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Heloísa Buarque de Hollanda: "Vi com clareza a violência das relações de poder entre os sexos no Brasil"

Em entrevista ao Setenta e Quatro, a investigadora reflete sobre a importância do feminismo no combate à ditadura militar brasileira. Dos movimentos estudantis aos grupos de contracultura brasileiros criados nas margens, Heloísa Buarque de Hollanda explica como a "demonização dos estudos feministas" se gerou e se intensificou com o avanço da extrema-direita nas últimas quatro décadas.

Entrevista
26 Janeiro 2023

O dia 14 de dezembro de 1968 foi um dos mais quentes desse ano. Registava-se uma máxima de 30ºC em Brasília. “O tempo anda negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos.” Este era o boletim metereológico que o Jornal Brasil anunciava. Não se tratava apenas de meteorologia, tinha algo maior: uma mensagem. O Senado fechava por tempo indeterminado e o Brasil entrava naquele que se mostrava ser o deserto de uma ditadura militar.

Dava-se início à vaga de prisões e torturas que traumatizaram milhares de brasileiros. Para quem viveu esses tempos tornou-se muito difícil entender como é que representantes políticos como Jair Bolsonaro assumiram a governação de um país 35 anos depois depois da ditadura militar terminar, em 1985. “Tivemos uma crise de democracia muito violenta. Os estudos feministas perderam as bolsas. Não tínhamos mais apoio na pesquisa”, afirma a professora, crítica cultural, jornalística e ensaísta Heloísa Hollanda Buarque, também conhecida por Helô Teixeira.

Aos 83 anos, a teórica especializada em Estudos Feministas recorda os tempos nebulosos que assombraram as últimas quatro décadas no Brasil. Se nas teorias feministas encontrou o seu lugar para reivindicar os direitos das mulheres, foi na Ação Libertadora Nacional, organização armada de esquerda, que “gritou” pela liberdade das mulheres brasileiras. 

Inserida numa geração atropelada pela ditadura militar, não procurou o exílio. Aos 29 anos, Heloísa Buarque de Hollanda tornou-se “mito e ícone da intelectualidade carioca”. 

A cultura e a literatura foram fundamentais para si. E, por isso, Buarque de Hollanda não deixa de alertar para a violência das relações de poder entre os sexos no Brasil, que ainda hoje se evidenciam. Foi nas margens que viu nascer e atuar os movimentos de contracultura, destacando o seu papel no cenário político e cultural brasileiro. 

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Anos 1980, momento chave da retomada dos direitos civis e políticos no Brasil. Após 21 anos de ditadura militar, o ponto de ebulição dos movimentos feministas deu-se também dentro da revolução intelectual, com as novas teorias e vagas. Por que razão os feminismos brasileiros eram colocados em segundo plano face a outras lutas, como a antirracista? 

Eu não sei se as relações de poder em Portugal são hoje iguais às do Brasil, mas aqui temos uma tendência virada à ideologia do favor. Há uma dissimulação muito grande entre quem está no poder e quem não está. É uma coisa que aparentemente é amável e há muitos mitos que se vão construindo em torno disso. Dizem haver uma democracia racial, uma democracia sexual, até grande liberdade das e nas mulheres brasileiras, mas não é bem assim. Nunca foi. Faz sentido perceber desde já que todos os campos intelectuais estão ligados e dependentes de duas coisas: a política, no caso brasileiro as relações de poder, e a sociedade. 

Ao invés de começarmos pelo período histórico mais memorável, falemos dos anos 1960. O racismo no Brasil era muito acentuado. Mais do que o sexismo. Esse foi, claramente, o ponto de partida do feminismo no Brasil. Nessa altura, estava muito mais vinculada aos movimentos antirracistas do que exatamente aos movimentos feministas, como foi o caso do Movimento Negro Unificado e a outras frentes raciais. Eu pensava que esta “coisa do feminismo” não era uma realidade tão grave no Brasil. 

Só quando viajei para o exterior é que tive o chamado “gap”. Vi com clareza a violência das relações de poder entre os sexos no Brasil: subtis e enganosas. Dissimulam muito bem. Esta perspetiva da distância é muito interessante, porque se fizermos um estudo das lideranças feministas no Brasil, quase todas passaram por um momento de exílio na Europa, mais especificamente em França, principalmente na época da ditadura. Há um movimento feminista brasileiro que nasce na França. 

"Perdemos os nossos interlocutores. Artistas, intelectuais, estudantes viajaram, foram embora ou, pior, desapareceram. Foi nesse momento que eu comecei a perceber a força da cultura marginal."

Nos anos 1980, quando viajei até à Europa e, de seguida, para Nova Iorque, foi quando as teorias começaram a aparecer por todos os cantos. Os primeiros tratados feministas norte-americanos eram da época. Em 1981 e 1982 começaram a aparecer textos, cá e lá, mais orgânico, ainda que nem sempre fosse óbvio. Podemos encontrar textos feministas no século XIX, mas não há um campo do saber que se consolide, como aconteceu nos anos 1980. 

Lembro-me que durante o tempo que estive nos Estados Unidos dizíamos que era “agora”. Era “momento de interpretar o que as mulheres estavam a reivindicar”. Chegava a altura de interpretar a sua história e, com isso, seria um novo direito feminista que estaria a aflorar. Foi nesse momento de muita efervescência que a teoria apareceu como uma coisa nova. Começaram a criar-se departamentos de estudos feministas nesse ano, com mais bibliografias, mas não tinham obras de mulheres. Só tinham nomes de homens. 

A reorganização bibliográfica brasileira foi um dos passos primordiais para que as mulheres entrassem na academia? 

Em 1968 houve um esvaziamento e um silenciamento radicais na universidade. Recebíamos uma lista de livros e autores que não podiam ser citados. Eram muitos. Se fosse só [Karl] Marx e [Georg] Lukács, seria fácil, mas não. Era uma lista grande, inexplicável. 

Outro grande problema é que sabíamos que na sala havia sempre um informador. Dávamos aulas conscientes de que corríamos perigo e os professores aproveitavam esse clima para criar rivalidades - a chamada idiossincrasia dos intelectuais. Era um ambiente de paranoia diária. Perdemos os nossos interlocutores. Artistas, intelectuais, estudantes viajaram, foram embora ou, pior, desapareceram. Foi nesse momento que eu comecei a perceber a força da cultura marginal. 

A bibliografia foi um começo. Digamos que foi o abanão que precisávamos para se fazer ver o aparato académico em torno da mulher. Foi também nesse momento que despertei para o feminismo. É por isso que digo que me tornei feminista através da teoria. Naquela altura a teoria era realmente muito fascinante, porque presenciávamos uma interpelação das grandes linhas mestras. 

As teorias surgem a partir da necessidade de interpretar novos textos, com uma tese que fosse muito mais completa. Freud era falocêntrico; Marx era sexista; e Deus era machista. Todas estas áreas de conhecimento começaram a ser interpeladas pela sua visão masculina da epistemologia. 

Vinte anos depois nasce o Centro de Estudos Feministas. 

Sim. Foi muito interessante e muito duro, porque era professora na Escola de Comunicação, na Universidade São Paulo. Então, como todo o órgão [académico] que se forma, foi levado ao grupo que orientava os orientadores da universidade. 

A resposta que recebi desse mesmo grupo foi ridícula: a Comunicação não tinha nada que ver com mulheres e, por isso, não podíamos ter um centro de estudo dedicado a mulheres. Foi nesse preciso momento que percebi o quão grave se tornava o panorama no Brasil. Insisti e persisti. Hoje, com 83 anos, continuo nesse mesmo centro, em luta pelas mulheres. É impressionante, porque o feminismo é uma lente. Depois que a colocas não a tiras mais. É uma forma de ver o mundo, específica, de que não se abre mais mão. E essa mesma forma é estrutural e estruturante.

Mas mais do que a literatura e as teorias, houve também um episódio mais violento nesta mesma luta que destaca. Ano de 1968, um bunker, uma prisão. 

O ano de 1968 foi um ano marcado por muitas paixões e fortes embates políticos e ideológicos. Naquele ano o movimento estudantil explodiu por toda a parte. No Brasil, depois da famosa "Passeata dos Cem Mil", realizada aqui no Rio de Janeiro e que se tentou replicar nas diversas capitais do país, o ano terminou com a decretação do Ato Institucional n. 5., [o quinto de 17 decretos emitidos pela ditadura militar nos anos que se seguiram ao golpe de estado de 1964 no Brasil]. 

A partir daí, as prisões, as mortes e as torturas, iniciadas em 1964, aumentaram. A radicalização do regime, para muitos, justificava a continuidade da nossa luta. Foi também em 1968 que várias mulheres ingressaram na organização de esquerda armada, a Ação Libertadora Nacional. 

Naquela noite do dia 20 de agosto de 1970, no quartel da Polícia do Exército situado na Rua Barão de Mesquita, número 425, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, ouviu-se uma frase que até hoje ecoa forte nos nossos ouvidos: “Aqui não existe Deus, nem pátria, nem família. Só existe nós e você.” 

"Vi com clareza a violência das relações de poder entre os sexos no Brasil: subtis e enganosas."

Hoje, passados mais de 50 anos, penso no efeito que aquela frase teve em todos nós. Com 21 anos de idade, cheia de certezas e transbordando de paixões, não queria morrer. Embora totalmente sem saída e literalmente apavorada, aquela frase não deixava a menor dívida para algo que já sabia, mas que naquele momento ganhou força e tornou-se concreto. Não havia comunicação ou negociação possível entre aqueles dois mundos: o meu e o deles. 

Era naquele quartel que funcionava o DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna foi um órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo brasileiro]. O prédio tinha dois andares. Diferentemente do que muitos dizem, aquele lugar não era um “porão da ditadura”, um local clandestino. Embora ali não existisse “nem Deus, nem pátria, nem família”, vivíamos numa dependência oficial do Exército brasileiro. Uma instituição que funcionava a todo vapor, com todos os seus rituais, os seus símbolos, os seus hinos, a sua rotina. 

A sala de tortura ficava no andar térreo, com as paredes pintadas de roxo e devidamente equipada, outras salas de interrogatório com material de escritório, essas às vezes usadas, também, para torturar, e algumas celas mínimas, chamadas solitárias, imundas, onde não havia nem um colchão. Nos intervalos das sessões de tortura, os presos ficavam ali. No segundo andar do prédio havia algumas celas pequenas e duas bem maiores, essas com casa de banho e diversos beliches. Foi numa dessas celas que mulheres como Dulce Maria, Guida Amaral, Dilma Rousseff ficavam. 

Normalmente, os torturadores, embora fossem quase todos militares, andavam à paisana. Os fardados cobriam com um esparadrapo [adesivo] o nome que estava gravado num dos bolsos do uniforme. Cabia aos cabos e soldados cuidar da infraestrutura. Eram eles que fechavam e abriam as celas, levavam-nos para os interrogatórios, ou melhor, para as sessões de tortura, faziam a ronda noturna, levavam as nossas refeições. 

Naquela fase, éramos presos clandestinos. Só saímos das celas para os interrogatórios, de olhos vendados, sempre com um capuz preto na cabeça. Quase todos os que faziam o trabalho de infraestrutura incorporavam o ambiente da tortura. Mas havia algumas exceções. Um dos soldados, por exemplo, deu um pedaço de papel a Dulce Maria e uma caneta para que escrevesse uma carta para os meus pais. E, de facto, a carta chegou ao destino. Mas estava longe de ser menos culpado que os outros [soldados].

Olhando para os governos que se impuseram até hoje, o que vemos é que não entenderam a causa fundadora desta violência, que está diretamente ligada à impunidade dos torturadores. Fala-se com propriedade porque nada aconteceu com outros semelhantes a eles.

Por exemplo, o facto de Bolsonaro ter elogiado o maior torturador da ditadura, o coronel Brilhante Ustra, mostrou claramente a apologia da tortura. Tudo isso se fez até então, porque nunca se sentiu nenhum risco nisso. 

E as patrulhas ideológicas? Esta expressão foi cunhada por si, sendo que no final dos anos 1980 chegou a escrever sobre o termo. Que importância teve na cultura brasileira?

No Brasil sempre houve problemas com a censura, o confronto, o debate. Isso é cultural entre nós. Qualquer crítica ou confronto tornam-se problemáticos, as pessoas começam a inventar estratégias para evitá-los. Qualquer dissidência é uma questão complicada, porque tendemos à negociação, à meta mais consensual. 

Nesse sentido, o caso “patrulhas” foi particularmente interessante. Estivemos muito tempo em regime de ditadura, formou-se um bloco contra a ditadura, e a experiência política da esquerda foi empobrecida. Houve muita militância mas pouco exercício político durante o período de exceção institucional. Ficámos na oposição a um regime específico mas, ao mesmo tempo, muito ausentes de qualquer debate. Muitas coisas estavam a acontecer nos anos 1960, houve a crise do petróleo nos anos 1970, o mundo tornou-se ainda mais complexo e estávamos no paredão contra a ditadura. 

"A radicalização do regime, para muitos de nós, justificava a continuidade da nossa luta."

Na hora em que o regime começou a mostrar brechas, em que o próprio bloco do poder começou a enfraquecer e a sentir necessidade de uma abertura política, a esquerda não soube o que fazer: perdeu um pouco o pé. 

Politicamente falando, depois da nossa libertação e ultrapassada a situação, as pessoas tinham que dizer ao que vinham. Não havia mais um bloco fechado contra a ditadura. A esquerda estava dividida em várias partes. Em outros países, a democracia já era algo muito testado, as pessoas já estavam bastante treinadas na vida democrática, pelo menos naquele momento, e nós continuávamos ainda num estágio democrático muito incipiente. 

Foi então que Cacá Diegues [cineasta] cunhou a expressão “patrulhas ideológicas”. Foi na época do filme Xica da Silva. Formou-se uma posição desse filme diante da questão negra. Aliás, a esquerda, particularmente, assumia este filme como racista. A partir da reclamação de Cacá sobre o patrulhamento da esquerda, desenvolveu-se uma discussão mais séria sobre o que seria a esquerda naquele momento. E a esquerda não se entendia. Não se entendia, porque entre nós é muito difícil o exercício da democracia: um ouvir o outro, responder, aceitar alguma coisa. 

Só a partir de 1978 é que surgiu um momento intenso, de difícil aprendizagem. O debate sobre as “patrulhas ideológicas” teve um papel importante nisso tudo. Era uma abertura para cada um se exercitar na democracia: de considerar outra posição política diferente da sua. Era um incentivo ao diálogo e isso é muito difícil, porque não é da nossa natureza. Traz sempre muito conflito. A contracultura, por exemplo, foi considerada alienada. A esquerda foi considerada alienada e censuradora. Isso não se ausentou por completo ainda hoje. 

Foi interessante na composição política da época, da ditadura toda no geral, porque atrasou a nossa maturidade política. Estruturalmente já temos uma configuração particular de escala de valores, de relação de forças e de poderes que é muito verticalizada. E, nesse sentido, o debate sobre as patrulhas trouxe um problema e ninguém sabia como resolvê-lo.

Fiz um conjunto de entrevistas na altura que escrevi sobre isso. Mapeei todas as ideias e afirmações que resultaram das entrevistas a pessoas do PCB [Partido Comunista Brasileiro], nacionalistas, militantes da esquerda mais nova (da esquerda de “comportamento”) e com isso reuni uma coletânea de ideias. Ninguém tinha noção do que estava a acontecer. Os entrevistados sabiam apenas que tinham perdido o pé. Ninguém defendia a patrulha, mas todos sabiam que patrulhar era complicado. Não o poderiam deixar de fazer.

E como é que a contracultura contornava isso? Agia como nos Estados Unidos? 

A contracultura no Brasil assumiu cores diferentes da dos Estados Unidos da América, porque estávamos numa ditadura e a função que ela cumpriu aqui foi bastante específica tendo em conta o momento político. De qualquer forma, a contracultura norte-americana tinha as suas nuances. Havia os yippies, como o [Allen] Ginsberg e outros, que confrontavam o sistema. 

A meta era a mesma, a de mudar o sistema, mas os yippies faziam isso de forma aberta e agressiva. E havia os hippies, também contra o sistema, mas que não confrontavam; saíam fora do sistema, "drop outs", como diziam. A ideia era construir uma sociedade exemplar, que servisse de modelo para o capitalismo da época. Apostavam na falência do capitalismo. A nossa contracultura tinha um pouco das duas. 

Digamos que a nossa contracultura chega com o Tropicalismo e os seus desenvolvimentos posteriores. Ora, o contexto desse momento era o de um território dominado, censurado, que é tudo o que a contracultura rejeitaria. 

"Embora ali não existisse “nem Deus, nem pátria, nem família”, eu estava numa dependência oficial do Exército brasileiro. Uma instituição que funcionava a todo vapor, com todos os seus rituais, os seus símbolos, os seus hinos, a sua rotina."

Pelo contrário, a contracultura americana desenvolveu-se abertamente, uma boa parte foi até apropriada pelo mercado, o seu inimigo número um. Aqui não, ela foi subterrânea. O movimento negro segurou-a durante um tempo. Já o movimento de mulheres não pôde defender a agenda de liberdade sexual, do aborto, bandeiras que estavam sendo elevadas internacionalmente. E isso por uma razão estratégica muito interessante. 

Enquanto oposição à ditadura, o feminismo tinha como parceiro a Igreja, uma das poucas instituições que abrigavam a nossa oposição. Resultado: para não ir contra a Igreja, as mulheres abriram mão de suas exigências políticas de natureza pessoal. Focaram-se muito tempo em saúde e trabalho. O feminismo engasgou-se na época da ditadura e teve de se reestruturar, como aliás todas as nossas exigências de minorias.

É nesse sentido que mesmo as mulheres que diziam não ser feministas mas reivindicam os mesmos direitos perceberam do que se tratava? 

No livro Feminista, Eu?, publicado o ano passadotrabalhei muito isso. No campo artístico dos anos 1960 e 1970 em momento algum as mulheres se assumiam feministas. Todas se diziam femininas, mas não feministas. Não sei se é porque o feminismo estava muito caracterizado como um ativismo, e estas mulheres não eram ativistas, ou se era realmente uma coisa de mercado. 

O que acontece é que nos anos 1970 as mulheres começaram a aparecer no mercado das artes, um mercado de cultura, e então tinham medo de serem postas num gueto feminista. Queriam tanto entrar no mercado, tendo todo o direito de privilégios que isso podia dar. Se complicava, preferiam não se nomear feministas. Por exemplo, no cinema brasileiro, as mulheres foram muito importantes neste período. Ele [o cinema] apareceu, mas não era absorvido pelo Cinema Novo - que se mostrava praticamente igual - tinha as mesmas prerrogativas. Tinha até, por vezes, os mesmos técnicos, mas separados. 

O Cinema Novo, assim como a Música Popular Brasileira, não deixavam as mulheres entrar e serem compositoras. Mas há todo um campo artístico onde as mulheres eram muito ferozes. Rita Lee é uma cantora de rock, muito agressiva do ponto de vista de costumes, e não era feminista. Fomos percebendo que se mostrar ser pela forma como renunciava os costumes, o quebrar de regras, quebrar tabus, mas nunca mencionando ser feminista. 

No Brasil, só se tornou “confortável” ser feminista nos anos 1990 e 2000. Essa suavidade entre os diferentes níveis de poder engana muito e as pessoas tiram propósito disso. Aliás, tiram vantagem desse engano. Desta forma, mantém-se um pouco essa coisa do cordial. Quando não é cordial, então a cultura se impõe. Foi muito marcante porque nos outros países o feminismo já se disseminava em muitos lugares. 

Menciona uma nova vaga (1990 e 2000). É nesta altura que surgem novos movimentos de resistência?

Sim, nos anos 1990 temos um cenário enorme que reflete isso. Do ponto de vista teórico da academia, que é mais a minha área, a chegada dos estudos gay e dos estudos queer, que são muito mais avançados, superaram. A teoria feminista conheceu um momento de baixa. O próprio ativismo feminista ficou adormecido e é então que surge uma geração pós-feminista: “o feminismo conseguiu tudo, agora você é pós-feminista”. É interessante porque isso coincide com o período neoliberal da economia brasileira. Isto mostra que deixou de existir o movimento transformador dos anos 1960 e 1970 e passou-se a assumir um feminismo individualista.

Por exemplo, uma mulher conseguiu ser Presidente da República. Foi o suficiente para alimentar discursos que reivindicavam a exceção. Tornou-se tudo muito individualista. Não há um movimento que leve todas as outras juntas. É apenas a vitória do indivíduo, o que é bem diferente do modelo feminista. Antes dos anos 1980 e depois, a partir de 2015, o feminismo volta a ter um projeto mais transformador. 

E as lutas estudantis foram tão fortes quanto nos primeiros anos? 

Este é o momento em que as mulheres conseguem altos postos nas universidades. O que o feminismo queria era uma mudança de estrutura. E, na realidade, só havia exceções individuais, mas reparemos: o discurso destas pessoas segue uma epistemologia masculina. Faz o golo, mas ele não transforma. Ele abre espaço para grandes mulheres, mas isso não significa que o faz com o propósito da luta feminista. 

 Há uma certa crise da democracia no espírito dessas pessoas?

Isso é uma coisa tão bonita, porque tivemos uma crise de democracia muito violenta com Jair Bolsonaro. Os estudos feministas perderam as bolsas. Não tínhamos mais apoio à pesquisa. Eles [governo] chamavam-lhe de ideologia de género. Uma “ideologia de género”, aos seus olhos, era educar as crianças para serem gays ou queers. Como aquilo que fazíamos a palavra “género” já era muito mal visto. Todo o apoio académico a esses estudos acabou. Mas estávamos em plena quarta vaga!

"O movimento de mulheres não pôde defender a agenda de liberdade sexual, do aborto, bandeiras que estavam sendo elevadas internacionalmente."

O Bolsonaro ocupou a presidência em 2019, mas antes, em 2015, houve a famosa quarta vaga, onde o feminismo aparece muito efetivo, muito alto, com uma linguagem nova e muito contundente. Quer dizer, ele [feminismo] entra para a agenda pública e não sai mais. O Bolsonaro não foi o bastante para fazer um retrocesso no feminismo. A força do Bolsonaro contra o feminismo e a ideologia de género não bastou para acabar com o feminismo jovem, muito entusiasmado e muito cheio de garra, muito vital. 

A morte da Marielle Franco marcou, e marca, as lutas feministas brasileiras, quer a nível político quer a nível social.

A Marielle foi exatamente um marco. Há o antes e o depois da Marielle. Como tivemos George Floyd nos Estados Unidos, houve a Marielle no Brasil. Foi um marco muito relevante porque refletiu-se num homicídio da voz política. Era uma mulher que denunciava as milícias e é exatamente nessa altura que o Bolsonaro sobe como um miliciano. Este é um crime cujo autor não foi até hoje descoberto. 

A Marielle serviu a três frentes: a luta das mulheres, a luta do racismo e a luta política. Ela ainda é uma bandeira internacional. No governo Lula, uma das primeiras propostas do ministro da Justiça é descobrir quem foi o responsável pela morte de Marielle Franco, sendo que a mesma foi encoberta durante o governo Bolsonaro. 

O crescimento da extrema-direita nessa altura foi bastante expressivo. 

No Brasil, a extrema-direita nunca se tinha manifestado em tão grande escala. Foi um susto geral. Ninguém imaginava que havia uma parte tão grande da população de extrema-direita e metade dessa fanática. E isso é interessante, porque parece que se abriu aí, de facto, uma brecha para eles se manifestarem. 

Bolsonaro perdeu por muito pouco. Não foi uma derrota enorme. Isto só mostra que eles estão muito vivos ainda. Vão apaziguar um pouco, mas estão latentes e ainda vão dar muita dor de cabeça. E o mesmo se verifica com as mulheres que os acompanham. Carla Zambelli é um caso muito realista deste cenário. A Damares Alves [ex-ministra da mulher, da família e dos direitos humanos no governo Bolsonaro] também é de uma extrema-direita radical. A quantidade de mulheres que acompanham Bolsonaro é muito grande. E porquê? Porque há uma visão muito populista e muito conservadora. O casamento é um desses sintomas. Muitas mulheres batalham pelo casamento, pela posição de submissão, porque é algo que lhes está garantido na vida. As marchas de "Deus, Pátria e Família" encheram as ruas. 

O terreno nebuloso que existe em termos da legalização do aborto é outro sintoma desta presença radical que se evidencia ainda hoje. 

Sim, o aborto é um problema muito especial. A população é contra o aborto, aliás, são poucas as feministas que defendem o aborto. Em geral, a maioria é contra. O político brasileiro que for a favor do aborto perde as eleições. Isso nem deixa margem para conversas. Tanto que Lula da Silva abriu mão desse tema. Mas é mais do que gritante, até porque temos países vizinhos, como a Argentina, por exemplo, que conseguiram a legalização e em condições políticas muito melhores.

É comum a militância feminista ser vista separadamente da força política? 

É uma tradição nossa. Foi sempre separado, mas agora, com esta nova geração, um feminismo mais jovem, creio que não. No campo da produção, há uma poesia muito feminista que usa sinais e eventos feministas. A slam poetry, mais especificamente. É uma competição de poesia que se executa numa reunião feminista, ativista. Isto para dizer que estes temas radicalmente feministas encontram-se nas agendas culturais. 

"Tivemos uma crise de democracia muito violenta com Jair Bolsonaro. Os estudos feministas perderam as bolsas. Não tínhamos mais apoio na pesquisa."

Neste momento, estou a realizar um estudo das mulheres artistas, mulheres jovens e negras. E é curioso porque elas vão diretamente ao assunto. Tocam na sexualidade, na maternidade e em todos esses assuntos que estão em pauta nas vidas das jovens. Agora, é certo que esse erro se desfez. Essa divisão tornou-se uma coisa só. 

Mas esta realidade já não existia enquanto literatura marginal?

Sim, a poesia já era muito diferente. Elas chamavam-lhe de poesia de mensagem. É uma poesia que além de se fazer em construção contínua, tem de passar uma mensagem. Aliás, tem de ser eficaz para passar uma mensagem. Esta poesia usa o corpo, a voz, gestos e vários artifícios. É claro que esta mensagem é infalivelmente feminista e, por isso, teve um impacto muito grande na urgência da arte de periferia. É uma arte que pede urgência e que se infiltrou na arte de classe média feminista. 

Esta poesia abriu portas às literaturas marginais. De que géneros literários falamos? 

Romance, por exemplo. Os romances estão com um alto índice de “quarto de empregada”, porque as personagens são mulheres negras. É o caso das empregadas domésticas no Brasil, que têm uma situação muito diversa. Um tema que tem sido cada vez mais abordado é a condição de empregada doméstica por via das filhas. A heroína do romance é sempre filha de uma empregada doméstica que é porta-voz política daquela mãe. A ideia do quarto de empregada, dá todos esses detalhes, na literatura feminista, hoje. Mostra-se muito interseccional. Raça, classe e género. 

A Universidade das Quebradas reúne também estas premissas? De que se trata?

A Universidade das Quebradas é um fim de linha, um fim de linha lindo. Desde lá atrás, do CPC [Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes – UNE], que procuro responder e intervir no momento. Como intelectual dos anos 60, fui missionária pedagógica. Ia à favela partilhar opiniões, cultura. Foi muito bonito esse momento e gerou um sentimento forte de compromisso social nessa geração. Não dá para saber como seria o desenvolvimento futuro do anteprojeto do CPC se não tivesse existido o golpe [golpe de estado], mas, pelo menos naquela hora, geraram-se coisas incríveis. 

Nos anos 1960, o intelectual tinha uma missão revolucionária. Já nos anos 1980, a ideia missionária deixou de fazer  muito sentido, pelo menos operacionalmente. É a época das ONG, em que o intelectual se reposiciona, começa a negociar. No entanto, a ONG não ensina nada a ninguém. Fala em nome da saúde reprodutiva com as políticas de saúde do governo, em nome das crianças que trabalham, da violência contra negros e mulheres, educação. Consegue algumas coisas, mas fundamentalmente é um intermediário. Durante esses anos, a minha militância teórica e ativista foi com o feminismo. Foram pelo menos 15 anos a trabalhar com aquelas mulheres. 

Em 1993 a periferia começava a entrar na cena cultural da cidade. O pobre havia ganho voz. Coloquei o [DJ] Marlboro numa mesa com a professora da NYU [New York University], a Tricia Rose, de performance. Foi uma revelação. O [José] Júnior estava presente, ainda não existia o AfroReggae. Foi logo depois do massacre da Candelária e o de Vigário Geral, quando começaram os intelectuais a subir o morro. Zuenir [Ventura], Regina Casé, Caetano Veloso, Waly Salomão. Retomou-se o contato, que havia sido interrompido, entre o “povo” e os intelectuais. 

"O lugar de fala está a passar por terrenos conflituosos. A ideia seria fazer um novo pacto antirracista. Mas não é isso que está a acontecer."

Voltou com um novo formato, sem uma relação pedagógica ou de intermediários, mas sim uma relação de caráter solidário. Os artistas iam para a periferia e para as favelas, ouviam e ajudavam a criar soluções culturais. Comecei.a trabalhar com a periferia e a estudar funk, rap; a ir aos lugares, participar, aproximar-me, e percebi claramente a distância entre esse novo momento e aquele dos anos 1960. Em 1993, já tínhamos o Nós do Morro, que é uma potência. Chegamos lá e não se tratava de “consiencializar”, ensinar ou promover a causa revolucionária. É diferente. Passar conhecimento, toda a gente gosta, mas passar um conhecimento e uma causa muda muito o cenário.

Comecei a trabalhar isso clandestinamente nos cursos de pós-graduação da época. Pedi ao [músico José] Júnior  para me indicar cinco pessoas do AfroReggae, que tivessem potencial para ocupar o lugar dele no futuro, pedi mais cinco para o Nós do Morro e cinco a Carmen Luz. Estas pessoas eram as mais próximas de mim.

Admito que o meu curso de pós [-graduação] sempre foi um curso mentiroso, porque sempre misturei "extraoficialmente" a graduação e a pós-graduação. Sempre apostei na mistura, que acabou por se revelar muito rica. A graduação traz a novidade, a informação, e a pós- traz um conhecimento mais consolidado. Nesse baú, que já era clandestino, introduzi os artistas e intelectuais de comunidades. Dei os primeiros cursos nesse formato com a Ilana [Strozenberg]. 

Temia que os meninos fossem ficar oprimidos, mas não. Eles mostraram o seu próprio saber sem timidez. Eu tinha uma orientanda, a Numa [Ciro], a fazer uma tese sobre poesia, sobre rap, Mano Brown. “A voz das quebradas”. Ela começou a fazer entrevistas para o trabalho de campo e percebeu que uma forma de retribuir seria dando aulas de leitura na sua casa. Foi nesse momento que eu lhe disse para formalizarmos a universidade. 

Esse universo que se foi construindo nas periferias académicas faz também parte da luta contra uma estrutura sistémica. 

Estamos em fases progressivas, não há dúvida. A representatividade está na base dos alunos, dos funcionários públicos, mas nunca no poder. O poder ainda é muito pequeno. Haver professores negros é difícil. No que toca aos alunos a taxa ronda os 51%, o que significa mais negros do que brancos. 

Já nos postos de poder, eles ainda estão em disputa, ainda não se conseguem preencher. Mas a evidência leva a uma enorme representatividade, o que é  porque acaba por existir um atrito nos números e até na língua. Na forma como se descreve ou aplica. 

"As populações híbridas que são as favelas, que têm índios, negros e brancos misturados, estão ainda muito vulneráveis e muito pobres. Na minha perspectiva, esta população é a mais visceral nos estudos brasileiros."

O problema da representatividade está em conflito permanente. Há um debate sobre o que temos ou não direito a dizer, independentemente do lugar que ocupamos. O lugar de fala está a passar por terrenos conflituosos. A ideia seria fazer um novo pacto antirracista. Mas não é isso que está a acontecer. Esta nova geração é uma geração que consome. Uma geração bem diferente da anterior, porque frequentaram universidade, têm acesso ao consumo e querem um lugar. Esta nova geração não quer convencer o branco a ser antirracista. 

O livro Pensamento feminista brasileiro decolonial é um manifesto disso mesmo. 

Eu queria saber como é que isso se mostrava na Europa, porque aqui é muito importante. Estamos a recuperar algumas culturas que não tínhamos recuperado. Há um visão e resgate do afrofuturismo, que recaí na recuperação do antes da colonização; há uma procura do “antes” para fortalecer um discurso que veio no pré-processo da colonização. Mas tudo isto é apenas um começo. 

Podemos deitar fora tudo o que lemos, mas não vamos esquecer [Michel] Focault porque ele era francês. Tudo converge um pouco. Ler Focault é ótimo, mas temos que estar conscientes que quem está a ocupar aquele lugar de fala é um homem francês, gay. O problema agora é esta coisa da fala situada no saber localizado, que acaba por complicar bastante os estudos e as pesquisas, mas que nos pode levar muito mais longe. Negamos isso até agora. Por exemplo, a cultura brasileira é uma cultura francesa sem se dar conta, e isso não é possível. Estamos num momento de descoberta muito interessante. Descobertas de culturas que não foram enunciadas, descoberta de contextos. É um momento rico. 

Estas descobertas andam de mãos dadas com a evolução política, social e económica? 

A última vez que acompanhei uma coisa evolutiva foi em 2015, com a revolução das jovens. Eu não vejo mais nada de muito significativo depois disso. Não, porque isso é uma questão que não está resolvida. É uma realidade aflitiva que tem de mudar uma chave epistemológica. É ainda mais aflitivo por não ter dado a volta total. Não consigo ver-nos a andar mais para a frente do que isso. Ainda não. 

Por exemplo, se olharmos para a literatura mais forte que toca nas questões coloniais, a que escolhemos é a literatura latino-americana. A literatura latino-americana representa muitos índios como colonizados. No Brasil não há essa representação enquanto índio constituindo a nação, como constituem na América-Latina. No que toca ao racismo, já há o feminismo negro, não é a mesma coisa. Não ocupa a causa do índio. 

Estas populações híbridas que são as favelas, que têm índios, negros e brancos misturados, estão ainda muito vulneráveis e muito pobres. Na minha perspectiva, esta população é a mais visceral nos estudos brasileiros. A linguagem destas pessoas está-se a chegar ao centro. A música, a cultura, a pintura, o grafismo. Nessa altura, vamos ter um sujeito descolonial diferente.

Agora, em termos de classes sociais, olhando para a literatura, por exemplo, como referi antes, a representação da empregada doméstica é uma geração nova que não aguenta ver o que está a acontecer. É uma geração que se revolta ao ver a situação dos país. É essa geração que está a falar e que ainda tem muito para dizer. E isto são só alguns exemplos que posso enumerar agora, mas há muitos mais. 

Vimos uma hora de mudança, que inclui uma mudança de linguagem política, com outro tipo de comunicação, um outro tipo de mensagem, mas foram só estas duas coisas. Não vejo passos serem dados. Ainda precisamos desconstruir muita coisa para haver efeitos. 

Falamos de espaço, de lugar e de tempo. Há um tempo de mulheres? 

Ainda temos de esperar muito, infelizmente. Esse é um problema estrutural. O tempo para mudar uma estrutura é muito longo. Às vezes soltam-nos aqui, mas apanham-nos acolá. O tempo que se segue é um tempo de dor, muito longo, com grandes caminhos a serem percorridos. 

A extrema-direita fez com que déssemos um passo atrás nesta luta. As mulheres que falaram da experiência social da mulher, muito de perto, que a escreveram, foram primordiais para agirmos em várias frentes. Ana Cristina César, Rachel Queiróz, entre muitas outras. Aliás, é importante referir que os últimos prémios literários foram ganhos por mulheres, o que é espantoso porque nunca tivemos essa representatividade. 

No meio de tanta negatividade de uma coisa estou certa: tomámos uma palavra literária. Não sei como. Politicamente, estas mulheres, incluindo eu, tomámos a palavra. Encontramos um terreno para falar muito sobre a nossa experiência, experiência essa que nunca tinha sido tratada. Este é um novo bilhete, de voo sem regresso, que nos foi dado. 

Nesse voo também consta a identidade, Helô Teixeira? 

Gostava de poder dizer que sim, mas tem sido cada vez mais difícil. Não consigo fazer a mudança, porque a editora não o permite. O nome com que assinei até então é o nome do meu marido e eu não quero isso. Eu quero o nome da minha mãe. Queria passar para Helô Teixeira, mas é impressionante como tudo se mostra tão consolidado, ao ponto de não conseguir mudar o meu próprio nome. Não faz o menor sentido ter um nome que não é meu.