Coluna tanques russos

Luís Galrão: “É raro o evento em que nas primeiras horas as televisões partilham conteúdos verificados"

Há mais de dez anos que o jornalista Luís Galrão usa métodos OSINT para recolher e analisar informações de conflitos militares e situações humanitárias. Nesta entrevista ao Setenta e Quatro, o jornalista explica o que é OSINT e como podemos combater a desinformação.

Entrevista
3 Março 2022

A invasão da Ucrânia pela Rússia ainda não tinha sido anunciada pelo presidente russo, Vladimir Putin, e muito menos noticiada pelas televisões, quando a comunidade OSINT percebeu que a intervenção militar já tinha começado. Tanques, carros blindados, lançadores de mísseis e camiões de transporte de tropas deslocavam-se massivamente para a fronteira ucraniana. Percebeu-o através de uma simples aplicação que regista o tráfego rodoviário: o Google Maps.

Nas horas que se seguiram, as movimentações russas foram acompanhadas à distância por milhares de membros da comunidade OSINT. Viram militares ucranianos a fugir dos postos de controlo da Crimeia e tanques russos a avançar, viram o início dos bombardeamentos de mísseis balísticos, localizando quais os alvos. Mais e mais vídeos começaram a circular nas redes sociais – Twitter e Telegram, por exemplo – e a cada um aplicaram métodos de verificação sobre a sua autenticidade. Entretanto, as televisões nacionais e internacionais começavam a acordar para o que se estava a passar.

Há meses que a comunidade OSINT do Twitter acompanhava de perto as movimentações de aviões militares ucranianos, norte-americanos e russos na Ucrânia, o ajuntamento de tropas nas suas fronteiras. A comunidade desempenhou um novo papel nos alertas da comunidade internacional sobre o pior que poderia vir aí: a invasão. E, a partir de 24 de fevereiro, tornou-se quase possível acompanhar a guerra ao minuto – houve um acordo entre a comunidade OSINT sobre a não partilha das movimentações das tropas ucranianas, por exemplo. Sabendo-se sempre que a desinformação grassa nas redes sociais.  

Mas o que é OSINT (Open Source Intelligence)? É um método de recolha e análise de informações através do uso de fontes abertas disponíveis na Internet, explica ao Setenta e Quatro Luís Galrão, jornalista que usa métodos OSINT. “Basicamente é recolher e analisar conteúdos que estão disponíveis publicamente, que podem ir desde dados de um perfil de Facebook até à base de dados de organismos estatais, registos, tudo o que é público e que é acedido de forma legal.”

Há dez anos que Luís Galrão usa métodos OSINT para fazer fact-checking e o jornalista não tem pudor em criticar a forma como a guerra na Ucrânia está a ser coberta pelas principais televisões nacionais. “Ao nível do jornalismo televisivo há de facto uma grande incapacidade para breaking news, sobretudo na componente principal do jornalismo, que é a verificação. É raro o evento em que nas primeiras horas as televisões partilham conteúdos verificados”, critica.

Para se combater a desinformação, argumenta Luís Galrão, não basta haver apenas meios de comunicação social dedicados ao fact-checking, é mesmo preciso que se torne uma “prática das redações dos órgãos de comunicação social”. “O que é realmente importante para combater a desinformação é o aumento da literacia mediática”, garante.

A crise da Ucrânia tem dominado as televisões em todo o mundo, mas nota-se por vezes que estão atrasadas no acompanhamento da realidade em relação à comunidade OSINT. Esta predominância do OSINT começou agora ou já vem de outros conflitos? 

Vem de outras situações e conflitos. Nos últimos oito anos, sobretudo desde a guerra civil na Síria, a comunidade OSINT teve um crescimento muito grande. A guerra começou numa altura em que já havia smartphones, meios tecnológicos que não existiam em tão grande escala noutros conflitos anteriores.

Nesse conflito [guerra na Síria], surgiram uma série de curiosos, pessoas como eu, que acompanharam o que ia saindo de lá. Estou a lembrar-me do Brown Moses, do Eliot Higgins do Bellingcat, que acompanhava o que saía da Síria em termos de armamento, ataques, atentados, combates entre as várias fações da Síria e do Iraque. Esse trabalho que ele foi fazendo - era um civil, anónimo, sem experiência naquela área - acabou por resultar no nascimento do projeto Bellingcat, que hoje em dia é referência em quase todos os conflitos. Hoje fazem um trabalho de análise e verificação com as técnicas todas do OSINT.

Entretanto, surgiram muitos outros projetos e hoje em dia todos os grandes órgãos de comunicação internacionais - europeus e norte-americanos - têm especialistas nesta área. Ou trabalham com projetos nesta área no acompanhamento deste tipo de breaking news e em muitas investigações jornalísticas de maior envergadura.

Mas o que é isto do OSINT?

É um tipo de investigação e análise a partir de fontes abertas, para usar a tradução literal de open source intelligence. Não é só a investigação, mas também a análise, que resulta na tal intelligence, a partir de fontes abertas, conteúdos publicamente disponíveis na Internet. A tal recolha e análise permite responder a determinadas necessidades. Seja para as forças de segurança, seja numa investigação jornalística, numa investigação académica de redes extremistas. 

Basicamente é recolher e analisar conteúdos que estão disponíveis publicamente, que podem ir desde dados de um perfil de Facebook até à base de dados de organismos estatais, registos, tudo o que é público e que é acedido de forma legal, embora possa, em alguns casos, ser utilizada informação extraída através de hacking ou de outro tipo de técnicas, desde que esses dados estejam disponíveis publicamente. Por norma, um OSINTer não vai recolher dados de forma ilegal. Há mecanismos e ferramentas que permitem entrar na chamada deep web, naquela camada abaixo do que é visível e daí extrair toneladas de informação muito superior àquela que nós, com as ferramentas disponíveis ao grande público, conseguimos extrair.

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Mariupol
A cidade de Mariupol a ser bombardeada pela Rússia na madrugada de 24 e fevereiro. A imagem foi captada através de uma webcam.

Foi através de uma dessas ferramentas muito básicas, o tráfego do Google, que a comunidade OSINT descobriu que a invasão da Ucrânia pela Rússia estava a ocorrer, ainda antes do discurso em que Putin basicamente declarou guerra. 

Sim. Hora e meia a duas horas antes. Eu por acaso estava online. Perto da uma da manhã, uma série de analistas, curiosos, amadores, académicos - a comunidade OSINT é muito diversificada - repararam [na movimentação de tropas russas]. Alguém se lembrou de ver o tráfego no Google Maps e no Yandex Maps (o equivalente russo ao Google Maps para aquela região do mundo) e ambos revelaram que em algumas zonas da fronteira com a Ucrânia havia engarrafamentos à uma hora da manhã, uma hora e meia.

Começou-se a prestar mais atenção a isso, esta comunidade foi cruzando essa informação com outra que já corria em redes sociais, imagens de satélite. Portanto, antes sequer de haver uma confirmação oficial já se estava a chegar à conclusão que algo estaria prestes a acontecer. Depois de percebermos isto, vários OSINTers começaram à procura de webcams disponíveis publicamente - lá está, é o tipo de conteúdo que está acessível e que não temos essa noção ou não nos lembramos que esse tipo de conteúdo pode ser utilizado em investigações deste tipo. Foram identificadas várias câmaras e eu optei por seguir a que estava em Mariupol, a cidade no sul da Ucrânia, junto ao Mar Negro. 

"Em cada conflito existem vídeos partilhados como propaganda de ambos os lados. Podem prejudicar cada um dos lados, porque revelam sempre informação que na óptica dos militares deveria ser confidencial."

Apanhei os primeiros bombardeamentos ao vivo, aqui em casa, através de uma webcam. A partir daí, e das informações do Google Maps, eu e outras pessoas tivemos a confirmação de que alguma coisa estava a acontecer. Se era realmente a invasão que depois se veio a verificar, esse é um trabalho contínuo, estes elementos isolados não nos permitem tirar conclusões definitivas. O OSINT é um trabalho em curso ou permanente.

Este conflito foi detetado pela comunidade OSINT através do Google Maps e de webcams. Informação que depois é cruzada com tudo o que é publicado nas redes sociais, TikTok, Telegram, Twitter, Facebook e outras.

As forças armadas russas proibiram os seus militares de usarem telemóveis precisamente para que vídeos não fossem publicados e que as movimentações das tropas e os combates não fossem noticiados. Mas começaram a surgir vídeos. Não tem um certo receio de que os vídeos que se conhecem venham das autoridades russas? 

Há de acontecer de tudo. Os vídeos que temos em maior quantidade até são vídeos de civis ucranianos e russos. Aliás, nas semanas que antecederam esta invasão, a maioria dos conteúdos que a comunidade OSINT foi analisando eram vídeos do TikTok de camionistas russos e de outras nacionalidades que, estando na estrada, iam filmando colunas militares, helicópteros. Sobretudo através do TikTok. Cada evento, cada breaking news, cada conflito, segundo a região do mundo, tem as suas redes sociais predominantes. Na Rússia ou em partes da Ásia são redes como o VK, um equivalente russo do Facebook, são muito utilizadas; o TikTok é muito utilizado ali, até por pessoas mais velhas do que nós normalmente associamos ao TikTok (que começou por ser uma rede mais para jovens ou assim conotada). 

A maior quantidade que tenho visto são de civis, mas alguns vídeos são de soldados russos. Aquela mania de fazer selfies e vídeos em modo selfie para colocar nas redes. De facto, mesmo que haja indicações das chefias militares para que isso não aconteça, em quase todos os conflitos acaba por acontecer. Por maior cuidado que haja por parte das autoridades, neste caso militares. 

Também aparecem conteúdos que, no fundo, são propaganda. Nos dias que antecederam ao início deste conflito, e nas primeiras horas do mesmo, apareceram manobras desse tipo. O Bellingcat tem estado a analisar, e as autoridades russas montaram ali três ou quatro eventos literalmente fabricados, como ataques que foram os próprios a organizar.

Há uma situação que o Bellingcat tem documentada, e que, até para alguém que não seja especialista não seria difícil chegar à conclusão, os cadáveres que apareciam em vídeos eram de pessoas que já estavam mortas antes de serem postas naquele cenário. O corpo que está numa viatura destruída tem um corte na cabeça que se faz em autópsias. Explosão nenhuma no mundo provoca um corte certo em V e é relativamente simples fazer essa verificação. O Bellingcat fê-lo nesse episódio e há mais dois ou três das chamadas falsas bandeiras fabricadas pelos russos para justificar esta invasão.

Em cada conflito existem vídeos partilhados como propaganda de ambos os lados, sempre. Vídeos partilhados pelas forças beligerantes e que podem prejudicar cada um dos lados, porque revelam sempre informação que na óptica dos militares deveria ser confidencial: porque é geolocalizável, revela os meios bélicos envolvidos, revela a identidade dos soldados.

Lembro-me de algumas investigações sobre as actuações do grupo Wagner em África e especificamente na Síria - o grupo Wagner é um grupo de mercenários russos - e através da identificação de cada indivíduo, com a ajuda das técnicas todas de OSINT, é possível perceber de onde é que a unidade partiu, quem são os outros elementos, em que operações já estiveram envolvidos. Tudo isso a partir de fotografias que os próprios partilham nas redes sociais, nesse caso sobretudo no VK

Como é que separa dentro da comunidade OSINT quem é e não é propagandista tendo em conta que muitas das contas são anónimas? 

Com tempo, seguindo OSINTers que já estão há mais tempo nisto e que já partilham a própria avaliação que eles fazem de contas e conteúdos. Depois vamos percebendo ao longo do tempo se de facto essa avaliação corresponde àquilo que é verificável. O OSINT - tal como o jornalismo - passa pela verificação. Não há OSINT sem verificação. É através dela que conseguimos aferir a fiabilidade de cada conta e também do tipo de afiliação, digamos. 

Como faço isto há bastante tempo, fui criando tais listas no Twitter. Uma lista por si só não é útil se não for mantida e limpa. Daí ter várias listas. Uma só com OSINTers em que confio, e outra lista onde vou juntando todas estas contas que identifico durante um determinado conflito e que podem incluir terroristas, propagandistas deste ou daquele ministério da defesa. Junto tudo nessa lista e depois a partir daí vou extraindo para outras listas mais limpas, mais especializadas. Como faço isto há algum tempo já consigo perceber que há determinada conta que divulga, por exemplo, propaganda russa e há outras que fazem um trabalho de verificação que considero sério. 

As melhores contas de OSINTers são anónimas. Algumas acabam por ter as suas identidades conhecidas. Há várias contas de OSINTers que fazem verificações e são anónimos. Depois há muitos jornalistas e projetos de verificação, como o Bellingcat. Atualmente há centenas de contas identificáveis e centenas de contas anónimas e é com o tempo que se consegue perceber o que é que é o quê.

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Luís Galrão
Luís Galrão montou um sistema para acompanhar de perto as informações sobre a Ucrânia e outros conflitos militares e humanitários.

Fala-se muito da guerra híbrida. Sente que a desinformação russa é forte? Em termos de canais diplomáticos, de disputa da narrativa, a Rússia está cada vez mais isolada. 

A desinformação russa é forte nos últimos anos, desde o seu envolvimento na guerra da Síria. Há um esforço permanente. E depois não é só desinformação, é a informação produzida ser, muitas vezes, má.  Há uma componente que não consigo perceber - não sei se o objetivo era desinformar ou fazer má figura - em que eles chegam a usar imagens de videojogos para ilustrar ações militares. Não vejo grande objetivo nesse tipo de postura. É uma prática reiterada, que já aconteceu várias vezes. 

Em termos de desinformação há um esforço constante quer a partir de contas oficiais quer de meios de comunicação mais associados ao regime, que ainda são muitos. O que não é uma coisa exclusiva da Rússia, diga-se. Estamos aqui a falar da Rússia, mas acontece em todo os quadrantes. Meios como o Russia Today, o Sputnik e outros órgãos de comunicação incluem muita desinformação, embora façam muito trabalho jornalístico aparentemente isento.

Daí esta movimentação toda da União Europeia e de outros países contra esses órgãos de comunicação. Eu também não sei se bani-los é a melhor estratégia. É possível contornar todo esse tipo de limitações através da Internet. Reitero que [a desinformação] não é exclusivo da Rússia: a segunda guerra do Golfo e toda a justificação fabricada pela inteligência norte-americana, toda aquela história das armas químicas, nucleares e a narrativa que foi evoluindo do desde "achamos que têm" até "têm mesmo", passando pelo "se calhar já não têm". E a forma como isso foi sendo vendido à comunicação social e como a própria foi incapaz de crivar e verificar aquele tipo de desinformação.

Nas redes sociais é um crítico feroz dos erros da comunicação social, especialmente das televisões. Como é que estás a ver a cobertura televisiva deste conflito?

Nesta guerra, tal como noutras, as nossas televisões, os canais noticiosos nacionais, têm muito pouco jeito para fazer cobertura de breaking news. Sobretudo nos primeiros dias, ou nas primeiras horas. Em todos os conflitos e situações de breaking news que acompanho - já faço isto há mais de uma década - apercebo-me do desfasamento, temporal e factual, que há entre a realidade e as notícias. O desfasamento temporal chega a ser ridículo. Há coisas que chegam aos telejornais dois dias depois de terem acontecido na realidade, terem sido comentados e verificados no Twitter, terem já sido escritos por algum OCS da imprensa e, ao fim de dois dias, depois de mastigado e trabalhado, chega aos telejornais.

Ao nível do jornalismo televisivo há de facto uma grande incapacidade para breaking news, sobretudo na componente principal do jornalismo, que é a verificação. É raro o evento em que nas primeiras horas as televisões partilham conteúdos verificados. Veem alguém partilhar numa rede social, acreditam na narrativa que acompanha esse conteúdo e exibem-no, às vezes durante horas e em repetição permanente. São coisas evitáveis - e eu costumo demonstrá-lo - com três segundos a três horas de verificação. 

Admito que há conteúdos que demoram bastante tempo a verificar, mas a maioria são coisas que se verificam em minutos. É injustificável, no meu entender, que os órgãos de comunicação social deixem passar esse tipo de conteúdos, sobretudo as televisões.

Depois há aqueles diretos intermináveis, que estão a acontecer agora e acontecem sempre, de jornalistas com capacete e colete a dizer "Press". Não dizem nada, repetem durante horas que não se passa nada, que há uma explosão lá ao fundo. Ou então, estão nos locais do conflito a ler o mesmo que eu estou a ler aqui, a ler tweets, e muitas vezes os tweets errados. 

"Há coisas que chegam aos telejornais dois dias depois de terem acontecido, sido comentados e verificados no Twitter, escritos por algum OCS da imprensa e, ao fim de dois dias, depois de mastigado e trabalhado, chega aos telejornais."

Sou bastante crítico da forma como a cobertura deste tipo de eventos é feita, porque é feita com muita ligeireza. Dizem-se coisas, mostram-se coisas que podem vir a ter consequências sérias, com muita ligeireza. E o trabalho jornalístico não é suposto ter esta ligeireza. Há regras que têm que ser seguidas. E uma coisa é um erro pontual, outra coisa é eu poder fazer aqui uma lista de cem eventos em que os órgãos de comunicação social portugueses meteram água na cobertura dessas breaking news.

Há uma reiterada violação do dever de verificação. Isso resulta num trabalho jornalístico mau. É o caso do míssil alegadamente russo que acertou naquele prédio, que depois já era um avião russo que tinha sido abatido. E, ao se verificar, afinal era um avião ucraniano que muito provavelmente foi abatido pelas próprias defesas antiaéreas ucranianas. E ainda há canais, hoje, a dizer que foi um avião russo abatido. Há pivôs a dizer isso enquanto mostram imagens a partir das quais eu consigo verificar, em segundos, que se trata de um avião ucraniano. Não consigo perceber este tipo de…

Nos últimos anos, na questão de Cabo Delgado, com o terrorismo no norte de Moçambique, também acompanhei aquele grande ataque a Palma. Na altura fiz uma grande verificação de informações divulgadas no Leste-Oeste da SIC, um dos meus alvos semanais porque infelizmente é um programa que divulga muita desinformação. Tem muito conteúdo enganador, mau jornalismo - boa parte daquilo nem é jornalismo. E nesta questão de Cabo Delgado há um episódio que me marcou: a divulgação de fotografias de pessoas apelidadas de terroristas, e que eu, através destas técnicas, consegui identificar como sendo agentes da Força de Guarda de Fronteira de Moçambique. 

Tenho o número de telefone de um deles, tenho as redes sociais de dois deles, falei com colegas deles. Propus à SIC facultar-lhes toda esta informação para que pudessem desmentir o que tinham exibido em antena e isso não aconteceu. Este é um exemplo da utilidade prática destas técnicas, que infelizmente não foi aproveitado pela SIC. Foi utilizado por outras pessoas para acabar com aquela desinformação e com o dano que aquilo estava a fazer àquelas pessoas. 

"Isto são técnicas que as redações vão ter obrigatoriamente de aprender a fazer e a aplicar em todos os breaking news. Os principais órgãos de comunicação social europeus e norte-americanos já têm núcleos de verificação e OSINT."

Estava a causar um dano grande?

Sim, porque eles eram militares em fuga de Palma que partilharam várias fotografias numa situação altamente precária e informal, não fardados, sem alimentação, a revelar que não estavam a ter apoio por parte do exército moçambicano. E isso gerou alguns constrangimentos. Houve um canal de notícias em Portugal que passou essas fotografias sem ocultar as caras das pessoas, porque alguém - nomeadamente o Nuno Rogeiro - encontrou as fotografias no Facebook ou num canal de Telegram e não fez qualquer tipo de verificação. 

Toda a verificação que eu fiz foi feita em tempo real. Fiz uma investigação preliminar e cheguei a determinadas pistas que me mostraram que o conteúdo não foi apresentado de forma correta. Nesse caso foi relativamente simples identificar aquelas pessoas. É um exemplo prático da utilidade destas técnicas. 

Em grande parte dos atentados terroristas na Europa as primeiras fotos dos alegados suspeitos que são partilhadas na comunicação social são de anónimos que nada têm que ver com aquilo. E em algumas situações essas pessoas já tiveram problemas. Não só ameaças, mas também a preocupação das famílias. Há muitos casos documentados, estudados e reportados ao longo dos últimos anos. E este trabalho de verificação em tempo real, nos primeiros minutos, tem esta utilidade para salvaguardar a segurança daquelas pessoas. 

Porque é que o jornalismo português ainda não usa muito métodos OSINT?

Já há alguns projetos. Recuando um pouco: eu faço maioritariamente fact-checking, verificação. O OSINT é muito mais do que isso. São disciplinas diferentes que partilham técnicas. Na maior parte das verificações utilizo técnicas OSINT. Acho que os jornalistas têm muito a ganhar ao aprender o que é o OSINT e as suas técnicas. Muitas são técnicas de verificação. 

Antigamente, no jornalismo "analógico", o jornalista ia ao local, entrevistava os intervenientes, entrevistava analistas, entidades oficiais, fazia o contraditório, e depois escrevia as peças. Hoje em dia, muitas vezes, o jornalista não está no local. Está a receber informação pelas redes e por vários canais, mas esse trabalho de verificação tem também de ser feito.

Pode não ser possível entrevistar aquele interveniente, mas é possível verificar se ele está onde diz que está. Dois canais portugueses, a TVI e a CNN Portugal, diziam que um dos vídeos do Zelensky foi gravado "alegadamente, em Kyiv" e depois que o foi em frente a uma igreja, quando aquilo era um edifício histórico, não era uma igreja. Não faz sentido que um jornalista não faça um esforço simples de verificar estes conteúdos através, por exemplo, da geolocalização, umas das técnicas utilizadas em OSINT. Uma das primeiras coisas que faço é ir buscar o street view do Google Maps do sítio onde alegadamente o evento está a acontecer.

Isto são técnicas que as redações vão ter obrigatoriamente de aprender a fazer e a aplicar em todos os breaking news. BBC, DW, France24 já o fazem. Os principais órgãos de comunicação social europeus e norte-americanos já têm núcleos de verificação e OSINT. Talvez na imprensa portuguesa já haja um esforço maior, mas ainda é algo muito no seu início. O Público já tem jornalistas com experiência. Já há formação nesta área, mas a maior parte dos OSINTers são autodidatas. Depois, projetos como o Bellingcat ou projetos que integram o International Fact-Checking Network também já dão muita formação. É possível a qualquer pessoa fazer bons cursos de OSINT. 

Há recursos online gratuitos ao alcance de qualquer jornalista. A Google tem um projeto só dedicado à formação online, aberta, para jornalistas. Formações que se podem fazer em meia-hora, não é preciso dedicar anos a aprender. A geolocalização aprende-se vendo três ou quatro vídeos de quinze minutos, meia-hora. E depois, com a prática... 

O OSINT apenas é possível tendo em conta o capitalismo de dados?

Sim. Para já, o OSINT não é novo. Já existia antes de existirem redes sociais, a Internet. É uma prática inventada pelos serviços de espionagem e de inteligência militar. Já era feito na II Guerra Mundial. Eram escutadas emissões de rádio, analisados recortes de imprensa, analisava-se a informação disponível publicamente. 

O OSINT começou com o surgimento da Internet, não logo ao início da chamada web 1.0, em que havia pouco conteúdo gerado pelos utilizadores, mas mais especificamente a partir do ano 2000 com o boom dos blogues, das primeiras redes sociais. Ao mesmo tempo, os telemóveis começaram a ter acesso à Internet, ainda que de uma forma muito básica. Portanto, essa web 2.0 dos blogues e das primeiras redes sociais, os smartphones e depois o boom das redes sociais, tudo isso foi aproveitado pelas empresas desse capitalismo de dados. É a base da subsistência da chamada GAFA (Google, Amazon, Facebook, Apple). Todas estas empresas vivem da colheita desta matéria prima que são os dados. O OSINT consegue tirar partido desse manancial de dados que todos nós oferecemos a estas plataformas.

Ninguém lê os termos e condições das redes sociais e aceitamos partilhar os nossos dados e conteúdos. A partir daí, estas mega empresas tecnológicas tiram partido disso. E todas as entidades que façam OSINT, sejam independentes, civis ou militares, serviços informação, tiram partido disso. 

Os serviços de informação e as empresas privadas de segurança e consultoria tiram muito proveito do OSINT?

Claro. Obviamente que não o publicitam e não se sabe exatamente o que fazem, mas desde sempre que há empresas de análise de riscos, seguradoras, que tiram muito partido dessa disponibilidade de dados e da sua análise. E têm surgido dezenas e dezenas de negócios nessa área. 

Acompanho várias empresas que oferecem serviços às Nações Unidas. Há empresas que têm grandes investimentos em países do terceiro mundo porque fazem uma monitorização constante de tudo quanto possa impactar as operações dessas entidades, em termos de terrorismo, desastres naturais, instabilidade política. Tudo isso é facilmente monitorizado e verificável através do OSINT. 

Acha que existe - não no caso das empresas e dos serviços secretos - na comunidade OSINT uma certa ética? Visto que há investigações mais a fundo, que entram na vida privada das pessoas. 

Há, mas há quem não a siga. É como no jornalismo. Há um código deontológico e infelizmente há muitos jornalistas que não o cumprem e no OSINT é a mesma coisa. Há uma série de boas práticas que devem ser seguidas. Aliás, o OSINT, por estar tão disseminado, está a correr-se o risco de confundir OSINT com outras coisas: propaganda ou desinformação disfarçada de OSINT. Basta pôr o hashtag "OSINT" para ser visto como tal. 

Depois há vários riscos, entre os quais o de se revelarem dados que podem pôr terceiros em risco. É, por exemplo, o caso do doxxing, a divulgação de dados pessoais. Os maiores projetos e os OSINTers que levam isto realmente a sério seguem um código de ética, que é algo que talvez se venha perdendo. 

No início da Internet, na web 1.0, havia a "netiqueta". Era um conjunto de boas práticas, algumas até de questões de civilidade online, que se foi perdendo muito na web 2.0. De um momento para o outro muita gente que não sabia o que era a Internet tinha um smartphone nas mãos. Foi passar da enxada para o foguetão e não aprenderam os cuidados a ter online. Isto aplica-se ao OSINT, à cibersegurança. Há uma série de boas práticas que se não forem conhecidas e seguidas colocas-te em risco e podes colocar terceiros em risco.

"Não podemos depender destes projetos de fact-checking para combater a desinformação. Só isso não chega. Jamais terão meios, capacidade e velocidade para enfrentar o ritmo da desinformação."

No OSINT é muito importante ter esse cuidado, principalmente quando pode estar em causa a segurança de terceiros. Sendo que, na maior parte dos casos, são os próprios terceiros que se colocam em risco. O que se faz, muitas vezes, é não partilhar determinada informação à qual se teve acesso e partilhá-la já tratada, sem certos dados pessoais. 

A comunidade OSINT tem acesso a muito mais do que aquilo que é depois publicado. O mesmo acontece no jornalismo. Há coisas que não se publicam, que podes analisar e referir, mas não podes divulgar: links, números de telefone. Estas ferramentas permitem chegar a tudo isso, a todos esses dados pessoais que as pessoas, voluntariamente, partilham na web.

Mistura o OSINT com verificação de factos. Acha que a política ou os OCS que se dedicam a fazer verificações fazem sentido enquanto estratégia para combater a desinformação?

É um tema interessante e que tem estado em discussão. Há quem defenda que esses projetos de verificação acabam por ampliar o alcance da desinformação e das fake news e dos disparates. Porque é feita muitas vezes para atrair cliques. Como consumimos cada vez mais informação de forma superficial, corre-se esse risco. Há, no jornalismo e no fact-checking, quem defenda que o fact-checking, mais que uma prática de projetos específicos, deve ser uma prática das redações, dos órgãos de comunicação social. O que é realmente importante para combater a desinformação é o aumento da literacia mediática.

Não podemos depender destes projetos de fact-checking para combater a desinformação. Só isso não chega. Jamais terão meios, capacidade e velocidade para enfrentar o ritmo da desinformação. A única forma de se conseguir realmente combater e controlar a desinformação e os seus efeitos é aumentando a capacidade da literacia mediática das pessoas, dos cibernautas, de quem anda nas redes. É um esforço que os órgãos de comunicação social têm que fazer. É um esforço que os governos, através dos currículos educativos, têm de fazer. É um esforço que está a ser feito a nível da União Europeia e a nível internacional. 

Não chega só o fact-checking. Em Portugal tens o Polígrafo, que é o grande projeto de fact-checking nacional, que muitas vezes não verifica boa parte dos disparates que os órgãos de comunicação social introduzem na comunicação. É a grande crítica que eu e outros fazemos ao Polígrafo. Não verificam, por opção, muitos conteúdos. É perfeitamente legítimo, mas não chega. Daí ser importante que os órgãos de comunicação social se auto-verifiquem. O fact-checking não pode ser deixado aos projetos feitos com esse propósito, tem de ser algo assumido como característica do trabalho jornalístico. É algo que tem de ser feito por todo e qualquer órgão de comunicação social.

O combate à desinformação e o fact-checking não se tornaram negócios? Ou seja, é uma forma de os OCS receberem dinheiro das grandes multinacionais enquanto estas lhes indicam qual a desinformação a combater. Há vários projetos que estão a deixar de o fazer para o Facebook, denunciando haver algum controlo editorial.

Está a ser neste momento discutido uma espécie de código de boas práticas de combate à desinformação. A UE está a promover esse debate, as plataformas estão envolvidas, os projetos de fact-checking estão envolvidos, fact-checkers independentes também. Portanto, é fundamental que isso seja clarificado e que haja transparência nos modos em que essa verificação é feita. 

É verdade que esse trabalho com as plataformas não tem sido fácil. É um trabalho em progresso, em curso. Vamos aprendendo com os erros. A forma como isso deve ser feito é um tema em permanente debate. Os riscos, os enviesamentos que possam acontecer. A permanente incapacidade aparente das grandes plataformas em gerir a desinformação. Tem havido bons exemplos, mas também maus.

Para este caso concreto, da Ucrânia, há um conjunto de fact-checkers independentes e de projetos independentes que têm uma parceria com o Twitter. Estou a participar nesse esforço através do VOSTPT, uma rede de voluntários digitais em situações de emergência, que faz parte do VOST Europa, ao ter uma parceria com o Twitter. Há uma série de voluntários que vai identificando desinformação, conteúdo enganador - há uma escala de classificação que muda consoante as plataformas. A análise feita no Twitter pode ser diferente da análise feita no Youtube ou no Facebook ou de outro projeto em Portugal ou na Alemanha. 

"Já aconteceu surgirem em alguns países projetos disfarçados de fact-checking que na prática eram de desinformação ou de propaganda política."

É importante trabalhar para que haja alguma uniformização ou transparência na forma como os conteúdos são avaliados e depois catalogados e eliminados. Isso está a ser feito com o Twitter no caso da Ucrânia. Já identifiquei vários tweets com conteúdo falso, manipulador, enganador que reportei através de uma via directa com o Twitter Safety, onde vamos inserindo essas informações. É feita uma primeira verificação. Avaliamos o conteúdo como enganador ou falso por alguma razão, que apontamos ou referimos alguma verificação que já exista.

Todas as grandes agências de notícias têm projetos de verificação. Desde as internacionais até à Lusa, embora seja uma área em que podem fazer muito mais. Nos últimos cinco, seis anos surgiram muitos projetos de verificação e muitos, como eu dizia, nos próprios órgãos de comunicação. Essa parceria entre fact-checkers e as plataformas é fundamental desde que depois haja transparência. O público tem de perceber porque é que o conteúdo é removido, os fact-checkers têm de perceber porque é que um conteúdo é catalogado. É esse trabalho conjunto que tem de ser desenvolvido, com essa transparência assegurada. 

Já aconteceu surgirem em alguns países projetos disfarçados de fact-checking que na prática eram de desinformação ou de propaganda política. No Reino Unido, o próprio governo a certa altura fez uma conta de fact-checking e aquilo correu-lhes mal, foram muito criticados.