Doutorando em Economia na Universidade de Sapienza, Roma. Escreve no blogue Ladrões de Bicicletas.

Sem balas de prata: a economia política da guerra financeira com a Rússia

As sanções têm sido uma das armas mais usadas para enfrentar disputas geopolíticas. Os países têm-nas usado como forma de tomar uma posição de força sem terem de participar diretamente em conflitos armados. É essa a estratégia dos países do Ocidente contra a Rússia de Vladimir Putin. 

Ensaio
3 Março 2022

Nas primeiras horas da última quinta-feira, Vladimir Putin dirigiu-se à nação russa e anunciou o início da ofensiva militar contra a Ucrânia. Não demorou muito tempo até se ouvirem as primeiras explosões em diversas cidades e  relatos de que as Forças Armadas russas se aproximavam. Depois de semanas em que a tensão entre ambos os países foi escalando, o anúncio da “operação militar especial” russa – leia-se invasão –foi acompanhado de um aviso: as potências que tentarem interferir enfrentarão “consequências nunca antes vistas”, nas palavras de Putin.

No entanto, as primeiras consequências inéditas vieram do lado oposto. Os países ocidentais, com os Estados Unidos e a União Europeia à cabeça, foram rápidos a anunciar as primeiras sanções económicas à Rússia. Entretanto, foram anunciadas novas medidas, como a exclusão de alguns bancos russos do SWIFT, abrindo um precedente nos conflitos económicos internacionais. Até a Suíça, historicamente neutra, se juntou à onda de sanções.

O impacto na economia russa foi quase imediato: na abertura dos mercados nesta segunda-feira, o rublo chegou a cair 31% face ao euro e o Banco Central da Rússia foi obrigado a intervir para mitigar a queda. Com receio de que a situação venha a piorar, muitos cidadãos russos correram aos bancos para levantar as poupanças que tinham. “Vamos provocar o colapso da economia russa”, explicou o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire.

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As sanções têm sido uma das armas mais usadas para enfrentar disputas geopolíticas. Ultimamente, os países têm-nas usado como forma de tomar uma posição de força sem terem de participar diretamente em conflitos armados. É essa a estratégia que tudo indica os países do Ocidente estarem a assumir na disputa com a Rússia. Para avaliar a eficácia das medidas, é preciso olhar para os fatores que as influenciam e para as implicações que poderão ter.

Preparados para o impacto?

O primeiro aspeto a ter em conta é a possível resistência da economia russa. Nos últimos anos, a Rússia parece ter levado a cabo uma estratégia de diversificação das suas reservas financeiras. Este processo teve duas implicações importantes: além de ter reduzido a dependência de reservas em dólares norte-americanos, o país acumulou reservas consideráveis de ouro durante este período. A diversificação das reservas é uma forma de evitar a excessiva dependência em relação a uma única moeda estrangeira. Neste sentido, as autoridades russas parecem ter-se preparado para aguentar a pressão, pelo menos de forma temporária.

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Mas nem todas as sanções são evitáveis. A decisão de excluir alguns bancos russos do SWIFT – Sociedade Mundial de Telecomunicações Financeiras Interbancárias, regulada internacionalmente – é um dos casos em que será mais difícil para a Rússia acomodar o impacto para a economia nacional. O SWIFT é um sistema de comunicações interbancárias que permite efetuar transações rápidas e eficientes entre instituições financeiras de todo o mundo. É o que garante, por exemplo, a rapidez e a segurança de transferências bancárias ou ordens de pagamento entre bancos de países diferentes.

Além de excluir alguns bancos deste sistema, os líderes da UE, EUA, Reino Unido e Canadá tencionam dificultar o acesso do banco central russo a uma parte das suas reservas financeiras e, com isso, tornar mais complicada a resposta às sanções impostas. Para o historiador Adam Tooze, isto implica “quebrar a assunção de igualdade soberana dos Estados e o interesse comum em preservar os direitos de propriedade”. As medidas poderão ter um impacto significativo para a economia russa, mas também terão custos para os países que as aplicam, uma vez que há várias empresas e bancos ocidentais com presença na Rússia e o país é um dos principais clientes das exportações da UE.

Mário Centeno disse que “um cenário próximo da estagflação não está fora das possibilidades que podemos enfrentar”. A estagflação foi o nome dado ao fenómeno que se verificou na década de 1970, quando as economias ocidentais foram confrontadas com uma combinação de crescimento económico anémico e elevadas taxas de inflação. É expectável que alguns preços possam vir a subir em resultado do conflito, a começar pelos dos bens alimentares – a Rússia e a Ucrânia são dois dos maiores exportadores de cereais e representaram, em conjunto, mais de ¼ das exportações mundiais de trigo em 2020 Um cenário como este dificultaria bastante a recuperação das economias após o choque provocado pela pandemia de covid-19. Talvez por isso Centeno reconheça que a atual incerteza torna menos prováveis alterações na política monetária do BCE – a subida das taxas de juro parece hoje menos provável .

Uma dependência inconveniente

O segundo aspeto a ter em conta está relacionado com as dificuldades que os países ocidentais – e a União Europeia em particular – têm sentido para cortar relações económicas com a Rússia. A economia russa é fornecedora de 47% das importações de carvão da UE, 41% das de gás natural e 27% das de petróleo. No dia em que Putin anunciou a invasão da Ucrânia, a União Europeia, os EUA e o Reino Unido pagaram mais de €700 milhões à Rússia pelos combustíveis fósseis importados.

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dependência energética dos países da UE face à Rússia torna difícil aplicar sanções que afetem os mercados da energia, que correspondem a uma parte substancial das exportações russas. Tooze considera mesmo que a Rússia é um “petroestado” demasiado importante para ser abatido pelas outras potências. Mas o Alto Representante da UE para a Política Externa e de Segurança, Josep Borrell, foi forçado a reconhecer que “a energia não vai ficar de fora deste conflito, quer queiramos, quer não”.

Há dois fatores que contribuíram para que essa dependência se cimentasse: a arquitetura do mercado único europeu e o atraso na transição energética. As regras de concorrência europeias retiram (ou restringem fortemente) a maioria dos instrumentos de política industrial dos Estados-Membros da UE, desde a definição de tarifas aduaneiras ao controlo público de empresas estratégicas ou às compras públicas. A lógica subjacente a estas regras é a de que as empresas dos diversos países devem competir num “campo equilibrado”, sem ajudas de Estado que distorçam o livre funcionamento do mercado.

O problema é que essas regras favorecem as indústrias dos países mais fortes, que já se tinham estabelecido antes da entrada no mercado único, ao mesmo tempo que impedem a promoção das indústrias domésticas nos países periféricos menos desenvolvidos (como Portugal). Por outro lado, a restrição do papel do Estado dificulta a adoção de uma política industrial guiada por objetivos como a substituição de importações, acabando por deixar os países dependentes de cadeias de distribuição globais. A pandemia já tinha evidenciado os riscos associados a este processo quando a Europa se viu privada de componentes indispensáveis para a produção industrial, como os semicondutores utilizados na produção de carros e produtos eletrónicos.

E isso reflete-se também no que diz respeito à transição energética. Embora a Comissão Europeia já reconheça os enormes riscos que as alterações climáticas representam para a vida humana, a UE não deu mais do que pequenos passos para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis. Continuam a existir obstáculos de fundo, como o Tratado da Carta da Energia, que dá poder às empresas da indústria fóssil para levar os Estados a tribunal se as políticas energéticas afetarem os seus resultados. A ausência de uma estratégia de investimentos públicos de grande escala nas energias renováveis atrasa o combate às alterações climáticas e dita uma dependência bastante inconveniente dos combustíveis fósseis russos.

Espelho meu

O problema de sanções à economia russa é que acabam por afetar mais a generalidade da população do que a sua elite. Aplicar sanções eficazes sobre a oligarquia de um país passa, entre outras medidas, pelo congelamento dos ativos que estes detêm no estrangeiro – sem esquecer os paraísos fiscais onde tem o seu dinheiro. Os países do Ocidente anunciaram rapidamente que aplicariam este tipo de sanções a Vladimir Putin e ao seu círculo mais próximo, incluindo ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov. Só que há motivos para pensar que a implementação e o alcance desta medida podem ficar aquém das expectativas.

A Rússia é um país com uma distribuição extraordinariamente desigual da riqueza, para a qual vale a pena olhar. Um estudo de Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da UE, e de dois co-autores conclui que a Rússia é o 4º país do mundo com maior percentagem da sua riqueza em offshores. Sem grande surpresa, estes movimentos ocorrem sobretudo entre os mais ricos do país: mais de metade do rendimento dos 0,01% mais ricos do país está em offshores.

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A riqueza detida no estrangeiro assume múltiplas formas: desde contas bancárias na Suíça a investimentos em Chipre, passando pelo mercado imobiliário de Londres. Há também uma boa parte desta riqueza que é desviada para paraísos fiscais. Rasmus Christensen, economista na Copenhagen Business School, recorreu à sua conta no Twitter para fazer uma recapitulação destas ligações. Vale a pena acompanhá-las.

Em 2013, o mundo ficou a conhecer os investimentos russos em “empresas-fantasma” nas Ilhas Virgens Britânicas. Estas empresas não têm atividade real no território e limitam-se a servir de canais por onde os capitais são veiculados para depois adquirirem imóveis em Londres ou outros ativos, escapando aos impostos ou ao escrutínio público. Na altura, os documentos a que o Consórcio Internacional de Jornalistas teve acesso revelavam o envolvimento dos diretores da Gazprom e da Oboronprom, ambos próximos de Putin.

Desde então, os escândalos têm-se acumulado. Em 2015, os Swiss Leaks revelaram um esquema de fuga aos impostos apoiado pelo banco britânico HSBC na Suíça, no qual estavam envolvidos mais de 700 clientes russos com ativos no valor de 1,8 mil milhões de euros.

No ano seguinte, os Panama Papers ajudaram a desencobrir dezenas de empresas-fantasma utilizadas para, entre outros fins, contornar sanções financeiras. Entre os beneficiários encontrava-se Yuri Kovalchuk, líder do Rossiya Bank, apelidado de “banqueiro pessoal de Putin”. Outra das revelações foi o uso de entidades sediadas na Suíça para desviar cerca de mil milhões de dólares de bancos públicos russos para comprar iates, financiar cerimónias de casamento e estadias em resorts de ski para a elite ligada a Putin.

Em 2017, os Paradise Papers voltaram a pôr o foco nos esquemas usados por oligarcas russos para escapar às sanções através de empresas sediadas em offshores. As Ilhas Virgens Britânicas voltam a figurar entre os principais canais por onde passa a riqueza e os documentos expõem inclusivamente as relações entre a oligarquia russa e a administração de Trump.

O que todos estes esquemas têm em comum é o recurso a jurisdições onde impera o secretismo financeiro. A identificação do paradeiro da riqueza implicaria a implementação de um sistema de registo financeiro internacional que permitisse saber quem detém que ativos em cada território. É isso que defende o economista Thomas Piketty no jornal francês Le Monde Diplomatique. Com esta proposta, as autoridades públicas passariam a controlar as centrais de depósitos, atualmente privadas, que registam os ativos e os seus proprietários. Seria uma forma de garantir a eficácia de sanções direcionadas para determinadas oligarquias. Mas seria também, e acima de tudo, uma arma de peso no combate à lavagem de dinheiro e à evasão e elisão fiscais.

O problema é que esta medida colide com os interesses dos mais ricos no Ocidente. Porquê? Porque as elites russas não são as únicas a aproveitar a liberdade de circulação de capitais para desviarem boa parte da sua riqueza para offshores. Piketty explica-o de forma sucinta: “as elites ocidentais temem que a transparência acabe por prejudicá-las.” Tanto a Rússia como a União Europeia, o Reino Unido ou os EUA “têm um sistema legal, fiscal e político cada vez mais favorável às grandes fortunas”, escreve Piketty. Apesar da narrativa dos “oligarcas russos vs. empreendedores ocidentais”, a origem da riqueza do 1% do topo nestes países não é assim tão diferente. Zucman é ainda mais claro: "O problema dos mega-iates e das contas na Suíça dos bilionários russos é que são incrivelmente parecidos com os mega-iates e as contas na Suíça dos nossos bilionários".

É isso que explica a relutância em tomar medidas que ponham em causa este sistema. Mas se é verdade que, nos últimos anos, este sobreviveu a sucessivos escândalos financeiros e ondas de indignação que se esvaíram, também é certo que é difícil vencer um conflito se não estivermos dispostos a usar as armas mais eficazes. Resta saber se uma guerra pode ser suficiente para mudar a história.