Clara Sottomayor

Clara Sottomayor: “Há um discurso reacionário contra as alegações de violência doméstica, denúncias e queixas”

As mulheres continuam a ser vítimas de violência física, sexual, psicológica e económica e os seus relatos desvalorizados. O Setenta e Quatro conversou com Clara Sottomayor, juíza-conselheira do Supremo Tribunal, sobre a importância do apoio às vítimas durante todo o processo judicial para fortalecer o combate à impunidade dos agressores.

Entrevista
8 Dezembro 2022

Assinalou-se no último 25 de novembro um número quase redondo de assassinatos de mulheres em Portugal. As ruas de Lisboa estavam longe de estar cheias, mas não deixavam de se fazer ouvir os 28 nomes que pertenciam a cada uma das mulheres assassinadas nos últimos 11 meses. Entre as mais de duas dezenas, 22 foram vítimas de femicídio. Sete delas já tinham denunciado às autoridades a violência doméstica de que eram alvo. 

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Maria Clara Sottomayor é juíza-conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. 

Estes foram números que abriram conversas em universidades, em casas e na comunicação social. No caso de Maria Clara Sottomayor, juíza-conselheira do Supremo Tribunal de Justiça, o que abriu a conversa com o Setenta e Quatro foi o momento exato em que percebeu a importância das questões de género. As violências contra as mulheres e a impunidade social e jurídica que permanecem nos dias de hoje foram “preocupações” e “factos” que se seguiram.

Se por volta dos sete anos a juíza do Supremo-Tribunal refletia sobre os papéis de género diferentes, ao entrar na idade adulta passou a discutir questões de sexualidade e da moral sexual dupla, expressão que usara ainda antes de saber o nome de Mary Wollstonecraft, feminista inglesa que recorria ao termo no século XVIII e autora do livro Uma Vindicação dos Direitos da Mulher

Desde o final dos anos 1980 até hoje, Sottomayor corta a direito nos temas que lhe são caros. “Há um discurso reacionário contra as alegações de violência doméstica, contra as participações e contra as queixas”, explicou, após pormos em cima da mesa os números que representam uma “maioria esmagadora” de casos de violência doméstica arquivados desde 2017.

Como juíza mais nova na história do Supremo Tribunal de Justiça e a primeira a entrar ao abrigo de uma lei que determina o concurso público para juristas de mérito, Maria Clara Sottomayor alerta para “uma cultura machista impregnada nas instituições” e para como o princípio fundamental de igualdade tardou a chegar às instituições judiciais. “Só temos este princípio presente há pouco menos de 50 anos. Até 1974 esteve vedado o acesso das mulheres à magistratura. 

A juíza-conselheira do Supremo Tribunal não deixa ainda de reconhecer que as elevadas taxas de violação são também reflexo da chegada tardia do princípio fundamental da igualdade: "temos taxas muito elevadas de violência contra as mulheres dentro da família. Esta violência é uma violência de género. A maioria dos agressores são do sexo masculino. Alguns homens continuam a ter a ideia de que lhes pertence o privilégio de ter poder sobre a mulher”.  

 

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Escolher nos anos oitenta um tema relacionado com a violação sexual como trabalho académico foi um "ato corajoso"? 

Naquela altura não se ouvia sequer o termo nas universidades, mas recuemos ainda mais no tempo. Aos 17 anos lia livros nas livrarias (na verdade folheava, porque não tinha muito dinheiro para comprar livros) contra o sistema patriarcal e a violência contra mulheres. Lembro-me de uma frase em particular que abria um dos livros: "a vida das mulheres é sair de casa do pai para casa do marido e dever obediência a ambos. Isto é um sistema patriarcal de família".

Talvez tenha demorado muitos anos a compreender o que isto significava, mas foi sobretudo quando conheci mulheres vítimas de violência doméstica e ouvi as histórias que contavam: histórias de submissão durante o casamento e as expectativas que os maridos tinham em relação a si e ao que lhes exigiam - a forma como controlavam as suas vidas. [Foi aí que]Percebi o modelo patriarcal em que estávamos inseridas. 

Foi quando visitei a Comissão para a Igualdade dos Direitos das Mulheres (em 1987), na altura Comissão da Condição Feminina, que encontrei a bibliografia para o trabalho. Foi aí, igualmente, que criei muitas das convicções que tenho hoje. Comecei pelos artigos de Teresa Beleza, que era um dos poucos nomes portugueses que escrevia sobre violações e crimes sexuais. Deu-me força para perceber do que se tratava a violência sexual. 

A [investigadora e professora] Teresa Beleza trouxe uma expressão com a qual eu me identifiquei muito: transida de medo. É evidente que todas nós, mesmo que tenhamos muita sorte na vida, ouvimos falar de histórias que atravessaram sempre a experiência da maior parte dos jovens. Lembro-me de ouvir falar dessas histórias quando era adolescente e de ter muito medo de andar na rua. Tudo isto fazia parte da condição de ser mulher. Não se tratava de uma condição biológica ou determinística, mas de uma condição criada e imposta pela própria sociedade.

A partir desse dia percebi que esta experiência não era só minha. Era de todas nós, mulheres. E isto acontecia porque o mundo legitimava a violência sexual. O Estado e as leis protegiam quem abusava, quem explorava e assediava sexualmente mulheres e meninas. É importante reforçar o “meninas”, porque o primeiro sinal é durante a puberdade. É nesta fase que as mulheres começam a ser vítimas de abuso ou a sentirem-se alvo de abusos verbais nas ruas, nas escolas.

O que mudou entretanto? 

As coisas não mudaram. A maneira como o mundo estava estruturado não se alterou assim tanto com a democracia e a igualdade na Constituição. Temos direitos e podemos reivindicá-los, mas a própria reivindicação tem pouquíssimo sucesso, e causa muito desgaste nas mulheres que recorrem a processos judiciais para reivindicar os seus direitos e igualdade de tratamento. Desgastam-se [durante] anos e, mesmo assim, são muito poucas as que o fazem, porque não têm recursos financeiros e não têm apoios para isso. Os atropelos aos direitos das mulheres, seja no trabalho, na família ou no espaço público ainda não são censurados. 

"Lembro-me de ouvir falar dessas histórias [de crimes sexuais contra mulheres] quando era adolescente e de ter muito medo de andar na rua. Tudo isto fazia parte da condição de ser mulher. Não se tratava de uma condição biológica ou determinística, mas de uma condição criada e imposta pela própria sociedade."

Se atendermos às situações e aos dados sobre violência, a violência doméstica é crime público e isso ajuda no número das participações, no investimento do Estado e na investigação, mas sabemos que estamos perante uma ponta do iceberg. O próprio conceito de violência doméstica não está assimilado. É muito amplo na lei e tem vindo a ser sucessivamente alargado pelo próprio legislador, mas isso não significa que esteja interiorizado pela sociedade. 

Grande parte dos casos de violência doméstica levados a julgamento acabam arquivados. Só em 2017, foram 85%.  

Só em 2017, foram 85%. Como o número de participações aumenta muito, isso gera o chamado backlash, por parte da sociedade, dos órgãos e das autoridades competentes.  

O que significa? 

À medida que os direitos humanos avançam, os movimentos mais reacionários (não só os movimentos como a própria reação das pessoas) tentam silenciar o avanço. Não querem acreditar nele. As mulheres estão a ser mais atacadas, a sua credibilidade nos depoimentos é posta cada vez mais em causa. São os típicos comentários "hoje em dia é tudo violência doméstica" ou "qualquer coisa, qualquer grito, qualquer bofetada é violência doméstica". Há um discurso reacionário contra as alegações de violência doméstica, as participações e as queixas. 

Por outro lado, o Ministério Público pode entender que não há prova suficiente e que não vale a pena avançar para uma acusação sem elementos probatórios, porque a prova aqui é, sobretudo, a declaração da vítima. Embora a jurisprudência diga que a declaração da vítima é a prova rainha. O facto de haver só como prova a declaração da vítima não é sinónimo de que não seja possível obter uma condenação em tribunal, porque o depoimento da vítima pode ser valorado se lhe for conferida credibilidade.

 Ainda assim, há sempre a chamada prova periférica. A vítima não está isolada na sociedade. Esta prova pode ser: os familiares que assistiram às consequências emocionais ou físicas da violência; os profissionais de psicologia ou de saúde que atenderam a mulher em determinados momentos e que têm conhecimento de que ela foi vítima de violência ou os vizinhos que ouvem gritos ou barulho. 

Agora, o Ministério Público pode não conseguir obter mais informações e arquiva [o processo]. Penso que essas taxas são tão altas que não é apenas por insuficiência ou fragilidade da prova. Sem me referir a casos concretos, pode haver também uma falta de preparação técnica para tratar dos processos e um preconceito em relação ao depoimento das mulheres. É muito comum. Desde sempre que são tidas como histéricas, hipersensíveis, emocionais. Quando uma mulher apresenta uma denúncia, está numa situação psicológica que não será a mesma de uma mulher que não é vítima de violência. Há sequelas físicas, mentais e psíquicas. 

É importante perceber que deveria existir um sistema imediato que fizesse a avaliação de risco e que desse apoio psicológico às mulheres, para serem acompanhadas quando fazem a denúncia. Apesar da lei 112/2009 prever medidas de assistência e apoio, o sistema que temos nem sempre funciona. 

Os profissionais de primeira linha [forças de segurança] não estão preparados? Concorda que é necessária uma formação mais eficaz?

Tem existido um grande investimento nisso, isto é, na formação das autoridades. Neste momento, estão mais preparadas para receber queixas e falar com as vítimas, mas o mesmo não acontece com a avaliação de risco. As autoridades não têm essa formação. Devíamos ter profissionais com uma formação especializada nessa área. A avaliação de risco é muito difícil. Exige muita experiência e muita formação. 

Se falha esta primeira fase de avaliação [das autoridades], a probabilidade de casos de femicídio, em que as mulheres são assassinadas pelo agressor, aumenta. Há numerosos casos que vêm a público que já tinham sido participados em denúncia-crime. Não obstante, aquelas mulheres não foram protegidas pelo sistema. 

Há a ideia, impregnada socialmente, de que estes casos [femicídios] acontecem porque as mulheres voltam para junto do agressor. De que forma se combate não só este discurso como esta realidade?

Os processos são morosos. Nas várias fases processuais, estas mulheres são perseguidas pelos agressores, ameaçadas e coagidas pela própria família a não prosseguir com o processo. Nessas situações, algumas querem desistir. Como já não é possível fazê-lo porque o crime é público, silenciam estes factos na altura do julgamento. Isso, por vezes, não produz prova nas audiências de julgamento e leva a absolvições. 

"Os atropelos aos direitos das mulheres, seja no trabalho, na família ou no espaço público ainda não são censurados."

O Estado devia fornecer a estas mulheres um sistema de apoio durante todo o processo. Elas não podem ser abandonadas. O apoio numa fase inicial não chega, porque senão elas soçobram às pressões e às ameaças de que são alvo. Depois, a possibilidade de depoimento para memória futura. É algo a ser implementado imediatamente. Desta forma, ao se recolher o depoimento previamente, evitam-se situações de não colaboração ou de silenciamento como falávamos há pouco. 

É certo que os tribunais têm vindo a evoluir ligeiramente nisto. A jurisprudência dos Tribunais da Relação têm vindo a deferir o pedido do Ministério Público para a audição para memória futura das mulheres vítimas de violência. No entanto, não é obrigatório e acaba por ser desvalorizado. A sua importância deveria ser equivalente à dos casos que envolvem crianças vítimas de crimes sexuais, de natureza obrigatória. 

O universo jurídico português tem algumas lacunas no que toca à Convenção de Istambul. O artigo 36.º tem sido cada vez mais debatido.

A Convenção de Istambul, no artigo 36.º, diz que todos os atos sexuais sem consentimento de uma das partes são crimes. Devem ser crimes de violação ou coação sexual. Não obstante, demorou muito tempo a conseguir-se uma alteração legislativa no Código Penal, que ainda não está feita corretamente. 

O nosso crime de violação era, até há pouco tempo, designado como crime de execução vinculada, que exigia uma ameaça grave ou a utilização de violência - que os tribunais entendiam como violência física. O agressor tinha de coartar a liberdade da vítima agredindo-a fisicamente para ser considerado violação.

Depois a lei veio a ser alterada e, agora, refere também a vontade cognoscível da vítima. Se o agressor souber que ela não consentiu, então já estaremos perante um crime de violação ou coação sexual. No entanto, nesta mesma lei, não se exige apenas falta de vontade, mas também constrangimento. Isto pode, depois, na tarefa interpretativa do julgador, ser equiparado a algum grau de violência física.

Ora, sabemos que a maior parte das violações é praticada por homens conhecidos das vítimas. Por ser um contexto de intimidade, a vítima não reage com força física. Noutros casos, paralisa com medo e sente-se incapaz de reagir. A questão é que todos nós sabemos que para violar ou coagir sexualmente uma mulher não é necessária a força física, basta a falta de consentimento.

A ideia de constranger alguém ainda implica exercer uma certa força, uma certa coação. Ora, o ‘não’ tem de ser suficiente para fundamentar uma condenação por crime sexual. Até o mero silêncio, a expressão de repulsa, mesmo que a palavra “não” não seja dita. A falta de colaboração da vítima no ato sexual já é um indício de que há crime. Portanto, o ‘não’ pode não ser verbalizado e ainda assim temos crime. 

Quero reforçar que temos de levar este problema a sério, porque as mulheres são violadas em todos os contextos. Esta ideia de constranger também deveria ser retirada do Código Penal.

Num dos artigos que escreveu, intitulado “Vulnerabilidade e discriminação”, aborda o discurso sexista e a forma como não foi abrangido por uma condenação judicial.

O discurso pode ser sexista. No caso do discurso político, temos casos como o de Trump e de Bolsonaro, a fazer chicana com as mulheres. Temos também um caso na União Europeia com Úrsula von der Leyen, que ficou sentada no sofá enquanto os homens discutiam as questões políticas. Há uma discriminação muito subtil contra as mulheres que ocupam cargos elevados. 

Este discurso não é reconhecido como forma de discriminação e de incitamento ao ódio, nem sequer como forma de injúria ou importunação sexual. Não é uma forma de violência contra as mulheres?

O discurso sexista pode ser verbal ou escrito. Pode ocorrer online ou offline na vida quotidiana. É muito comum, havendo conflitos familiares ou de outra ordem, como laborais, as mulheres serem referidas e etiquetadas com comentários sexistas.

Estes modelos parecem apresentar muitas assimetrias, entre elas a masculinidade. Uma das causas para a violência de género, assinalada pelo Observatório Nacional de Violência de Género, é a diferença de poder entre homens e mulheres. 

Não há propriamente um padrão de agressor e um padrão de vítima. Qualquer pessoa pode ser agressor e qualquer pessoa pode ser vítima. Existem agressores em todas as classes sociais e em todas as profissões. Penso que não há qualquer relação entre estatuto económico-social e agressor. Às vezes pode haver cruzamento com fatores de saúde mental ou de alcoolismo, mas não é essa a causa da violência doméstica.

É certo que Portugal tem uma taxa de alcoolismo elevadíssima e há muitos casos em que um homem alcoólico agride a mulher. Aliás, são os primeiros casos documentados de violência doméstica que apareceram nas comunidades, mas, como disse, o alcoolismo não é a causa da violência doméstica. 

As causas são sobretudo culturais. Nós, humanidade, fomos todos socializados, ao longo de milénios, em sistemas em que os homens tinham direito sobre as mulheres e sobre os filhos. Era um direito de posse. As mulheres não tinham liberdade, não tinham individualidade, nem autodeterminação. Portanto, era o homem que tomava as decisões. Podemos falar, por exemplo, do Direito Romano. O pater familias tinha, inclusive, o direito de vida ou de morte sobre as mulheres e os filhos, o direito de os vender e os colocar em casas de correção sem autorização da mãe que, na prática, os criava e cuidava. 

As mulheres também eram consideradas filhas menores do marido e, portanto, havia vários tipos de contratos de casamento, onde uma das modalidades implicava dar a mulher como garantia de dívidas a terceiros. Isso foi evoluindo nas sociedades com o Cristianismo, com as alterações económicas e sociais. Essa dureza legal em relação à mulher desapareceu, mas as sociedades continuam a ser patriarcais, mesmo com os códigos modernos. 

Antes do 25 de Abril, eram códigos em que o marido tomava as decisões na família. O marido podia rescindir o contrato de trabalho que a mulher celebrava sem autorização dela ou, se ela fosse detentora de património, era ele que o administrava. Isso notava-se particularmente nas classes sociais altas. A mulher não tinha autonomia financeira, nem liberdade para ser pessoa. Podia abrir a correspondência da mulher e não tinha qualquer direito à privacidade. Aliás, o marido não só tinha direito ao corpo da mulher, como a violação dentro do casamento não era crime. 

Isto foi assim durante milénios até ao 25 de Abril! Nós só temos o princípio de Igualdade há cerca de 50 anos, isto é, desde a Constituição de 1976. Para alterar comportamentos, mentalidades e, sobretudo, as crenças das pessoas e os seus sentimentos, é muito pouco tempo na história da humanidade. Muitos homens continuam a ter a ideia de que lhes pertence o privilégio de ter poder sobre a mulher e é isto a causa da violência doméstica - a negação ªas mulheres de um estatuto de liberdade igual a si mesmo e a crença de que têm poder sobre elas.

"O Estado devia fornecer a estas mulheres um sistema de apoio durante todo o processo. Elas não podem ser abandonadas."

Tocou num ponto importante: a privação do trabalho e da independência financeira. Os conceitos de violência económica e política, além da violência física, verbal e psicológica, são cada vez mais debatidos. É possível que o Direito também olhe para estas violências como crime

A violência física é sempre mais valorizada do que as outras modalidades de violência. A violência económica já está prevista no artigo 152 do Código Penal, que foi alterado recentemente pela Lei 57/2021. Foi incluído, precisamente, porque não era levado a sério o facto de os homens privarem as mulheres do seu cartão de multibanco, ficarem com o abono de família dos filhos, bloquearem as contas. Colocam-nas numa situação de dependência financeira mesmo quando elas trabalham. O que se acrescentou ao Código Penal foi que privar o outro cônjuge, ou companheiro ou companheira, dos seus bens patrimoniais é crime de violência doméstica.

Em relação à violência política e institucional contra mulheres que estão em lugares de poder, nós temos o assédio moral no trabalho para situações de perseguição no local de trabalho e de discriminação. Mas há poucas mulheres a invocar essas normas do código de trabalho. O assédio moral não está tipificado como crime.

Pode-se recorrer aos crimes de ameaça ou de outras ofensas verbais e injúrias, mas o crime do assédio moral não está ainda tipificado na lei, apenas está no Código do Trabalho. E, infelizmente, as mulheres não se queixam. É muito comum haver violência institucional contra as mulheres em qualquer local de trabalho, maioritariamente, dirigido às mulheres que estão na política ou noutros cargos elevados. É uma “violência muito refinada”, que é também muito difícil de demonstrar, mas que no plano psicológico deteriora muito as funcionalidades no trabalho das mulheres e discrimina com muita intensidade. É curioso até porque este foi um tópico que ainda não foi estudado cá [em Portugal]. 

Há uma cultura machista nas instituições. Está impregnado. As pessoas não têm sequer consciência disso e não identificam, não denunciam e quem pratica talvez não tenha consciência. É preciso trabalhar esta questão e as mulheres que estão em cargos elevados podem trazer uma diferença no seu trabalho, mas são impedidas de o fazer porque são vítimas de assédio, de perseguição no local de trabalho, ou de outras formas de discriminação mais subtis, e ficam impedidas de conseguir mudanças. 

Há cerca de uma semana foi anunciado o apoio de 166 euros a vítimas de violência doméstica. Falamos de valores toleráveis atendendo aos dias de hoje? 

A forma como os governos adjudicam os recursos económicos não é neutra. Essa adjudicação de 166 euros é, de facto, muito baixa para as necessidades efetivas de uma mulher e dos seus filhos. A maior parte das mulheres vítimas de violência têm filhos, de quem se fazem acompanhar quando saem de casa e, portanto, esse apoio é manifestamente insuficiente. 

A nossa sociedade, em termos legais, não é patriarcal, é igualitária. Mas, a nível social, continuamos a viver, na prática, num patriarcado implícito. E, portanto, os interesses das mulheres estão sempre abaixo dos interesses dos homens. Quando se faz a adjudicação de recursos, as mulheres e as crianças vêm sempre no fim. Sabemos que o Estado não terá muitos recursos, mas também sabemos que quando se trata de mulheres e crianças estas ficam sempre com a "migalha" mais pequena.

Já no campo do Direito de Família e das Crianças, a regulação do poder parental tem sido cada vez mais discutida, mesmo no que toca a casos de violência doméstica.

O número de separações e divórcios têm aumentado muito e, portanto, cada vez mais temos problemas com os direitos e os deveres em relação aos filhos. A maior parte dos casais chega a um acordo que apresenta nas conservatórias do Registo Civil. Aí, o papel fiscalizador do Estado é muito reduzido, porque respeita a autonomia das famílias. 

Os casos que levantam problemas são uma minoria, mas não deixam de levantar muitas questões judiciais em processos que são morosos, em que as crianças são sujeitas a experiências dolorosas e prolongadas. Quando os pais não se entendem quanto às responsabilidades parentais, tenho defendido que, para esses processos serem decididos de forma célere, deve ser aplicado o chamado critério de pessoa de referência da criança. Essa pessoa seria o progenitor que durante a constância do casamento ou da união de facto cuidou da criança, desempenhou, pelo menos em termos predominantes, as tarefas dos cuidados básicos: alimentação, vestuário, assistência na saúde e educação quotidiana. Esse progenitor deve ficar com a guarda da criança para evitar conflitos. Esta solução é a que promove mais a continuidade da vida das crianças na normalidade das suas rotinas, sobretudo quando são mais pequenas. 


"Temos de levar este problema a sério [o do não consentimento], porque as mulheres são violadas em todos os contextos."

Nós sabemos que não há igualdade de tarefas [domésticas] entre homem e mulher durante a constância do casamento. Todos os estudos indicam isso e, portanto, nesta fase da nossa sociedade é normalmente a mãe que está nessas condições de promover a continuidade do quotidiano das crianças. Num dia em que a sociedade mude e se torne igualitária, em que os homens participem de igual forma ou até mais, pois serão eles, nos casos de conflito e se forem as pessoas de referência, a assumir a guarda dos filhos. Este critério é completamente neutro em relação ao género.

E num seio familiar que envolve uma situação de violência doméstica? Vemos casos em que a Justiça “fugiu à regra”. 

Já temos regras específicas que protegem as crianças nessas situações, mas há casos em que as crianças são obrigadas a ver o pai, mesmo acusado de violência doméstica ou até condenado. Nem sempre a lei é cumprida e, por outro lado, essas leis são muito recentes. Foi a lei n.º 57/2021 que veio alargar o conceito de vítima às crianças que estão expostas à violência doméstica. 

Neste momento, quando uma mulher participa ou denuncia o marido ou o companheiro por violência doméstica, os filhos também vão ter estatuto de vítima e direitos de proteção diante do pai denunciado por violência doméstica. Quem recebe a queixa tem que comunicar ao Ministério Público, junto do Tribunal de Família, para intentar, no prazo de 48 horas, uma ação de regulação das responsabilidades parentais para garantir imediatamente à vítima, por exemplo, o pagamento da pensão de alimentos e a proteção das crianças. As visitas podem ser suspensas imediatamente para dar tranquilidade à família. Se a criança quiser ver o pai ou se o tribunal entender que é relevante haver contactos com o pai, uma instituição mediadora pode supervisionar as visitas. 

Ainda numa realidade de violência, as estatísticas europeias anunciadas esta semana alertam que uma em cada cinco crianças são vítimas de violência parental. 

Penso que sim, mas não tenho agora acesso a esses dados estatísticos. Depois da pandemia discutiu-se que tinha havido um aumento do número de queixas de violência contra crianças dentro da família.

Voltando à interpretação da lei e resgatando o caso do juiz-desembargador Neto de Moura que invocou, num polémico acórdão sobre violência doméstica, o apedrejamento e a lapidação de mulheres. Acredita que casos destes são também reflexo da errada interpretação da lei? 

Não comentarei casos. Vou falar em geral. A formação obrigatória de magistrados em violência de género, violência doméstica e direitos humanos já está prevista na lei e é fornecida pelo Centro de Estudos Judiciários em seminários e cursos. Penso não ser suficiente. A formação em violência doméstica não pode ser apenas teórica através do fornecimento  de conhecimentos.É preciso ter experiência em ouvir vítimas e estes cursos deviam ter visitas também, por exemplo, a casas-abrigo ou entrevistas com vítimas fora do contexto judicial, da prova, para que os futuros e os atuais juízes percebessem os problemas das mulheres vítimas de violência. Que percebessem que tipo de vida têm, a dor que está associada aos depoimentos, o sofrimento e as histórias que nem sempre são narradas em tribunal. Isso seria muito importante para ganhar empatia e compreender as vítimas.


"Muitos homens continuam a ter a ideia de que lhes pertence o privilégio de ter poder sobre a mulher e é isto a causa da violência doméstica."

Falta sensibilidade na magistratura para a questão do assédio, abuso e/ou violência sexual? 

O alargamento do tipo legal de crimes de importunação sexual às propostas sexuais provocou uma evolução de mentalidades na sociedade e na magistratura. Houve um debate muito intenso sobre o assédio. Ninguém aceitava o conceito, achava-se normal, mas depois percebeu-se que, de facto, era muito grave. Atinge as mulheres na infância e na adolescência. O assédio utiliza linguagem intimidante e grosseira. E era comum. Intimidava as mulheres, impede a sua liberdade e o seu livre desenvolvimento. Mesmo assim há muito poucas queixas, ainda. 

Por outro lado, tivemos o movimento #MeToo, mas também tivemos uma retaliação a esse movimento com a desvalorização das vítimas. Houve um aprofundamento da consciência, mas depois tivemos esses revés e voltamos novamente atrás. A defesa dos Direitos Humanos tem avanços e recuos. Por isso é que nunca podemos parar de lutar. É preciso sensibilizar e informar. Mas agora estamos a viver uma fase de retaliação contra as mulheres que denunciam violência e contra aquelas que denunciaram no passado. É preciso combater a ideia pré-concebida de que as mulheres estão a exagerar, que não há provas do que dizem, que poderão estar a mentir. A realidade é que a violência é um elemento do nosso quotidiano. É muito rara a mulher que terá escapado a uma situação de violência no seu quotidiano.

É possível julgar de forma feminista? 

Claro que é possível. Quando falamos em feminismo, falamos em igualdade de género. Para compreendermos os problemas sociais e os casos concretos que temos a julgamento, temos que perceber que a noção de pessoa não é neutra em relação ao género. Para perceber os testemunhos, para avaliar os factos, é necessário entender e conhecer a realidade do caso que se relata. 

O pensamento feminista defende a justiça do caso concreto à luz da igualdade de género. O sujeito de direitos não é uma entidade abstrata, neutra e universal. Tem classe social, tem género, tem orientação sexual, tem nacionalidade, tem religião. Tudo isso deve ser ponderado nas decisões.