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Ksenia Ashrafullina: “Esta é uma guerra de Putin, não dos russos”

A viver em Portugal há dez anos e com dupla nacionalidade, a ativista decidiu sair da Rússia para ver o que era uma democracia "na prática". Ao longe, mas com vontade de voltar, denuncia o regime autoritário de Putin, a cleptocracia que o sustenta e uma invasão feita com o propósito de resolver problemas internos.

Entrevista
10 Março 2022

Ksenia Ashrafullina ficou conhecida como a “senhora ativista” há quase um ano. Foi assim que o embaixador russo em Portugal se referiu a ela ao lhe garantir, numa publicação no Facebook, que não tinha com que se preocupar e que poderia “voltar tranquilamente a casa”. 

Meses antes, em janeiro de 2021, a Câmara de Lisboa havia enviado os seus dados pessoais à embaixada russa em Portugal e ao ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia. Fê-lo antes de uma manifestação contra o regime de Vladimir Putin organizada por si e mais dois ativistas. 

A situação, “ridícula de tão estúpida que foi”, tornou-se conhecida em junho do mesmo ano e criou polémica. Ksenia desvaloriza o envio dos dados, visto que “os russos já poderiam ter facilmente percebido”, se quisessem, quem ela era. Mas a forma como a Câmara de Lisboa tentou abafar o caso incomodou-a.

A viver em Portugal há dez anos, Ksenia nasceu e cresceu em Cazã, no Tartaristão, uma das repúblicas da Federação Russa. Estudou diplomacia no Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo e, quando terminou o curso, em 2007, recusou entrar no serviço diplomático do Estado. Queria experimentar a Europa, ver o mundo, viver e aprender onde houvesse democracia. Passou pelo Reino Unido, pela República Checa, por Itália e Espanha, até chegar a Portugal.

"Putin tem uma pancada esquisita com a interpretação da História. Acredita numa história alternativa onde deve aparecer um messias e unir todos os eslavos."

Ksenia não esconde o desejo de “voltar à Rússia e ser útil”. Em entrevista ao Setenta e Quatro, teceu críticas severas ao regime de Putin, “o velho do bunker" que se alheou da realidade, e à invasão da Ucrânia, capricho violento de um ditador que quer garantir a sua popularidade ao enviar “miúdos perdidos, de famílias pobres e sem vontade de combater” para a linha da frente. 

Critica não só a tolerância europeia perante Putin, nas últimas duas décadas, como a própria conivência com o seu regime e oligarcas. “Há uma elite internacional com os bolsos cheios de dinheiro corrupto russo”, denuncia, aproveitando para notar que Roman Abramovich, bilionário próximo de Putin, é, desde abril do ano passado, cidadão português. Conseguiu em seis meses aquilo que cidadãos russos demoram anos a conseguir.

A invasão da Ucrânia já estava planeada há algum tempo quando fomos surpreendidos por ela. Putin começou a falar em libertação e “desnazificação”. Na sua percepção, qual é a verdadeira intenção desta invasão?

Não parece existir plano algum. Durante 23 anos, Putin afastou-se de tal forma da realidade que não só ficou num bunker físico — chamamo-lo "o velho do bunker" — mas também um bunker mental, de informação. Está rodeado por um grupo de pessoas que durante todo este tempo teve medo de lhe dizer a verdade: que as forças armadas não prestam, que a corrupção está a fazer o país cair por todo o lado. Criaram uma visão falsa daquilo que é a Rússia. 

Não completamente falsa. Putin representa aquela oligarquia, aquele bando de São Petersburgo. Ele próprio traficava recursos russos para fora do país e fazia disso o seu negócio. Aquilo que quero dizer é que Putin não tem noção do que as pessoas pensam dele. Continua com esta ideia de ser czar, imperador. Acha que tem o amor das pessoas. E, provavelmente, também achou que os ucranianos estavam à espera dele quase como uma personagem mítica que vinha para os libertar. E começou a acreditar na própria mentira. 

Há um mundo que foi criado para ele e ele acreditou. Sobre a ideia de que a guerra estava planeada, bem, quando entraram na Crimeia e depois criaram aquelas repúblicas de Donetsk e Lugansk, na Ucrânia, isso fazia parte de um plano. Putin tem uma pancada esquisita com a interpretação da História. Acredita numa história alternativa onde deve aparecer um messias e unir todos os eslavos. É o que se vê.

Naquele discurso à secretária, antes da invasão, Putin falou na "Grande Rússia", lamentou “as perdas territoriais do império Russo”, criticou Lenine por ter reconhecido a República Ucraniana. Ele quer ser um novo "pai dos povos"?

Na minha opinião, tem uma fascinação com Josef Estaline. Até se olharmos para os símbolos, como aquele horrível Z que parece simbolismo hitleriano, um símbolo de terror. Em todos estes anos, de maneira sistemática, o regime tentou branquear o estalinismo. Fecharam um centro de direitos humanos, chamado Memorial, que se dedicava a reabilitar os nomes das vítimas do estalinismo. E não foi feito nenhum trabalho para nos desestalinizarmos a nós próprios. 

No início, nos anos 1990, quando tudo era possível, as pessoas começaram a falar dos familiares que foram assassinados pelo regime. Depois, pouco a pouco, de 2000 até 2010, a maioria dos russos tentava sair da pobreza. Então criou-se uma espécie de pacto tácito entre o povo e o pequeníssimo grupo no poder.


"Há $800 mil milhões de fortunas russas em offshores, repartidos entre umas 50 pessoas. Acho muito difícil para qualquer pessoa processar este número. É quase quatro vezes o PIB português."

Este grupo conseguia milhares de milhões de dólares para os próprios bolsos. A Rússia não é um país rico, o PIB russo não é muito superior ao de Espanha, que tem menos 100 milhões de habitantes, e metade do valor do PIB está fora do país, em offshores, nas mãos dos pouquíssimos amigos de Putin.

Esse pacto estabelecia que a oligarquia deixava as pessoas das grandes cidades subirem para a classe média. Isto criava um consenso, uma paz social, onde alguns roubavam de maneira cósmica e outros não eram assim tão pobres. Este equilíbrio manteve-se na primeira década deste século e a desestalinização foi esquecida. Esquecemos, no contexto popular, aquilo que foram as atrocidades do nosso passado. E não trabalhámos o medo.

Isso implicaria o quê, trabalhar o medo? 

Perdê-lo. Sair para a rua, fazer ativismo. Falar. Essas coisas não foram promovidas. Eu sempre digo que é preciso promover o bem. Podes, no início, não o proibir. Mas se não promoves e se não desfazes o medo do estalinismo, como é que as pessoas podem aprender a ser mais livres?

E mesmo assim, entre a metade dos anos 1990 e o início dos anos 2000, enquanto Putin não organizou tudo à volta dele, parecia que tudo era possível. Eu era adolescente nessa altura, ou tinha vinte e poucos anos, e foi esta geração que começou a fazer protestos, a falar de liberdade e a organizar-se. 

"Putin demonstrou muito claramente com Khodorkovsky que 'se tu és oligarca e fores contra mim, vais para a prisão'."

E foi um milagre. Eu não acreditava, quando saí da Rússia, que era possível alguém mobilizar os russos a agir. Foi esse o trabalho de Alexei Navalny e muitos outros líderes, algumas pessoas menos conhecidas fora da Rússia, como deputados municipais de Moscovo e outros ativistas mais locais.

Nesta última década, de 2010 a 2020, estas pessoas começaram a agir mais e isso começou a criar mais pressão sobre Putin e o seu círculo minúsculo de oligarcas. Com toda esta atividade anti-corrupção, que expôs de uma maneira brilhante as suas riquezas, os oligarcas tornaram-se alvo da raiva popular. 

E esse acordo tácito desfez-se com a pandemia, porque ninguém confia no governo. A taxa de vacinação pode refletir, de alguma maneira, a taxa de votação, porque é assim que os russos pensam: "se o governo diz para fazer, então não é para fazer". E se não és preso por não te vacinares, então quer dizer que há uma margem de liberdade.

Podemos olhar para os números da vacinação para perceber quem votou e como. Depois houve uma campanha para explicar às pessoas que a vacinação era necessária, mas demorou muito tempo e nem todos se vacinaram.

Então esta invasão pode ser também uma maneira de voltar a ganhar popularidade?

Sim. É uma maneira de tentar resolver algum problema interno. Internamente, Putin perdeu toda a popularidade. Mesmo os números oficiais falam em 30% de aprovação. Não sabemos se será ainda menos. Com a guerra, certamente será. Então, se as pessoas não gostam de Putin, ele tem de desviar a atenção. A economia não funciona. Depois da Crimeia e das sanções, o rublo desvalorizou. Em Moscovo tudo ficou a metade do preço. Finalmente era possível tomar um café sem pagar preços de Oslo.

As pessoas começaram a viajar, mesmo internamente. Mais de 60% dos russos não têm passaporte para sair do país. Alguns terão ido ao Egito ou à Turquia. Não falo na União Europeia porque é quase impossível, para a maioria das pessoas, obter um visto. É um processo caro, burocrático, demorado. É mais fácil ir à Turquia passar uma semana na praia.

É o contexto popular e isso é muito importante de ter em conta. Há uma parte que vai à Turquia, ao Egito e, claro que não é Londres, mas vêem a qualidade do serviço, a comida, as praias, vêem que, pelo menos para os turistas, há uma parte funcional da economia. Então os russos começaram também a pensar, "será que aquilo que nos vendem é mesmo aquilo que queremos?". 

Isto cria descontentamento. E não só. Putin também subiu a idade mínima da reforma. Muita gente que estava prestes a reformar-se teve de esperar mais dois anos. O medo dele é interno. Não é só o povo. A maioria das pessoas não o contesta. Contesta-o uma parte excecional de pessoas muito ativas em Moscovo e São Petersburgo ou em outras capitais regionais. 

"Estas oligarcas roubaram. Representam a cleptocracia. Tiraram dinheiro dos bolsos dos russos, são corruptos. São responsáveis e não têm escrúpulos."

O momento mais marcante foi a eleição presidencial, em 2012, quando fomos todos votar e percebemos que os resultados foram roubados. Esse foi o cúmulo de esperança dos russos. Pensávamos que podíamos mudar quem estava no poder, mudar o presidente, abrir o país, crescer. Depois começou tudo a cair, até à pandemia, quando as pessoas perceberam que o Estado não ia ajudar quem tinha ficado sem trabalho ou que os hospitais, como já não funcionavam, iriam falhar ainda mais.

O próprio Navalny, durante a pandemia, tinha ainda mais pessoas a ouvi-lo e a assistir ao Navalny Live. Depois, apercebemo-nos que queriam acabar com esta oposição. Tinham testado e preparado isso. Durante estes dez anos percebemos que estavam a preparar as forças armadas, que tinham organizado um grupo de assassinos contra figuras políticas importantes, como esta "equipa de envenenamento", e tudo explodiu em 2021, com a tentativa de assassinato do Navalny, envenenado com novichok [arma química desenvolvida pela Rússia].

Foi o ponto de não-retorno. Creio que agora Putin percebe que de um dia para o outro as pessoas à volta dele, os oligarcas, podem tirá-lo do poder.

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Protesto contra a guerra em Lisboa
Protesto contra a invasão russa da Ucrânia em Lisboa | Cortesia de Aleksei Todosko

Têm havido centenas de protestos na Rússia e a própria oligarquia não deve estar feliz com todas as sanções.

Sim, mas não é só isso. Na Itália confiscaram villas e iates no valor de €143 milhões. Agora, o Roman Abramovich, que é nosso compatriota, tem uma fortuna de $12 mil milhões. Há $800 mil milhões de fortunas russas em offshores, repartidos entre umas 50 pessoas. Acho muito difícil para qualquer pessoa processar este número. É quase quatro vezes o PIB português.

Abramovich é um bom exemplo. Passou duas décadas muito próximo de Boris Yeltsin, ex-presidente da Rússia, e de Putin e agora quer afastar-se do regime.

Só uma vez durante todo esse tempo ele falou contra Putin. Mikhail Khodorkovsky [empresário russo no exílio] sim, tentou ser uma alternativa ao poder e foi posto na prisão. Até agora não percebo como o deixaram sair vivo. Também é um oligarca, também tem milhões e milhões. Putin demonstrou muito claramente com Khodorkovsky que “se tu és oligarca e fores contra mim, vais para a prisão”.

É uma tática de Putin. Há vários grupos de oposição. Se queres acabar com a oposição dos jornalistas não é preciso acabar com o jornalismo. Pegas num conhecido e pões na prisão. O resto tem medo e faz auto-censura. Este é o mecanismo que ele usou em tudo. Isto é o terror que Estaline usava, não foi ele que o inventou. Nunca se pode prever quem é a próxima vítima.

Acha que este incómodo aos bolsos do oligarcas pode levá-los a tirarem-no do poder? 

Acho que cada pedra atirada àquele regime vale a pena. Há quem diga que as sanções não vão funcionar. Eu não estou de acordo com isso. Temos de usar tudo aquilo que temos disponível para acabar com este regime. Os oligarcas têm metade do PIB russo nos bolsos. Esse dinheiro pode ser usado para salvar o regime, para continuar a guerra.


"Putin vive num mundo falso em que os ucranianos o adoram e querem que ele venha libertá-los. Pelo que percebi,  pensava que em poucos dias iria conquistar tudo e proclamar um novo império."

Abramovich continua a voar no espaço aéreo europeu, os outros também. Claramente que são as pessoas mais próximas de Putin. Cada Estado europeu — e não só — deveria parar estes movimentos, confiscar bens se for preciso. Estas pessoas roubaram. Representam a cleptocracia. Tiraram dinheiro dos bolsos dos russos, são corruptos. São responsáveis e não têm escrúpulos. 

E por não terem escrúpulos mantiveram Putin no poder. Até ele ficar com esta noção de ser czar e começar guerras, para salvar-se a si próprio e convencer a própria elite de oligarcas que eles devem apostar nele. Foi aí que Putin cometeu o seu grande erro, porque não percebe sequer o que é a Ucrânia. Nunca viajou para falar com alguma pessoa que não tenha sido posta lá para falar com ele. 

Para perceberes o que passa na cabeça de Putin, há um vídeo em que ele vai visitar uma cidade e conversa com uma vendedora de gelados. É uma atriz. Não é uma pessoa real, uma vendedora de gelados real. Não pode haver uma pessoa que passe na rua e fale com ele. Aqui é possível, eu própria já fiz isso com Marcelo [Rebelo de Sousa]. Na Rússia não. Nem uma pessoa que esteja calada a vender gelados pode ser "verdadeira".  

Putin vive num mundo falso e neste mundo falso os ucranianos adoram-no e querem que ele venha libertá-los. Pelo que eu percebi, ele pensava que em poucos dias ia conquistar tudo e proclamar um novo império. Não aconteceu, porque ele não conhece a realidade.

Com a queda da União Soviética, a aproximação russa ao capitalismo ocidental e depois com a consolidação do regime de Putin, que realidade é essa? Que memória histórica predomina? Resta alguma nostalgia dos tempos soviéticos?

As pessoas novas, como aqueles rapazes que “acordaram” em território ucraniano — e muitos acredito que não sabiam ao que iam — só conhecem a Rússia de Putin. E, provavelmente, durante todo este tempo não se preocuparam com aquilo que estava a acontecer lá fora. Queriam ter um apartamento, o mínimo de estabilidade económica, então foram para a tropa.

Ter dinheiro no bolso, uma casa para viver, é o ápice da imaginação da pessoa comum. Para estas pessoas não existia Estado, não existia política. E de repente começou a existir quando começaram a senti-lo no bolso. Muita gente que hoje é ativista e se manifesta há três anos queria apenas proteger a sua situação económica. 

Muitos só começaram a agir depois do envenenamento de Alexei Navalny [político da oposição muito crítico de Putin]. Foi aí que entenderam o que Putin consegue fazer. Muitos não acreditavam. Foi nesse momento, em agosto de 2021, que o branco começou a ser branco e o preto começou a ser preto. Porque, como já referi, na Rússia muitas coisas são ao contrário.

A geração da minha mãe talvez não queira tanto que a União Soviética volte, mas quer aqueles anos antes de 2000. Mas a óptica mudou nestes dias. Existiu alguma esperança por volta de 2010, quando tivemos o fantoche Medvedev e depois o Estado começou a entrar outra vez na tua vida.

"O meu pai foi assassinado em 1998, por questões económicas, ao procurar justiça. Sei quem foi o assassino, era um dos seus parceiros comerciais, e vi como o Estado era completamente silenciado pelo dinheiro, incluindo a polícia."

Quando a União Soviética acabou foi uma abertura total. Inclusive em termos de violência, porque não existia Estado. O meu pai foi assassinado em 1998 por questões económicas. Quis procurar justiça e foi assassinado. A minha própria visão foi formada em 1998, porque eu vi o que o Estado não faz. Sei quem foi o assassino, era um dos seus parceiros comerciais, e vi como o Estado era completamente silenciado pelo dinheiro, incluindo a polícia.

O dinheiro resolvia tudo, até ao nível mais baixo, porque isto foi numa cidade provinciana da Rússia. Aí percebi que se não há valores, o dinheiro vai comprar tudo.

Para mim, isso foi uma pequena representação do mundo de Putin. Ele aparece em 1999, mas refiro-me ao sistema. Percebi como funciona o sistema e deixei de ter ilusões. Mas havia abertura, liberdade. Podias ser gay abertamente, a cultura pop era completamente livre.

Para a minha geração — tenho 36 anos — aquele foi um tempo terrível mas também um tempo de absoluta liberdade. E esta liberdade começou a diminuir desde 2000. Depois acabou definitivamente com a guerra na Crimeia, mas a maioria das pessoas não se apercebeu disso. Parecia uma pequena vitória, que era o que ele queria.

A Crimeia foi uma vitória para ele. Fácil, em poucos dias ficou tudo arrumado. E ele agora queria repetir isso. A crise de 2008 arrumou as expectativas de toda a gente. E então deu-se a queda no autoritarismo. Agora já temos uma ditadura clara, sem dúvidas.

Nestes dias tem-se confundido o regime com a Rússia e os russos. Filmes russos foram retirados das programações de festivais de cinema e até o Dostoiévski acabou por levar por tabela. Tem sentido algum tipo de reação deste género?

Em Portugal não. Pessoalmente, não notei nada contra os russos. Posso estar enganada e pode acontecer e eu percebo porquê. Peço a alguns amigos para não escreverem “Rússia”, mas sim “Putin” nas redes sociais. Percebo estas sanções e apoio algumas delas.

Todas estas pessoas têm, agora, de tomar uma posição. Não podem só dizer "sou contra a guerra", é preciso dizer quem começou a guerra. E agora é tudo muito claro. Há quem ainda espere receber "pastéis-de-nata" do governo e ficar cómodo e há quem diga "não", e se isso significar sair do país, fugir, irão fazê-lo.

"A crise de 2008 arrumou as expectativas de toda a gente. E então deu-se a queda no autoritarismo. Agora já temos uma ditadura clara, sem dúvidas."

É duro e é muito mais fácil para mim dizer isso desde Portugal, estando aqui há dez anos, do que para alguém que tem que deixar tudo e repensar a vida, caminhando. 

Estudei numa escola diplomática em Moscovo, uma universidade conhecida e prestigiada. Quase todas as pessoas que representam a Rússia no estrangeiro saem dessa universidade. Alguém, da universidade, lançou uma carta aberta contra a guerra para ser assinada. Tinhas de meter o teu nome e o teu ano. Vi alguns nomes lá, mas não todos. Muitas pessoas têm medo. Isto é o branco e o preto, tudo fica muito claro.

O mesmo acontece entre cineastas, jornalistas, médicos, qualquer profissão. Há um lado positivo: há muitíssimas pessoas que, apesar do medo, fizeram o que está certo, especialmente dentro da Rússia. A partir de agora podes apanhar 15 anos de prisão só por dizeres que há uma guerra.

Por falar em sanções, faz sentido a União Europeia bloquear o sinal da Sputnik e da Russia Today (RT)? 

Sim. Recebem mais dinheiro estatal que qualquer sistema nacional de saúde. São propagandistas. Ali não há nuances. A Margarita Simonyan [editora-chefe da RT] consegue mentir sem piscar os olhos. Agora, podemos apoiar os média independentes que só estão de pé porque recebem dinheiro dos leitores: o Meduza, um jornal online bloqueado na Rússia, e a Dhozd, a TV Rain, também bloqueada, que já fechou. 

Terminou as emissões com uma mensagem contra a guerra e cuja equipa agora arrisca pena de prisão. 

E é um ótimo exemplo. Sobreviviam sem apoio do Estado. Tinham doações, passavam publicidade, mas conseguiram criar aquele órgão de comunicação e mantiveram-no porque as pessoas queriam apoiar o jornalismo naquele formato. 

Mas não é perigoso fazer-se essa censura prévia de ambos os lados? 

Há duas coisas: há jornalismo e há propaganda. Quando é propaganda e desinformação, não vejo isso como censura. É uma maneira de parar a informação falsa. A RT pagava, e muito, para que essa informação falsa circulasse nas redes sociais. Usavam o nosso dinheiro para propagar ideias falsas e instigar as pessoas à guerra, enquanto todos estes propagandistas têm residências na União Europeia e muitos provavelmente já saíram da Rússia.

Putin foi sempre relativamente tolerado pelos europeus e pelos norte-americanos. O seu regime bombardeou a Síria. A Crimeia foi invadida em 2014 e desde aí que se desenrolava uma guerra em Donetsk e Lugansk. Porquê só agora estas reacções? 

Por ser uma guerra "a sério" na Europa. E a União Europeia e a NATO ainda não fizeram o suficiente. Há anos que pedíamos estas sanções contra pessoas bem concretas. É muito cómodo ter estes milhões em solo europeu e americano, mesmo em Portugal.

Quero saber o que vai sair das investigações que a justiça está a fazer para perceber como é que um cidadão [Abramovich] que não tem nada que ver com Portugal consegue a cidadania portuguesa com toda aquela história de ser sefardita.

"Há muitíssimas pessoas que, apesar do medo, fizeram o que está certo, especialmente dentro da Rússia. A partir de agora podes apanhar 15 anos de prisão só por dizeres que há uma guerra."
 

Obviamente que não podemos falar de genética. Não sei, não vi os papéis, até poderia ter existido algum antepassado seu sefardita e não asquenaze, porque ele vem de uma região de judeus asquenaze. Mas nós, russos aqui em Portugal, para conseguir um visto temos que fazer um tour completo pelo inferno. Temos que esperar dois anos até dizerem que “sim” e depois mais dois para emitirem o documento. Ele conseguiu em seis meses. 

Conheço como Portugal funciona por dentro, conheço o processo. Não tenho nenhum documento sobre a genética do senhor Abramovich, mas sei que conseguir a cidadania portuguesa em seis meses é impossível. Só com dinheiro. A corrupção consegue tudo, não só na Rússia. Agora sabemos que também consegue alguma coisa em Portugal. 

Agora o português mais rico de sempre é Abramovich, três vezes mais rico que a antiga família mais rica do país, os Amorim. E isto foi muito cómodo para alguém. Como é em Itália, em França, no Reino Unido. Todo este dinheiro que nos roubaram — e quando nós saíamos a protestar metiam-nos na prisão — resolvia tudo na Europa. 

É uma hipocrisia, sim, mas finalmente a UE e os EUA estão a fazer alguma coisa. É só a ponta do icebergue, ainda há muito mais para fazer, mas finalmente perceberam, "vendemos quintas, villas, iates e vistos gold e agora temos que mandar tropas". Agora estão todos com medo de mandar os próprios cidadãos para lá. Podiam ter parado isto antes. 

Enquanto os oligarcas vieram cá lavar o seu dinheiro não se preocuparam com a Crimeia.

Claro que não. E nós,professores, estudantes, que travávamos essa batalha sem dinheiro, só com os nossos valores, pedimos esta ajuda. E agora, finalmente, o mundo quer tirar Putin do poder, só que de maneira muito cruel. Na frente de batalha estão as escolas da Ucrânia. A nossa guerra agora é feita com as crianças ucranianas e as pessoas que não têm nada que ver com isso. Outra vez, se olharmos através de uma vista panorâmica, por causa de corrupção. Alguém quer ficar muito rico.

As sanções estão a atacar onde devem? O rublo está a cair, a economia russa pode colapsar e quem sofrerá com isso será será certamente o povo russo.

O rublo caiu e temo a violência interna, porque vamos voltar para os anos 1990. Esse é o meu maior medo. As pessoas ficam sem trabalho, sem oportunidades, viram-se umas contra as outras. As sanções funcionam e devem ser feitas contra pessoas específicas. Abramovich ainda não está na lista das sanções e já sabemos quem ele é há décadas [Roman Abramovich viu, entretanto, os seus ativos congelados no Reino Unido]. Obviamente que há uma elite internacional com os bolsos cheios de dinheiro corrupto russo e não é muito cómodo aceitar isso e fazer alguma coisa concreta.

"Portugal ainda não fez nada em concreto para perceber se Abramovich tem propriedades cá, se tem contas bancárias cá. Ou sobre os vistos gold. Há capital legítimo, mas qual é que não é?"

Mas todas [as sanções] são pequenas armas que devem ser usadas. Por exemplo, se não conseguir mandar dinheiro para a minha mãe na Rússia, ou ela para mim, isso não vai tanto assim contra o regime de Putin, embora faça os russos sentir no próprio bolso que têm que sair à rua. Alguns já saíam, agora se saem vão para a prisão durante 15 anos. Se ainda não fizeram nada para parar os oligarcas, parece-me incongruente, parece que estamos a perder a oportunidade.

Portugal ainda não fez nada em concreto para perceber se Abramovich tem propriedades cá, se tem contas bancárias cá. Ou sobre os vistos gold. Há capital legítimo, mas qual é que não é? Quem são as pessoas russas que obtiveram a nacionalidade? Que ligações têm ao regime? 

Como vê esta rapidez na opinião pública em adotar um discurso de bem contra o mal e em condenar o regime e os seus oligarcas, sendo que, como disse, o seu dinheiro está espalhado por todo o lado?

Já existia dentro da Rússia. Sabíamos que havia uma parte resistente, não tão grande, de ativistas. Sempre fomos poucos. O que precisamos é que mais pessoas apoiem a nossa causa. Acho que com as investigações do Navalny ficou tudo preto no branco: quem trabalha para o regime e fica rico com isso e depois tira os capitais para fora do país. Toda a elite corrupta ligada ao poder. Esses já sabíamos quem eles eram. Agora mais pessoas o sabem, pois para os russos já era claro.

É muito simplista pensar que os russos são maus e os ucranianos são bons. Há uma expressão fantástica, que diz que Ucrânia e Rússia “são pernas que saem do mesmo cu”, que é a União Soviética. Há pessoas más e pessoas boas por dentro. O que gostava que percebessem no resto do mundo é que há russos que lutaram contra o regime corrupto, e outros que queriam lutar mas tinham medo, e que somos a absoluta maioria. E que dentro da UE e dos EUA quem tem tido mais apoio é o regime corrupto, não o povo, porque é o regime que paga para isso.

Desde a Guerra Fria que a Rússia é, cultural e politicamente, um "vilão" fácil de odiar. Tem sentido isso?

Dentro da Rússia não superámos ainda o estalinismo, nem fomos educados a questionar a nossa própria história. É um país pobre com uma economia do tamanho da Espanha mas com três vezes mais pessoas. É um país violento, porque é um país pobre. Há muito machismo, muita desigualdade. Muito racismo quotidiano. Aquilo que aconteceu na fronteira da Ucrânia com a Polónia com cidadãos portugueses afrodescendentes não me surpreendeu. Outra vez: “pernas do mesmo cu”. 


"A Rússia é um país violento, porque é um país pobre. Há muito machismo, muita desigualdade. Muito racismo quotidiano."

Somos assim. Digo, tento não ser assim. Há uma parte intelectual, há uma alta cultura, mas não podemos imaginar que todos os russos leram o Dostoievski. E é uma cultura popular muito violenta.

Eu própria vi isso na minha família quando assassinaram o meu pai. E não acho que todos os russos sejam bons e fantásticos. Há pessoas que acreditam nesta guerra. Há pessoas que acreditam que os ucranianos são, de alguma forma, inferiores. Mas não é a maioria. As pessoas não querem a guerra, mas a realidade russa é a violência e a pobreza.

E o isolamento provocado por esta guerra vai piorar isso.

Sim. Aquilo que ajudou - e vi isso na minha vida - foi algum acesso ao Facebook, ao Instagram, à Internet. Começou-se a copiar ideias e normas sociais e acho que isso foi bom. Quando estou em Portugal posso dizer que o Instagram é mau porque perdes tempo e atenção, mas na Rússia talvez seja uma maneira de introduzir o resto do mundo na cabeça das pessoas. 

Não vou dizer que todos os russos são bons, longe disso, somos um país violento. Mas dizer que os russos querem guerra, não. Isto é uma guerra de Putin. Aliás, podes ser machista e não apoiar o Putin. São variáveis independentes. Não conheço ninguém que queira esta guerra. Mesmo os que são mais pró-regime vejo-os calados, ninguém está a dizer "vamos para a guerra".

A Europa gosta de olhar para a Rússia como o seu oposto? De novo, como o "vilão da história"?

A Rússia não foi o vilão da história durante a II Guerra Mundial. Acho que a Rússia é europeia. Somos tão parecidos. Os valores de base são iguais, fazemos parte do universo europeu, vemos-nos como europeus. Temos a língua, a cultura e o passado sempre ligados à Europa. Às vezes através das guerras, às vezes através do balé. 

Vejo a Rússia como parte da Europa. Temos tudo para partilhar. Se calhar, é esta proximidade que cria essa imagem. Temos raízes em comum. Quanto mais nos parecemos mais fácil é entrar em guerra. 

Em que tipo de circunstâncias vê o Putin ser deposto? O que é que gostaria que viesse depois dele?

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protesto pela ucrânia
Protesto contra a invasão da Ucrânia e o regime de Putin, em Lisboa, a 24 de fevereiro. | Cortesia de Aleksei Todosko

O mais provável, sendo optimista, é ele ser afastado por alguém de dentro. Só gostava que ele saísse de lá de alguma maneira. O cenário ideal seria um julgamento num tribunal como deve ser, para demonstrar a qualquer ditador, russo ou não, do presente ou do futuro, que assim não se faz. E seguindo todas as convenções internacionais e com toda a legitimidade para mostrar que não é este modelo que queremos para o nosso planeta. 

Mas teria que ser julgado na Rússia, já que o país não reconhece a autoridade do Tribunal Penal Internacional. Vê isso a acontecer?

Deveria ser num tribunal internacional. É um assassino. Gostava que ele tivesse essa sorte, mas também sabemos que muitos ditadores, como o Estaline, morreram com a própria morte. O bem nem sempre vence o mal, isso é que é esquisito. Nós temos que defender o bem, para corrigir o mal. Há muitos ditadores que morreram velhinhos e passaram uma vida bastante calma depois de todas as atrocidades que praticaram. Como agora o mundo acelerou, e falo mesmo por egoísmo pessoal, é necessário tirá-lo de lá rapidamente, abrir o país, reconstruir o país. Quero poder voltar e ser útil. 

Putin passou os últimos 23 anos a construir e a solidificar o seu regime. Esta guerra pode finalmente precipitar a sua queda?

Construiu uma ditadura e um Estado de terror. E sim, ele está a acelerar a sua queda. Podemos fazer vários paralelismos. Podemos olhar para a História, mas não vamos encontrar nela a resposta para esta situação. Ao último czar sabemos o que lhe aconteceu: levou um tiro na cabeça. Toda a família czarista foi assassinada na Revolução [bolchevique de 1917]. Esta é uma das saídas.

 Portanto, há vários cenários, mas aquele que me parece mais provável é que seja alguém de dentro a fazê-lo. Pelo que é discutido pela intelligentsia, quem está à volta dele não esperava esta guerra. Se estivessem à espera, teriam mandado os seus iates para casa. Foi um imprevisto, para muitos. Toda esta elite agora está a pensar: "quem é que o vai tirar dali?".

E a transformação política da Rússia, não depende do povo?

Sim, mas o que é que estas pessoas, sem armas, vão fazer? Somos todos ativistas pacíficos. Não vi nenhuma violência em todos estes anos. Todos os protestos eram pacíficos. O máximo foi um copo de plástico atirado a um polícia e a pessoa que o atirou foi para a prisão. Ou bolas de neve.

"Não conheço ninguém que queira esta guerra. Mesmo os mais pró-regime vejo-os calados, ninguém está a dizer 'vamos para a guerra'."

Claro que as pessoas têm medo. Sais de casa e a tua vida acaba. Tenho uma amiga ativista e artista, lá. Só porque estava a passear na rua apanhou 15 dias na prisão. E isto já não parece nada, "ok, 15 dias na prisão". Não vejo como é que as pessoas poderão ir de repente contra as forças armadas. Por isso é que, infelizmente, esta guerra é a única maneira de o tirar de lá. E ele próprio a procurou. É tão louco dizer isso.

Parece estar tudo a correr-lhe mal.

Sim, está-lhe a correr muitíssimo mal. Vou citar Davlatov, um escritor fantástico russo. Ele tem um conto brilhante sobre como ninguém deveria ter medo da armada soviética, porque aquilo está tudo completamente podre por dentro. É isto que vemos com o exército russo. 

"Há mais corrupção nas forças armadas do que mofo nas casas de Lisboa. Houve soldados a vender a gasolina dos tanques."

E corrupção há em todo o lado. Há mais corrupção nas forças armadas do que mofo nas casas de Lisboa. Houve soldados a vender a gasolina dos tanques. Os soldados recebem muito pouco, então se têm oportunidade de ganhar alguma coisa... E não têm qualquer informação, percebem que estão ali só para morrer, obviamente não têm razão nenhuma para combater. 

E quando vês os vídeos de soldados russos, filmados por ucranianos, vês que são miúdos, completamente perdidos, sem qualquer vontade de combater. E ainda bem. Ainda bem que não conseguem fazer a guerra.

O trágico é que estes soldados vêm das famílias mais pobres, não têm nenhuma esperança, provavelmente deram-se mal na escola e são usados da maneira mais desumana. Ninguém se preocupa com eles. Ficam a apodrecer lá, porque nem os seus corpos vão voltar. São só números.

Sim, até já vimos civis ucranianos a dar comida e chá quente a soldados russos. 

E isso também é uma lição da Ucrânia, ao tratar com humanidade esses prisioneiros, de que se deve desfazer a violência. Especialmente na Rússia. Depois de passar muitos anos fora senti que na Rússia há como que um muro invisível, uma caixa, umas fronteiras, dentro da cabeça das pessoas, à volta daquilo que é possível. Uma maneira de destruir isso é punindo. Outra é tentando ter empatia e perceber que é preciso desfazer a violência e o medo e reconstruir a paz.