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Itália decreta feriado em memória de tropas fascistas

O Dia Nacional da Memória e do Sacrifício Alpino visa promover os “valores da soberania e do interesse nacional”. O feriado será comemorado um dia antes da libertação de Auschwitz-Birkenau pelo Exército Vermelho.

Extrema-direita
14 Abril 2022

O Senado italiano aprovou no passado dia 5 de abril um feriado em memória de tropas italianas que combateram ao lado do regime nazi alemão na invasão da União Soviética na II Guerra Mundial. A lei está a ser criticada como ato de revisionismo histórico e por o dia escolhido ser um dia antes da data que marca a libertação do campo de concentração Auschwitz-Birkenau.

A votação na câmara alta do parlamento italiano foi praticamente unânime: 189 votos a favor e apenas uma abstenção. O feriado terá o nome de Dia Nacional da Memória e do Sacrifício Alpino, passará a acontecer todos os anos a partir de 26 de janeiro de 2023 e servirá para celebrar o “heroísmo” das tropas Alpini na batalha de Nikolajewka, quando as tropas italianas tentaram romper o cerco soviético às tropas nazis do VI Exército em Estalinegrado, em 1943. Os militares italianos foram responsáveis por crimes de guerra durante a ocupação de território russo.

A Itália fascista, liderada por Benito Mussolini, juntou-se à Alemanha nazi na invasão da União Soviética que começou a 22 de junho de 1941, a famosa Operação Barbarossa. O VI Exército alemão, liderado pelo marechal de campo Friedrich von Paulus, chegou a Estalinegrado e, meses depois de intensos combates urbanos, acabou cercado pelas forças soviéticas. Os alemães tentaram abastecê-lo pelo ar, mas sem sucesso. Foi então que as tropas italianas tentaram romper o cerco, mas, mais uma vez, sem sucesso.

As tropas Alpini, o mais antigo corpo de infantaria de montanha ativo no mundo, criado em 1872, foram um dos grandes pilares da participação italiana na frente leste da II Guerra Mundial e na batalha de Nikolajewka foram dizimadas pelo exército russo, ao estarem mal-armadas e abastecidas, além de mal agasalhadas para suster o muito rigoroso inverno na Rússia. Dos 57 mil combatentes Alpini que participaram nesta batalha, mais de 34 mil morreram e quase dez mil ficaram feridos. O exército alemão cercado acabou por se render, o primeiro grande revés militar nazi na II Guerra Mundial.

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Na II Guerra Mundial os Alpini lutaram pela Itália fascista. | Fotografia: Arquivo, Valigia Blue 

De acordo com o texto da lei, a implementação deste feriado tem como finalidade “preservar a memória do heroísmo demonstrado pelo Corpo do Exército Alpino na Batalha de Nikolajevka”. Também quer “promover os valores da defesa da soberania e do interesse nacional” e a “ética da participação cívica, da solidariedade e do voluntariado, que as tropas alpinas encarnam”. Daí que a declaração do feriado pelo Senado também permita a realização de atividades culturais nas escolas e instituições “cívicas” para promover a memória destas tropas.

Este projeto-lei já tinha sido aprovado na Câmara dos Deputados, a câmara baixa do parlamento italiano, em 2019. Foi proposta pelos partidos de extrema-direita Irmãos de Itália e pela Liga, de Matteo Salvini. Na altura também não teve qualquer voto contra e, uma vez aprovada, subiu ao Senado.

A sua discussão na câmara alta do parlamento aconteceu em fevereiro e Marco Grimaldi, da formação de esquerda Partido Livres e Iguais, alertou na altura para a necessidade deste evento histórico não ser alvo de revisionismos. “Tal como não somos contra a memória da história de um corpo frequentemente utilizado como carne para canhão, olhando para a história, esta é uma tragédia que deve ser bem contada”, defendeu Grimaldi em declarações ao jornal italiano La Reppublica

As suas palavras não foram ouvidas e, uma vez aprovado no Senado, o feriado ficou envolto em polémica. A Associação Nacional dos Partigiani, histórico movimento de resistência contra o fascismo italiano e que promove a memória histórica antifascista, lamentou a celebração da guerra de agressão nazi-fascista num momento em que se condena a invasão da Ucrânia.

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A lei que institui o feriado está a ser criticada como ato de revisionismo histórico. | Fotografia: Arquivo, Valigia Blue

“A República Italiana, fundada nos valores do antifascismo e nascida da Resistência, não pode celebrar a guerra de agressão nazi-fascista”, lê-se no comunicado de 10 de abril. “Infelizmente, não se trata da primeira tentativa de revisionismo histórico por parte das instituições, para justificar e minimizar a responsabilidade e a criminalidade do regime fascista.”

Igualmente insatisfeita, a Associação Nacional de Ex-Deportados dos Campos Nazi mostrou a sua indignação e perplexidade em relação à implementação desta lei. “Como é que os italianos exaltam unanimemente a política criminosa de agressão que caracterizou os regimes fascistas?”, lê-se no comunicado da associação, assinalando que o feriado será comemorado um dia antes da data que marca a libertação do campo de concentração Auschwitz-Birkenau pelo Exército Vermelho.

Desde o fim da I República Italiana (1948-1994), por causa do escândalo (e operação policial) de corrupção sistémico Mãos Limpas, que a extrema-direita tem ganho crescente relevância política, primeiro a nível regional e mais tarde nacional. Nas últimas eleições legislativas, em 2018, as formações partidárias deste espetro político totalizaram 31,4% dos votos.

Mas a situação pode vir a piorar no futuro. De acordo com uma das mais recentes sondagens do Politico, as intenções de voto nos partidos de extrema-direita totalizavam 38% votos, e isto contabilizando apenas os partidos Irmãos de Itália e Liga.

A Liga, que no passado se denominava Liga Norte, quando era essencialmente um partido regionalista, domina há mais de duas décadas o campo da extrema-direita, mas começou a ver a sua hegemonia contestada. Os Irmãos de Itália foram criados em 2012 e desde então que se posicionam como alternativa à Liga. Giorgia Meloni, líder do partido, começou a sua atividade política na Força Itália, partido que teve como líder Silvio Berlusconi. Os Irmãos de Itália chegaram a integrar um governo deste partido, tendo comandado a pasta do ministério da Juventude entre 2008 e 2011.

Foi um grande passo na normalização da extrema-direita em Itália e, mais recentemente, os Irmãos de Itália têm adotado uma posição cada vez mais ambígua perante a sua origem fascista. Mas a sua verdadeira pertença à extrema-direita não deixa dúvidas: Meloni tem apoiado candidatos com o nome Mussolini e, em 2014, escolheu como símbolo do partido a chama tricolor, usada pelo antigo partido fascista Movimento Social Italiano. 

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