Gregório Duvivier

O humorista brasileiro afirmou que "Marx nunca disse que a esquerda deveria fazer voto de pobreza, esse discurso está presente nas palavras de Jesus" | Foto de Raquel Pellicano .

Gregório Duvivier: “Amar é achar graça”

Conversámos com Gregório Duvivier durante sua passagem em Portugal para o espetáculo “Um português e um brasileiro entram num bar”, em parceria com Ricardo Araújo Pereira. Entre reflexões sobre o poder e a situação do seu país, falou-nos das nuances do humor, dos limites da boa educação, do perigo do moralismo e da narrativa da esquerda.

Entrevista
10 Dezembro 2021

Gregório Duvivier é um artista versátil: ator, comediante, escritor, poeta, guionista. Ainda assim, é irresistível dar prioridade ao  humor e à política ao entrevistá-lo. “Nunca se falou tanto sobre isso. Os humoristas estão no centro da chamada guerra cultural. O humor vive da capacidade de falar no interdito, entra em recintos trancados à chave”, diz.

Gregório sabe do que está falando. Em 2019, a sede da sua produtora Porta dos Fundos foi alvo de um ataque com cocktails  molotovs logo após a estreia do seu Especial de Natal no Netflix, “A Primeira Tentação de Jesus”, uma sátira em que Jesus vive um romance gay. O grupo que reivindicou o ataque divulgou um vídeo em que homens encapuzados aparecem com  bandeiras integralistas e monárquicas (até hoje, só um dos responsáveis foi identificado e preso). “A questão dos limites do humor é irmã da questão: devemos respeitar o sagrado dos outros? É parecida com a questão dos véus na França. Por isso que humoristas viraram os alvos preferenciais de atentados terroristas”.

No entanto, por mais que seja uma figura pública fortemente vinculada com a esquerda, Gregório é mais alvo de bolsonaristas comuns, sem vínculo com o governo. “Bolsonaro, assim como toda essa nova direita que se beneficia do ultraje, sabe que não vale a pena. Ele persegue jornalistas, não humoristas”.  

Desde 2017 que apresenta o Greg News, na HBO, inspirado no “Last Week Tonight with John Oliver”. O registo  é jornalístico, com conteúdo repleto de críticas ferozes ao atual presidente e o seu governo. No entanto, o programa não está entre os alvos preferenciais de Bolsonaro. “Ele considera que o Greg News é humor, não jornalismo”.

"No Brasil, o pobre odeia o miserável, a classe média odeia o pobre, o rico odeia a classe média, o milionário odeia o rico, acha cafonérrimo. E por aí vai, é sempre o ódio pela classe imediatamente abaixo."

Até agora, o Greg News nunca perdeu nenhum processo iniciado por aqueles que se identificam com o bolsonarismo. “A HBO tem ótimos advogados, não fazem censura prévia e assumem risco. Mas, depois do Bolsonaro, a maioria das emissoras ficaram mais conservadoras por medo de um processo”, diz.

Talvez parte do seu duradouro  apelo com o público esteja na sua crença de que o maior alicerce do humor é o amor. “Você ri porque gosta e gosta porque ri. Ninguém vai achar graça de uma piada lançada a seco. É preciso criar um vínculo antes”. E, embora seja um ávido defensor do direito à ofensa na teoria, sua prática é outra: “A delicadeza para mim é um valor importante”.   

Hoje, fala-se muito em desconstrução, em nos examinarmos para sermos menos racistas, machistas, homofóbicos... Porém, não se fala tanto disso em relação a classe. 

Não vamos deixar de ser classistas tão cedo. Todo o programa de humor brasileiro é baseado em pessoas falando mal de pobre. Nas novelas, é sempre o rico que fica pobre ou o pobre que fica rico. Se você substituísse o pobre por preto ou gay, seria inaceitável. Mas o pobre não tem nenhuma organização para reivindicar seus direitos nessa esfera. As pessoas têm uma ideia introjetada que a pobreza é um estado, é uma consequência de alguém que não trabalhou, e não uma contingência. Há uma máxima no humor: você pode rir do que as pessoas fazem, não do que elas são. Isso faz um certo sentido. Mas as pessoas acham que a pobreza é algo que a pessoa faz, não o que a pessoa é. Quando você pensa que a pobreza é algo que as pessoas são, perde a graça.

No Brasil, o pobre odeia o miserável, a classe média odeia o pobre, o rico odeia a classe média, o milionário odeia o rico, acha cafonérrimo. E por aí vai, é sempre o ódio pela classe imediatamente abaixo. O humor reitera isso. Não estamos acostumados a rir da elite. Herdeiro é uma raça patética, a gente ri do pobre enquanto o que mais tem é herdeiro patético. Tem muito material bom e inexplorado para rir de rico – Succession é um bom exemplo. Mas as pessoas acham que pobre vai gostar de rir de pobre – inclusive já ouvi muito isso.

O humor tem alguma função, ou o seu único objetivo é fazer rir?

Esse é o grande paradoxo do humorista. Obviamente, há uma função, afinal, existe há tanto tempo, mas a partir do momento que ele acredita que tem uma função, perde a graça. É necessário para o próprio humorista que seu discurso seja na linha: o humor não tem função. A espontaneidade é um valor para o humor. É o contrário das outras artes. Não há nada pior que um pintor ou um romancista ingénuo. Mas, no humor, a ingenuidade é um valor. É uma ingenuidade falsa, mas é preciso parecer ingénuo. 

Existem assuntos proibidos?

Há piadas muito boas para fazer sobre assuntos delicados que não são necessariamente problemáticas, mas é bem mais difícil de achar o tom certo. Você quer fazer uma piada com a comunidade trans, boa sorte: você vai precisar dar um jeito de fazer as pessoas rirem sobre um assunto quando há pessoas morrendo por causa de transfobia. O Porta dos Fundos fez uma sketch  sobre mulheres trans, algo que me arrependo imensamente. Elas disseram: foi isso que eu ouvi de um cara enquanto ele estava me batendo. É difícil não se dobrar a esse argumento, é uma coisa muito forte.

Eu odeio a palavra ofensa, eu não acredito em ofensa, acho que as pessoas têm direito a ofensa, mas não tem direito à calúnia, à difamação, ao discurso de ódio. A ofensa é uma categoria individual que remete a algo que é sagrado só para você, e ninguém tem obrigação de respeitar o seu sagrado. Mas, no caso da demanda desses grupos, creio que se aproxima mais à incitação ao ódio, porque é a repetição de agressão que elas recebem.

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Gregório Duvivier
Gregório Duvivier disse que "Bolsonaro persegue jornalistas, mas não humoristas. Aliás, toda essa nova geração da direita ultrajante tem essa mesma linha" | Foto de Raquel Pellicano

Todo o mundo te deve perguntar sobre os limites do humor…

A expressão limite não é adequada, é mais fluido que isso. E tem a ver com educação. O Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, diz que é possível fazer piada com tudo, mas, repare, ele não faz. Ele entrevistou a Joacine [Katar Moreira] e não fez nenhuma citação à gagueira dela, mesmo a gagueira sendo um clássico de um certo tipo de humor. As críticas e piadas presentes ali tem a ver com outros assuntos. Isso tem a ver com respeito e educação. Tem um certo tipo de humor que é muito indelicado, e eu vejo a delicadeza como um valor. Mas isso não se aplica para quem está no poder. Há uma frase que eu gosto: humor é passar a mão na bunda do guarda. É preciso ser indelicado com o guarda, ele está armado, você não.

Você se preocupa se alguma piada vai ser mal interpretada?

Normalmente, eu penso nessa possibilidade, mas não levo em conta. Quando estou tranquilo, faço a piada mesmo sabendo que posso ser mal interpretado. No Greg News, fizemos um programa sobre os possíveis candidatos à presidência. Na época, o Eduardo Leite tinha acabado de se assumir como gay, e não fizemos nenhuma piada sobre isso – afinal é o único ponto não problemático da vida dele.

Até que ponto é importante ter lugar de fala?

Não acho que seja impossível um homem branco falar de feminismo, por exemplo. Mas ajuda muito que a sala de roteiro seja diversa. No início do Porta dos Fundos, éramos só homens, e quando passamos a ter roteiristas mulheres, e depois negros, passamos a rir de outras coisas, fazer outras piadas, e perceber as inadequações que antes não percebíamos. Antes, não achava que isso era tão necessário, mas a experiência prática mostrou que sim, o olhar fica menos viciado, consequentemente, o trabalho ganha qualidade. 

"As pessoas acham que a pobreza é algo que a pessoa faz, não o que a pessoa é. Quando você pensa que a pobreza é algo que as pessoas são, perde a graça."

A mensagem política faz com que a piada perca a graça? Em 2018, o stand-up Nanette, da Hannah Gadsby, foi um sucesso, mas não me fez rir particularmente. 

O Nanette é um exemplo sintomático. A reflexão da Hannah Gadsby é válida e interessante, mas o ideal é se ela fizesse isso com humor. É mais um ensaio que um stand up. Eu odeio a postura de uma pessoa que fala: “isso não tem graça”. Essa pessoa perde as narrativas porque perde o carisma. E a esquerda caiu nessa, de dizer o que tem graça, o que não tem. É uma cilada. O David Graeber tem uma leitura de como a esquerda americana é puritana porque os abolicionistas americanos eram calvinistas. O capitalismo nos Estados Unidos é tão hegemónico, é tão sinónimo da realidade, que a única coisa que a esquerda consegue pautar é roupa, em discussões de apropriação cultural, e linguagem, através da proibição de certos termos. Não se fala em salário mínimo, férias remuneradas, sistema de saúde, licença maternidade. A esquerda americana está ligada ao moralismo, e acho o moralismo um câncer na esquerda.

Não gosto do termo identitário, não acho que é um termo certo, eu uso o termo moralismo. Quando um negro fala de racismo, ele está falando de sobrevivência, de remuneração, então me soa leviano quando chamam de identitário. Por isso prefiro usar o termo moralismo quando estamos falando de questões como a censura, até porque é ineficiente, é improdutivo, é uma batalha perdida. O politicamente incorreto é mais atraente. Os presidentes brasileiros mais populares são politicamente incorretos, o Lula e o Bolsonaro. Os dois falam coisas que não deviam, essa é a graça, o brasileiro adora.

Você ficou associado à expressão “esquerda caviar”. Por um lado, esse tipo de acusação é de má-fé, e não leva em conta a complexidade da alma humana, por outro, existe uma certa resignação nas pessoas que se dizem de esquerda e usufruem de luxos incompatíveis com a ideologia.

Marx nunca disse que a esquerda deveria fazer voto de pobreza. Esse discurso está presente nas palavras de Jesus, não de Marx. “É mais difícil um camelo passar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus”. No entanto, não vejo ninguém falando de cristão-caviar. Essa narrativa que a esquerda é a socialização da pobreza está ganha, e a gente nunca conseguiu explicar que não é bem assim. A esquerda tem uma falha de comunicação muito grande.

O principal conflito em relação a essa contradição está na publicidade, que é uma venda de afeto. As pessoas gostam de você, e aí você vende esse afeto para uma marca. A maioria das marcas que precisam de publicidade não merece publicidade, são marcas que exploram as pessoas. Eu faria propaganda para os pequenos comerciantes de bairro que tem preços justos, mas eles não precisam disso. Mesmo no Porta dos Fundos somos cuidadosos com a escolha das marcas, por exemplo, não anunciamos marcas bolsonaristas.

É pior ainda quando o artista deixa de se posicionar por questões publicitárias. Tem gente que não fala sobre maconha para não perder contratos. Eles dizem que não entendem de política, mas eles também não entendem de champô, de pasta de dentes, de supermercado. Na verdade, o que eles estão dizendo é que não ganham dinheiro para falar sobre política. A opinião passa a ter um preço.

É, portanto, uma espécie de prostituição?

Acho que é pior que prostituição, porque normalmente as pessoas que trocam sexo por dinheiro o fazem por necessidade. Já na publicidade você está vendendo o respeito que o público nutre por você.

Você acha que seu trabalho consegue furar a bolha da esquerda?

Eu tenho certeza de que não, mas eu quero fornecer argumentos para que as pessoas possam furar suas bolhas. E também tenho a esperança de acalentar o coração do nosso campo, que está muito sozinho. Se eu, que sou cercado de pessoas progressistas, me sinto sozinho, imagina o garoto que é gay em Maringá...  É muito louco morar em um país que não gosta de você.

O que mudou na sua vida e no seu trabalho depois da eleição do Bolsonaro?

Na prática, a gente passou a receber muitos processos de bolsonaristas comuns. Bolsonaro sabe que não vale a pena perseguir humorista porque a zueira é uma ferramenta muito central na sua estratégia. A indignação só serve para divulgar conteúdo. Bolsonaro sabe disso porque ele mesmo se beneficiou dessa lógica. Foi causando ultraje que ele alcançou fama e seguidores.

Bolsonaro persegue jornalistas, mas não humoristas. Aliás, toda essa nova geração da direita ultrajante tem essa mesma linha. Trump, o grande mentor desse nicho, Boris Johnson e [Éric] Zemmour não perseguem humoristas. Hoje, quem critica humorista é a esquerda. O Charlie Hebdo, por exemplo, é criticado principalmente pela esquerda, não pela direita. O ataque ao Porta dos Fundos foi repudiado pela população brasileira, majoritariamente cristã, mesmo com campanha intensa de pastores como Silas Malafaia e Marco Feliciano.

Agora, se Bolsonaro for reeleito, as coisas vão piorar, porque ele vai ter maioria no STF [Supremo Tribunal Federal]. 


"A leitura clássica é que o humor é uma ferramenta de sobrevivência: quando a realidade está muito pesada, você sai do seu corpo e ri de si mesmo."

É uma boa ideia a esquerda adotar pautas que são populares na direita?

Acho péssimo. É lógico que é um impasse. Por exemplo, os brasileiros são contra a legalização das drogas. Mas a saída não é defender a criminalização, e sim se comunicar melhor, mudar a estratégia. É preciso falar: vamos acabar com o tráfico. Ou contar a história de milhares de pessoas que estão presas há anos por porte de maconha, a maioria negras. Os preceitos da esquerda são muito populares quando são desvinculados de certos chavões que já estão com estigma negativo. A população é a favor de todas as medidas que caracterizam um estado de bem-estar social, é só não usar o termo “direitos humanos”, por exemplo, que é visto de forma negativa no Brasil.

Você ficou surpreso com a eleição do Bolsonaro?

Não, vejo o potencial humorístico dele faz muito tempo. As pessoas gostam dele porque riem dele. É um humor que funciona com quem ele quer que funcione mesmo que a gente não ache a menor graça. Bolsonaro não tinha tempo de televisão, mas isso não significa nada hoje em dia. Não sabia que ele iria ganhar porque isso dependeu da prisão do Lula. O André Ventura, assim como Bolsonaro, domina muito bem as ferramentas para chamar atenção. Chama um de gay, outra de gorda, e com isso está presente na conversa. Mas Portugal tem uma relação com a ditadura diferente. No Brasil, tem pessoas que desejam a volta da ditadura, mas aqui é um consenso a importância de 1974.

As pessoas que trabalham com humor têm uma percepção da vida mais apurada que aquelas que trabalham com o drama?

Os melhores atores começaram como comediantes, como Fernanda Montenegro, Pedro Cardoso, Selton Mello, Fernanda Torres. E nos Estados Unidos, Steve Carell. O ator de Método (de Lee Strasberg) faz o dever de casa, trabalha sozinho, de forma individual. O comediante não, ele está sempre presente, ele se relaciona com os outros atores, com os objetos de cena, com a plateia.

A leitura clássica é que o humor é uma ferramenta de sobrevivência: quando a realidade está muito pesada, você sai do seu corpo e ri de si mesmo. Mas teóricos do humor como Bergson e Freud falam muito pouco do humor como ferramenta de vínculo. Você ri muito mais das pessoas que você gosta. Você ri porque gosta e gosta porque ri.

Amar é achar graça. Minhas maiores crises de riso foram com a minha filha. Nenhum comediante jamais vai poder competir com isso.


"O superego do humorista é imenso, são péssimos convidados para uma festa, ficam num canto, julgando as pessoas, nunca vão para a pista de dança. A dança existe para calar o cérebro, mas o humorista não consegue calar o cérebro."

O The Office com o Steve Carell é muito mais empático que a versão inglesa, com o Ricky Gervais…

O The Office do Ricky Gervais me incomoda. O Michael Scott do Steve Carell é a pior pessoa do mundo, mas ele tem uma vulnerabilidade que faz com que você torça por ele mesmo assim. Há um episódio de The Office em que as crianças vão ao escritório. Michael Scott mostra um vídeo em que ele, pequeno, diz que quer ter trezentos filhos, porque assim ele vai obrigar os filhos a serem seus amigos. Em seguida, ele revela que nunca teve filhos, e você vê o olhar das crianças percebendo que ele é um fracassado. Depois disso, o personagem pode chutar uma velha, ele ganhou o amor e a adesão das pessoas para sempre.

É preciso criar uma adesão afetiva, um laço. A piada lançada a seco não vai ser compreendida porque não se faz nenhuma piada antes de ser gostado. O humor da sitcom, por exemplo, é proporcional à intimidade com os personagens. Se você mostra um episódio de Friends para uma pessoa que nunca assistiu à série, ela não vai achar tanta graça, já a pessoa que costuma assistir vai rir bem mais, porque vai pensar: “isso é muito Joey!”

É a mesma coisa com a vida. Se eu te perguntar qual foi a vez que você mais riu, aposto que terá sido com amigos, pessoas próximas, não com um personagem de ficção. Steve Carell sabe disso, Charlie Chaplin também.

O palhaço triste é um arquétipo clássico. O humor e a comédia têm uma relação íntima com a melancolia?

O humorista trabalha para ver os problemas do mundo, enxergar as coisas em código fonte, fazer as perguntas que as pessoas não estão fazendo. É a mentalidade de uma criança, de um estrangeiro, de um bêbado, de uma pessoa sem olhar viciado. O superego do humorista é imenso, são péssimos convidados para uma festa, ficam num canto, julgando as pessoas, nunca vão para a pista de dança. A dança existe para calar o cérebro, mas o humorista não consegue calar o cérebro. Eu não consigo dançar como se ninguém estivesse olhando, estou sempre consciente. É uma profissão que tem a ver com a hiperconsciência, é o contrário da espontaneidade. É preciso ser espontâneo para ser engraçado, mas é uma espontaneidade falseada.  Eu não tenho muitos amigos humoristas porque é mais gostoso lidar com quem consegue calar o cérebro.