a torre de relógio monumental, que não sobrou por ter caído. Tinha quase 100 metros de altura e foi, a partir de 1874, construída no eixo central dessa reconstrução. Foi planeada por dois cenógrafos de ópera com pouca experiência em arquitetura. A torre colapsou em 1878. Ramalho Ortigão até escreveu que ela, "não podendo cair de velhice, caiu de vergonha".

É a tal “sedimentação histórica”, como lhe chama, cheia de anacronismos.

Temos de ser muito humildes quando olhamos para o fluir do tempo. Causa-me urticária a arrogância do presente sobre o passado. Ao olhar para espaços como este, reconheço que, se tivesse vivido no século XVI e fosse um pescador desta zona, talvez não gostasse de ter aqui o mosteiro. Iria ser contra. E em cada momento histórico seguinte, com cada acrescento, iria, provavelmente, reagir num instinto conservadorista do espaço. No tempo do fontismo, também se recua a linha do Tejo. Se cá estivesse, também teria reagido negativamente.

Somos mais prisioneiros que transformadores do espaço à nossa volta. Os espaços que habitamos são adquiridos históricos. Por muito que os queiramos alterar, o mal está feito. Há reacionários, hoje em dia, que dizem que os conservadores do património não respeitam os valores do passado. Isso é mentira. Respeito-os todos, até mesmo aqueles com os quais não concordo. Pronunciei-me contra a destruição recente de estátuas por esse mundo fora, mesmo quando não gosto delas, e fui criticado por isso.

Se eu tivesse vivido no tempo dos meus pais, teria sido absolutamente contra a construção do Padrão dos Descobrimentos. Ainda hoje, quando olho para ele, há qualquer coisa dentro de mim que se revolta. Por muito que me incomode a sua mensagem, não acho que o devamos deitar abaixo. O mesmo digo em relação ao Centro Cultural de Belém [CCB], que é da minha época. Fui contra a construção do CCB naquele espaço concreto. 

O rei D. Manuel deixou bem explícito que não se deveria construir nada que impedisse a visibilidade do Mosteiro dos Jerónimos a quem entrasse em Lisboa pelo Tejo. E eu continuo a achar que está mal ali. Os meus netos poderão achar que o CCB está ali muito bem. Às vezes devemos manter as coisas mal feitas, até como exemplo.


"Há um grupo crescente de gente de extrema-direita que tenta tomar conta do debate intelectual e das mentalidade quotidianas."

Tivemos recentemente mais um caso de um acrescento apócrifo a este espaço. O Presidente da República disse que a construção em alvenaria dos brasões das chamadas províncias ultramarinas era "uma continuidade daquilo que os seus antecessores defenderam: na Praça do Império, manter a tradição do império". Que continuidade é esta?

Percebe-se perfeitamente que o Presidente está contra isto, nessas palavras. O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa atribuiu as culpas dessa prolongação da ideologia de império a Cavaco Silva e a Ramalho Eanes, isentando o Jorge Sampaio. O Presidente Jorge Sampaio, com quem eu concordava, achava que se deveria manter o que já estava e acrescentar coisas novas, mas próprias do nosso tempo. Creio que o Presidente deu a entender, ao lavar daí as mãos, que acha que isto não é suportável se queremos ter uma relação sã, não-colonial e igualitária com os países ex-colónias.

O problema é haver um grupo crescente de gente de extrema-direita que tenta tomar conta do debate intelectual e das mentalidade quotidianas, que é por onde se começa, e depois acaba a tomar conta daquilo que é físico e material. E aí pode ser tarde demais para reagirmos.

Se estes brasões tivessem sido construídos em 1940, ou mesmo depois, 1950, 1960, diria: "muito bem, mantenham-se, recuperem-se". Não acho que se deva apagar a memória do que o Estado Novo fez em Belém. Mas estes brasões foram adicionados de forma espúria, completamente ad hoc, e em topiária, em buxo, pelos jardineiros da Câmara Municipal de Lisboa, em 1960, que acharam que seria uma coisa gira de fazer.

Chegou-se à conclusão que não havia condições para manter os arbustos e os arranjos florais com os brasões dos distritos e das colónias. Então, deveríamos ter acabado com eles dignamente. É assim que acaba muito do património: em ruína. Sou arqueólogo, sei isso muito bem, porque nada dura. Temos de estar preparados para que as obras, os monumentos e o próprio espaço público tenham um limite de vida.

A ideia da Câmara Municipal era essa, deixar morrer os arbustos. Mas depois, ainda no mandato anterior, ficou-se à mercê da extrema-direita, especialmente no discurso público. Criou-se um bruaá imenso e artificial, vindo de grupúsculos de extrema-direita, como o Nova Portugalidade. E a Câmara, com medo dessas reações, começou, às escondidas, a negociar uma solução com a Junta de Freguesia de Belém, igualmente presa aos mitos e às ideias da extrema-direita. De repente, deixou de se ouvir falar neste problema. Até achei que se fosse prescindir dos brasões, ficando um ou dois, ou uma Cruz de Cristo, para assinalar qualquer coisa.

Foi surpreendido pela construção de algo absolutamente novo?

Sim. E acho-o totalmente indigno. Uma coisa é preservar algo que o tempo nos legou - ou deixar de o fazer por já não fazer sentido. Outra é criar de novo, é intolerável. O brasão de Angola, com as quinas portuguesas, está virado para o Mosteiro dos Jerónimos. Imagine explicar a alguém que aquele brasão foi construído no ano de 2023 pelo regime democrático português. É incompreensível e intolerável. Voltámos a inventar património.

Poder-se-ia ter feito tanta coisa diferente. Contactavam-se os países da CPLP, dos PALOP, especialistas desses países, arquitetos, artistas, e acrescentava-se outra camada patrimonial. Acrescentava-se o lado democrático a um espaço historicamente colonial. Primeiro, começávamos por esquecer o nome de "Praça do Império", completamente anacrónico, e inventado pelo Estado Novo. Poderia haver uma reapropriação do espaço, até com celebração de cultura popular nacional, como se fez durante muito tempo com o Festival da Máscara Ibérica. 

A construção destes brasões parece-lhe, então, mais uma validação das ansiedades das extremas-direitas saudosistas que um golpe de marketing para turista ver?

Sim, e é a primeira que me preocupa mais, nitidamente. Não é só a validação, nem sequer a tranquilização, dessas ansiedades dos saudosistas do passado. O que me preocupa realmente é acharmos isto natural. Deixarmos que essas ideias tenham lugar para existir e que a cidade se construa em torno delas. 

Quanto ao turismo, a maior parte dos turistas que cá vem já acha que isto, que é quase tudo do século XIX, é do século XVI. Não fazem a mínima ideia da sedimentação histórica de épocas diferentes. O que até é bom, porque me envergonharia dizer a alguém que aqueles brasões foram inaugurados este ano.

Não é a primeira vez que se inventa, no espaço urbano, património com ideias saudosistas, salazaristas ou lusotropicalistas. A recente estátua de padre António Vieira, em frente à igreja de São Roque, foi protegida, em 2017, por elementos da extrema-direita depois de causar polémica e ser alvo de críticas.

Achei errado e inadequado grafitar a estátua. Não gosto da estátua, nem como obra de arte nem como mensagem, mas, apesar de tudo, não é tão ofensiva como estes brasões. O padre António Vieira é uma figura complexa (quase acabou excomungado), e pode dar-se o contexto do tempo em que a obra lá foi posta, dizer quem a mandou fazer, falar dos mitos nacionalistas e lusotropicalistas. Não acho que seja adequado destruí-la. A própria estátua de Pedro Álvares Cabral, um marco salazarista, não deveria ser destruída. Admito que num futuro mais radical a retirem, mas não para a derreter, para conservar num museu. Como, de resto, fizeram os países africanos de língua portuguesa com as estátuas do tempo colonial.

A estátua do mercador e esclavagista Edward Colston, por exemplo, foi grafitada, derrubada e atirada ao rio, em Bristol, no Reino Unido, em 2020. Depois de repescada, foi colocada tal como estava num museu, temporariamente.

Acho mau o que se fez, mas fez-se. Alguém acrescentou essa camada à estátua. E faz sentido que seja colocada num museu com essa camada. A Revolução Francesa destruiu estátuas, monumentos, edifícios. Não serei o primeiro a dizer que no ímpeto de um movimento social alargado, de raiz, não se possa destruir património, fruto das circunstâncias, ou recolhê-lo, reenquadrá-lo, dar-lhe outro uso. A História vai-se fazendo, permanentemente. E ai daqueles que acham que a História está congelada e não se pode mexer no passado.

Não façamos coisas novas de acordo com a mitologia do passado, especialmente a que nos envergonha, que nos é imprópria. E também não sejamos tão vanguardistas na maneira de conceber o espaço público de maneira a nos isolarmos do sentimento geral da população, que convive bem com esse tipo de ícones: estátuas que vêm do tempo do Estado Novo, por exemplo.


"O brasão de Angola, com as quinas portuguesas, está virado para o Mosteiro dos Jerónimos. Imagine explicar a alguém que aquele brasão foi construído no ano de 2023 pelo regime democrático português."

Poucas estátuas foram destruídas depois do 25 de Abril de 1974. Houve um busto de Salazar destruído em Santa Comba Dão, uma estátua de Amália Rodrigues decapitada. E também havia uma grande estátua de Salazar, com vestes de lente, no pátio do Palácio Foz. Alguns escultores e pintores de um movimento de artistas democráticos da altura envolveram a estátua de panos pratos e escreveram: "a arte fascista faz mal à vista". Mas no seu próprio manifesto disseram que não iriam destruir a estátua.

Há um certo mito, desenvolvido nos meios mais nacionalistas, que diz que não respeitamos o passado e o património. Hoje, em números redondos, temos cerca de 4500 monumentos nacionais ou imóveis de interesse público, protegidos pela lei e que não se podem destruir. Curiosamente, cerca de quatro mil vêm do período do Estado Novo. As novas classificações, do tempo democrático, são poucas. O grosso dessas classificações do salazarismo está no interior do país, até perto da zona de fronteira com Espanha. No fundo, era uma afirmação nacionalista. Todas as épocas têm circunstâncias que se acumulam, que levam a esta política ou àquela, e nós, na época seguinte, mantemos algumas e descartamos outras.

É preciso ser iconoclasta para desfazer o consenso da ideologia imperial?

Creio que não. Basta ser, em primeiro lugar, historiador. A História é iluminante para quem está de alma aberta. Por cima de um olhar isento, devemos colocar as nossas lentes coloridas, as nossas ideias. E, depois, é preciso ser progressista, no sentido mais amplo. Porque o mundo "pula e avança". Não podemos ficar presos no mundo colonial. Devemos respeitar os adquiridos desse tempo, fazendo as coisas do nosso tempo - que não serão, certamente, coloniais, racistas ou imperialistas.

O memorial às vítimas da escravatura está para ser construído há três anos.

Não percebo porquê. É inadmissível que um memorial como esse não exista, ainda, em Lisboa. E deve ser no Campo das Cebolas, em frente à Casa dos Bicos e de toda aquela riqueza do tempo do império. O projeto escolhido é bom, mas acho que deveria ter havido um concurso público, e não uma escolha por convites. Agora, deve ser construído.

Tem sido bastante crítico do estado dos museus e da conservação do património em Portugal. Quais são as causas desse descaso?

Não temos uma política consistente para o património cultural nem para os museus. Nunca tivemos. Tirando no Estado Novo, quando o regime sabia bem o que queria, politicamente, do património. A partir daí, ficámos desinteressados, nacionalmente. A única política cultural consistente que tivemos em todo o período democrático foi a das bibliotecas. Neste momento, todos os concelhos do país têm uma. E isso conseguiu-se porque atravessou todos os governos, foi consistente e transversal, e houve um grande envolvimento das comunidades locais. No resto, não. Foi sempre flutuante.

Escreveu, sobre a questão da devolução ou restituição de património aos países de origem, que "há o perigo do tiro sair pela culatra", que num esforço bem intencionado de reparação histórica podemos apagar a memória da colonização, "crendo que os tempo da dominação colonial já passaram". Poderia aprofundar um pouco esta ideia?

Tenho responsabilidades particulares nisso, no âmbito do ICOM - Conselho Internacional dos Museus, especialmente de reflexão e opinião e definição de linhas programáticas quanto à questão de devolução de bens patrimoniais às suas origens.

Por natureza, um museu é um local onde se guardam acervos que não surgiram nesse local. São sempre locais de descontextualização. Todavia, são as ferramentas mais importantes que temos, no campo da memória, para a construção da participação cidadã ativa. Os museus contemporâneos são frutos da Revolução Francesa e do espírito das Luzes, da apropriação popular das coleções das casas reais. Da ideia que nada deve ser interdito ao povo, que todo o saber é legítimo.

Tentamos, cada vez mais, democratizar o acesso ao conhecimento. Este é o quadro de base de onde resultam os museus - imperiais, na sua maioria. O Museé du Louvre ou o British Museum resultam de uma circunstância histórica em que França e Reino Unido eram impérios e recolhiam os artefactos dos territórios imperiais. Em qualquer museu do mundo há coleções que se pode questionar se hoje lá deveriam estar. Mesmo aqueles que não têm coleções imperiais.


"Não façamos coisas novas de acordo com a mitologia do passado, especialmente a que nos envergonha, que nos é imprópria."

Quando fui, durante 17 anos, diretor do Museu Nacional de Arqueologia, confrontei-me permanentemente com isso, quando a Câmara Municipal achava que determinada peça deveria estar em Caminha ou Tavira. É uma questão sensível. Há que analisar caso a caso, peça a peça. Se a peça é especialmente identitária da região que a requer. Se o museu dessa região tem condições de conservação.

Para mim, a questão essencial é o apego identitário. Temos algumas peças portuguesas fora de Portugal. Os franceses saquearam o que quiseram. Os piratas ingleses fizeram o mesmo na costa do Algarve. Há arquivos completos, nossos, em Cambridge. Conheço várias peças que, como arqueólogo, considero que deveriam estar em Portugal. Ninguém da minha geração parece disposto a dizer que a xorca de Sintra, que está no British Museum - e que o Estado português não comprou no início do século XX porque não havia dois contos de reis para a comprar -, deveria voltar a Portugal. Não é um emblema nacional.

Também há a questão da forma da apropriação. Se foi, por exemplo, um saque, pilhagem, em tempo de guerra. Os bronzes do Benim foram apropriados em expedições militares inglesas punitivas. Embora tenha acontecido num período anterior à ordem jurídica internacional, a forma de apropriação é inaceitável e os bronzes devem ser devolvidos.

Mesmo os frisos do Partenon, embora comprados legalmente pelo Lorde Elgin, creio que deveriam ser devolvidos à Grécia. São identitários. É uma humilhação para os gregos não estarem lá. Têm as condições físicas, de segurança e de fruição, e o peso da identidade nacional, que justificam a devolução. Para mim, as questões de conservação e segurança são secundárias. Muitas vezes, são usadas como desculpa.

Costuma ser um argumento condescendente, que perpetua a retórica colonial.

Exatamente. Com os museus que temos, como podemos atirar pedras aos outros? Não podemos. Agora, há algumas linhas vermelhas que se devem traçar, e aí entro em desacordo com o ativismo tribalista. Uma delas é a de considerar o destino final. A primeira vez que a Bélgica devolveu peças ao Congo, elas desapareceram todas e o seu preço aumentou no mercado internacional de arte. Devemos garantir que o destino final de uma peça devolvida é a fruição pública, mais do que insistir nas questões da segurança e da conservação. Não é admissível se assim não for. Pior ainda se for para destruição.

Em que circunstâncias é que se daria a destruição?

Muitas das peças que guardamos nos museus ocidentais, digamos assim, seriam destruídas nos ritos ou rituais originais para que serviam. Máscaras funerárias, por exemplo. Ou esqueletos, que seriam para enterrar. Não posso tolerar a devolução para destruição, que se me afigura como uma espécie de obscurantismo.

No Chile, reclama-se que as coleções recolhidas por Charles Darwin, na sua expedição, sejam devolvidas. Falamos de animais empalhados e coisas desse tipo. Acho inaceitável. São peças da ciência universal, ainda que desenvolvida na Europa imperial. Os grandes museus são imperiais, mas também são universais. Devemos equilibrar as coisas com bastante cuidado. Se pensarmos que tudo aquilo que foi trazido para a Europa deve ser devoldido, comecemos pelo obelisco que Cleópatra ofereceu a César. Também foi oferecido em contexto de dominação imperial.

"Os museus devem ser lugares de resistência às novas narrativas que facilmente abdicam da materialidade e da documentação."

Houve há pouco um grande debate sobre um padrão que Diogo Cão colocou no Cabo Negro, na costa da atual Namíbia. Esse padrão foi levado pelos alemães, para Berlim, aquando da ocupação da Namíbia. Quando o Museu de História Alemã levantou um debate sobre o que fazer com o padrão, afirmei que ele deveria ir para a Namíbia e não para Portugal. É lá que deve estar e já para lá foi. Mesmo sendo uma marca colonial que incomodará muitos africanos, os namibianos querem que ele esteja lá.

Pensemos num exemplo mais flagrante: o saque dos museus de Bagdad durante a ocupação norte-americana. Dezenas de milhares de peças foram roubadas e introduzidas no mercado internacional de arte ou levadas para os Estados Unidos. Só no ano passado é que o Museu do Iraque reabriu com mais de 20 mil peças devolvidas pelos Estados Unidos. Outras desapareceram para sempre. Tudo o que foi saqueado depois da II Guerra Mundial, depois do estabelecimento da ordem internacional referente a essa questão, deve ser devolvido incondicionalmente. O que vem antes deve ser pensado caso a caso.

Naquilo a que nomeou como o "refluxo do Estado de direito dentro da própria União Europeia", marcado pelo "nomeação ou demissão de juízes, o ensino vigiado, as liberdades cívicas cerceadas", chamou a atenção para a interferência política na governança dos museus em países como a Hungria e a Polónia. Qual deve ser o papel dos museus num momento de intensificação da erosão democrática?

A escalada dos governos de extrema-direita na Europa preocupa-me muitíssimo e tem conduzido a situações graves. Até ao ano passado fui presidente da aliança regional europeia do ICOM e escrevi várias cartas a vários ministros da Cultura a reclamar contra a demissão de diretores de museus por questões de narrativas políticas viciadas que queriam instalar.

Embora tenha as minhas opiniões, tento ser isento nestas questões. O que temos como documentação histórica é o que vale como mensagem para um museu. Se a documentação diz que houve colaboracionismo nazi em tal país, como aconteceu na Polónia, isso não pode ser escondido. Uma colega minha foi demitida da direção de um museu checo. Obrigaram-na a retirar todas as menções à colaboração de cidadãos checos no massacre de Lidice.

Nos museus, o nosso maior compromisso é para com aquilo que conseguimos entender, honestamente, com as nossas ferramentas de historiadores e arqueólogos, como a verdade histórica. É a nossa missão. Os museus devem ser lugares de resistência às novas narrativas que facilmente abdicam da materialidade e da documentação. A confrontação com a realidade, pura e dura, é a missão dos museus.