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Pedro Sarmento Costa/LUSA

Francisco Venes: A mina de lítio em Covas do Barroso vai “escancarar as portas” para a mineração em todo o país

O ativista defende que a dependência do lítio existe por causa da recusa em mudar os paradigmas de mobilidade. O governo português quis tornar Covas do Barroso numa "zona a sacrificar", mas a população da pequena aldeia resiste há sete anos contra a "postura colonial" de uma mineradora britânica e a "conivência" da Agência Portuguesa do Ambiente.

Entrevista
31 Agosto 2023

A população de Covas do Barroso duplicou na segunda semana de agosto. A pequena aldeia transmontana, encavada entre duas serras e ameaçada pela febre do lítio, recebeu entre os dias 10 e 15 mais de duas centenas de visitantes para a terceira acampada “em defesa do Barroso”. 

Nos terrenos da antiga Quinta do Cruzeiro, pessoas de todo o país — e ativistas de todo o mundo, do México à Índia — puderam conversar e trocar ideias com a comunidade, gente da terra que está à frente da resistência contra uma planeada mina de lítio.

Concessionada à empresa britânica Savannah Resources, há sete anos que o projeto desta mina assombra Covas e põe em risco a sua sobrevivência. Os impactos ambientais e sociais estão estudados. Registo vivo de um Património Agrícola Mundial reconhecido pela ONU, a aldeia, as suas gentes e o seu singular e milenar modo de vida — em intrincada relação com os animais, a terra, as florestas e a água — correm o risco de desaparecer.

Alegadamente carregada de lítio, a região do Barroso foi marcada como “zona a sacrificar” pela União Europeia, em nome da descarbonização e da independência regional no que diz respeito a “matérias primas críticas”. Francisco Venes, outrora engenheiro biomédico, agora ativista e investigador de ecologias políticas, contesta esta postura puramente geopolítica dizendo ser uma escolha tomada para não “alterar o paradigma de mobilidade centrado no carro particular” e salvaguardar a indústria automóvel europeia.

Venes chegou a Covas do Barroso em abril de 2019, “numa fase inicial dos processos de resistência”, já a Savannah fazia prospecções há dois anos. Chegou com intenções académicas. Juntou-se à associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso (UCDB), criada em 2018, e viveu lá um ano durante a pandemia. Foi e continua a ser um dos organizadores do acampamento, que aconteceu este mês pelo terceiro ano consecutivo.

Antes disso, viveu seis anos no Equador, onde se ligou às resistências populares contra projetos de mineração, fazendo parte de um coletivo urbano. Foi aí (mais precisamente, na pequena aldeia de Molleturo) que começou por querer entender as motivações das mulheres que assumiam papéis fundamentais nessas resistências. Está agora a terminar um projeto de doutoramento que ambiciona traçar semelhanças e distinções entre as mulheres, de Molleturo e do Barroso, que se opõem às minas.
 

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Em entrevista ao Setenta e Quatro, denuncia um processo pouco transparente que culminou num parecer “favorável condicionado” dado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) à Savannah Resources para estabelecer a mina de lítio no Barroso. O ativista considera que há uma grande vontade política para que este projeto vá em frente, suportado por um estudo de impacto ambiental debilitado e comprometido pelas relações clientelares entre empresas privadas, centros de investigação e o Estado português.

E avisa que não são somente os processos de resistência que apresentam similaridades, também as práticas de repressão aos movimentos: “no momento em que as máquinas começarem a entrar pelos terrenos adentro e as populações as quiserem bloquear, temos de esperar violência policial”.

Qual é o projeto de mineração para Covas do Barroso?

Há um projeto para extrair minerais de lítio, nomeadamente espodumena e petalite, através de mineração de rocha dura, a grande escala e a céu aberto. As extrações de lítio mais conhecidas serão, talvez, as do "triângulo do lítio" na América do Sul, entre Chile, Argentina e Bolívia, onde o lítio é encontrado na salmoura dos salares [desertos de sal, salinas naturais].

Em Portugal não é assim. O lítio está nessas rochas pegmatíticas que referi, no subsolo. Em Covas [do Barroso], há espudomena. No caso da mina de Montalegre, também na região do Barroso, há petalite. Para Covas estão planeadas quatro cortas, todas em redor da aldeia, muito perto das populações e dos terrenos agrícolas, e numa zona particularmente rica em águas subterrâneas. Todos os furos feitos para prospecção, em 2017, dão água.

A história deste projeto começa, em bom rigor, em 2001. Em 2006, depois de anos de prospecções, houve um contrato feito [pela empresa Saibrais S.A.] com o Estado português para a construção de uma pequena mina de quartzo e feldspato, onde ficaria uma das quatro agora planeadas. Em 2017, a Savannah Resources adquiriu os direitos de prospeção nessa concessão. Desde aí que há um esforço para ampliar essa mina, de 120 para quase 600 hectares, e incluir o lítio no contrato da concessão.

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francisco venes
Francisco Venes formou-se em engenharia biomédica, mas o contacto com movimentos anti-mineração no Equador levaram-no à economia e ecologia políticas. (Foto: João Veloso)

Além das quatro cortas, este projeto inclui também uma área para lavaria de minérios, onde se faria o primeiro processo de beneficiação dos minerais, e várias escombreiras [aterros] para o depósito de resíduos rejeitados. 

Não se sabe se a refinação dos minerais será feita em Portugal ou não, e estamos a falar de concentrações de minerais muito baixas. Não há veias de minerais concentrados. Extrair-se-á muita pedra para uma pequeníssima percentagem de minerais, cerca de 1% de óxido de lítio, com algum interesse económico. É algo comum nestes projetos de mineração em grande escala e a céu aberto.

Os impactos ambientais e sociais serão, portanto, muito superiores ao alegado retorno económico?

Sim, sem dúvida. Os impactos ambientais estão estudados e serão significativos. Os impactos sociais costumam ser menos referidos, mas qualquer prática extrativista (seja de minérios, de petróleo, ou até a agricultura intensiva) afeta gravemente as comunidades. Há sempre uma destruição dos tecidos sociais nos locais onde estes projetos se instalam.

Este projeto da Savannah Resources ficará muito perto das populações de Covas do Barroso, Romaínho e Muro, a escassas centenas de metros das suas casas. Não haverá somente um impacto quotidiano (por causa do ruído, das poeiras e das vibrações) no dia-a-dia destas pessoas, como haverá uma disrupção do seu próprio modo de vida, tão particular e reconhecido como Património Agrícola Mundial [pela ONU].

Esse reconhecimento, único em Portugal, é visto pelas autoridades locais como selo de qualidade para os produtos da zona e há, a partir daí, uma perspetiva de desenvolvimento endógeno da região. Mas é mais do que isso: é o reconhecimento de um modo de vida singular. Há uma relação estreita, simbiótica, entre as pessoas e a natureza não-humana, fundamental no combate às alterações climáticas. É um exemplo de verdadeira sustentabilidade que é preciso defender.

Depois, há questões culturais ligadas à pecuária que ficam em risco com este projeto. Não só pelos impactos diretos no meio ambiente, mas também por razões económicas. Os baldios, agora em perigo, são fundamentais para a pecuária que é, por sua vez, fundamental para estas pessoas.

Falava há pouco do perigo de destruição do tecido social. A Savannah Resources tem abordado as populações para tentar ganhar apoiantes?

Sim, mas felizmente não tem tido sucesso. Não é algo exclusivo da Savannah. Quando as empresas de mineração querem entrar num determinado território, legitimar um projeto frente a processos de resistência, tentam “dividir para reinar”. A destruição da coesão social desses locais torna-se de extrema importância.

Em Covas do Barroso tem-se conseguido mitigar o impacto dessas táticas, ainda que possa ser significativo para algumas pessoas devido a divisões intrafamiliares. Estamos a falar de uma comunidade com cerca de 180 pessoas e, portanto, as pessoas dependem dos seus vizinhos. Apesar de haver algumas pessoas, muito poucas, abertamente a favor da mina, essa coesão ainda é sólida.

A rejeição generalizada ao projeto da Savannah até tem ajudado a mantê-la. A comunidade agiu de forma muito ágil e expedita assim que percebeu quais eram os planos. Expulsou os funcionários da empresa dos terrenos baldios e criou um sistema informal de vigilância.

Creio que o próximo passo da empresa será "ganhar" a comunidade e ter o seu consentimento. Isso passará por diversas estratégias. Negociações individuais de venda de terrenos, por exemplo. As empresas de mineração jamais fazem negociações coletivas, seja pelas terras seja pelas condições da exploração. É-lhes vantajoso, não só porque podem negociar preços mais baixos mas também porque dividem as pessoas.

Neste momento, a maioria da concessão pretendida pela empresa é terra baldia. Isso é uma grande vantagem para a comunidade e o seu esforço de resistência, porque não é fácil negociar a venda de terras baldias. Há que passar por uma assembleia de compartes. Os terrenos públicos, da junta de freguesia, também não são fáceis de comprar. Os mais fáceis de conseguir são os terrenos privados, mas a empresa conseguiu até hoje adquirir poucos.

E, ainda que algumas pessoas tenham vendido terrenos à Savannah, creio que há um sentimento generalizado de que o inimigo comum é a empresa, e não o vizinho que vendeu alguma terra. Isso anula as tentativas de dividir a comunidade pelas negociações individuais.

"Quando as empresas de mineração querem entrar num determinado território, tentam “dividir para reinar”. A destruição da coesão social desses locais torna-se de extrema importância."

Ainda assim, é necessário fazer-se a "transição energética". O  governo tem considerado o Barroso como zona a sacrificar pela descarbonização.

Não podemos olhar para a necessidade de determinados recursos (minerais, no caso) como um dado adquirido. A narrativa maior não vem do governo português, mas da União Europeia (UE), que estabeleceu uma lista de "matérias-primas críticas" [critical raw materials] a extrair e a produzir dentro do espaço europeu, como o lítio e o cobalto. É assumido que, no âmbito da transição energética e sobretudo em relação à mobilidade, é necessário abandonar as tecnologias que funcionam à base de combustíveis fósseis. 

A prioridade, muito clara na estratégia de mobilidade da UE, não é uma transição energética, mas tecnológica. Passar dos motores de combustão e explosão para as baterias de lítio, sem alterar o paradigma de mobilidade centrado no carro particular. Se o objetivo é fazer essa transição sem tocar na quantidade de carros a circular, sem afetar a indústria automóvel europeia, a procura de lítio será enorme. Isso requer procurar lugares que possam garantir a oferta.

É necessário descarbonizar, mas todos estes projetos de mineração dependem de uma vontade política. Se o carro particular deixar de ser o centro das políticas de mobilidade, então não precisaremos de todas estas minas, seja em Portugal, em Espanha, na Sérvia ou na Eslováquia, ou na América do Sul.

Aquilo a que assistimos é, pelo contrário, à tentativa de cristalizar a ideia de que não há alternativa: “só há este caminho e precisamos destes minerais, portanto será preciso sacrificar determinadas regiões em nome desta transição”. É um mau princípio. Desviamos os problemas de um lado para o outro sem resolver questões estruturais. A estratégia de mobilidade da UE fala de diversificar as modalidades de transportes, mas na prática está tudo direcionado para a transição para veículos particulares elétricos. 

Não bastam declarações de intenções, são necessárias políticas concretas. Mas não há vontade para isso. A própria Comissão Europeia torna isso claro, quando, no relatório sobre o novo quadro da UE para a mobilidade, fala prioritariamente sobre a importância da indústria automóvel no PIB da UE e o seu peso na criação de emprego. Ninguém quer afetar a indústria automóvel, mas se não quisermos criar novas zonas de sacrifício na Europa teremos de sacrificar a indústria automóvel.

É preciso diminuir o número de carros e isso significa incomodar uma indústria com muito poder de lóbi. Mas o caminho passa por aí. Não só para os movimentos de resistência contra a mineração, mas também para os movimentos pela justiça climática. É necessário questionar este modelo de mobilidade e os interesses económicos da indústria automóvel.

A maioria dessas zonas a sacrificar estão nas periferias da Europa. Se a quantidade de lítio em Portugal não justifica uma refinaria no nosso país, isso será mais uma confirmação da natureza dependente da nossa economia. Tendo em conta as suas experiências no Equador, onde as principais mineradoras são australianas e canadianas, como vê esta viragem "doméstica" do extrativismo europeu?

O geógrafo britânico marxista David Harvey, explicando as dinâmicas espaciais do capitalismo, diz que este está sempre à procura de novos territórios que garantam a perpetuação da acumulação [de capital]. Ou seja, o capitalismo procura sempre novas periferias. Portugal, Sérvia, todos estes espaços são periferias dentro dos centros.

Quando a União Europeia fala, na sua lei sobre as matérias-primas críticas, da necessidade de procurar recursos internamente, assume uma posição puramente geopolítica. A ideia é ganhar independência energética sobretudo face à China, que domina globalmente a refinação do lítio.

Depois, faz algo muito hipócrita: depois de séculos e séculos de exploração de recursos do Sul Global, tenta justificar e legitimar a extração doméstica dizendo que é uma maneira de pôr fim a essas práticas coloniais. Não só essas práticas vão continuar como também passam a existir nas suas periferias. Por alguma razão não vemos isto — e não falo só do lítio — acontecer na Alemanha. Acontece nos locais que não contam para os centros de acumulação.

E continuará a vir lítio do Chile, da Argentina e da Bolívia para a Europa. A dinâmica será a mesma. Querem passar a ideia de que as populações das periferias europeias têm de se submeter a uma lógica extrativista neocolonial, argumentando ser preciso acabar com a exploração de outros territórios, é desonesto. 

É uma tentativa de condicionar as pessoas nas suas lutas locais, impedindo-as de criar solidariedade com outras lutas. É necessário fazer com que os processos de resistência, que começam sempre como fenómenos locais, se tornem globais. Gerar solidariedade para uma luta comum, porque isto está a acontecer um pouco por todo o mundo. Criar e partilhar estratégias de resistência.

"É preciso diminuir o número de carros e isso significa incomodar uma indústria com muito poder de lóbi."

Isso está a acontecer. O acampamento em Covas de Barroso, que já acontece há três anos, traz pessoas de todo o mundo. É uma oportunidade para ouvir quem está a passar por processos semelhantes no México, na Sérvia, na Índia, mesmo que em diferentes contextos, e percebermos que não estamos sozinhos.

Segundo um relatório encomendado pela Lusorecursos, responsável pela mina em Montalegre, sobre as populações do Barroso, estas abusam do álcool e do tabaco e têm excesso de peso. A postura destas empresas perante as populações nativas, até as portuguesas, parece não mudar mesmo quando se passa a exploração para a Europa.

Temos de agradecer essa postura ignorante e arrogante. Numa fase inicial, foi fundamental para as resistências a estes projetos de mineração. A Savannah também chegou com uma postura colonial a um território que não conhecia e que não quis conhecer. Achou que estavam ali uns pobres coitados e ignorantes que lhes estenderiam uma passadeira vermelha, agradecendo-lhe de joelhos por  criar emprego e trazer desenvolvimento.

Catarina Alves, da Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso, acompanhou os fóruns dos investidores da Savannah e assistiu a representantes da empresa dizer que estes processos de resistência acabariam quando começassem a "entrar frigoríficos pelas portas adentro". A postura era essa. Num Natal passado, a Savannah distribuiu bolos-reis pela população. A reação foi o contrário do que esperavam: as pessoas sentiram-se ofendidas, e com razão.

A Savannah fez tudo mal e agora está a tentar correr atrás do prejuízo. Mesmo assim, não sei se aprenderam a lição. Continuam sem perceber a comunidade. O argumento da criação de emprego não funciona no Barroso, porque as pessoas não estão desesperadas por emprego. 

Noutros locais, há populações que sentem profundamente essa dicotomia entre não querer uma mina que lhes destruirá o território e precisar de rendimento. No Barroso, isso não existe, por mais que a empresa tente vender a ideia de que há pessoas à espera da mina para ter emprego. O Barroso enfrenta uma série de desafios, sim, e em relação ao seu futuro, mas por causa do envelhecimento e da emigração.

A empresa continua a dizer que a mina trará desenvolvimento económico à região, que a tornará de novo “vibrante com vida”.

Projetos de mineração trazem, quanto muito, uma dinâmica económica favorável na fase inicial de construção de infraestruturas, que dura um ano. Depois disso, a quantidade de empregos não-qualificados que geram é muito baixa. 

Depois, o dinamismo económico de curto prazo afasta as pessoas de outras atividades económicas e tem efeitos nefastos a longo prazo. Assisti a isso no Equador. Milhares de pessoas são empregadas em construções de barragens e juntam algum dinheiro, mas assim que esse boom passa ficam perdidas, sem trabalho, porque abandonaram a agricultura, a pecuária, e não sabem se voltam a isso ou não, sempre à espera do próximo projeto. 

Quando a Savannah e até o próprio governo dizem que esta mina ajudará a combater a desertificação e a tendência de declínio populacional na região do Barroso, estão a mentir. A mina não só não resolverá o problema de envelhecimento populacional que existe como o vai acelerar. 

As pessoas em Covas do Barroso percebem isso. Num curto prazo de tempo a mina irá alterar as dinâmicas económicas, irá afastar as pessoas das atividades tradicionais, e depois deixará um vazio. O projeto da mina terá, no máximo, uma duração de 17 anos, e não trará pessoas para viver no Barroso.

A Savannah afirmou que as pessoas que emigraram dali, que estão na França, na Suíça, na Alemanha, nos Estados Unidos, vão regressar para trabalhar. Ninguém vai deixar a sua vida nestes países para vir trabalhar durante uns anos para uma mina. Este projeto está cheio de promessas que não aterram na realidade. A empresa ou está a demorar a perceber isso, ou então percebe e não tem mais nada para oferecer e insiste nesta narrativa.

O primeiro estudo dos benefícios sócioeconómicos da mina, encomendado pela Savannah, em 2020, à Universidade do Minho, é completamente fantasioso. Para começar, toda a informação usada foi fornecida pela empresa. Não houve trabalho de campo, nem levantamento de informação a nível local. Depois, cinge-se à utilização de multiplicadores, indicados pela empresa, para chegar a conclusões sobre os impactos sócioeconómicos. Metodologicamente, é absurdo. Mas é esse estudo que depois serve de base à avaliação de impacto ambiental.

"A partir da posição da APA e das restantes autoridades, fica claro que estas acreditam que as comunidades não têm nem devem ter uma opinião sobre o projeto da mina."

Esse estudo de impacto ambiental foi recentemente considerado favorável, ainda que condicionado. O hidrólogo norte-americano Steven Emerman denunciou uma postura negligente da Savannah na consideração dos perigos dos resíduos rejeitados da mina e falou de um nível de poluição dos cursos de água que poderá chegar ao oceano Atlântico.

Há uma clara negligência da Savannah em assumir os perigos reais da mina, em termos de poluição dos solos e da água, mas também da Agência Portuguesa do Ambiente (portanto, do governo) e da comissão de avaliação.

Steven Emerman tem muita experiência na análise de projetos de mineração, com um vasto currículo na área. O seu estudo não tem intenções políticas, nem ele quer criar uma narrativa catastrofista só porque sim. O seu estudo sobre a estratégia da empresa para a gestão dos resíduos rejeitados está bem fundamentado.

A empresa sempre argumentou que esses resíduos estarão a seco, que não são materiais lodosos e que não se infiltrarão no solo. Emerman argumenta o contrário. Muito simplesmente porque aquilo que não é lodoso facilmente se tornará com a chuva. E a estratégia da empresa de contenção desses rejeitados ignora ou tenta dissimular uma série de cenários possíveis, caso haja falhas nas estruturas de contenção.

O rio Covas faz parte da bacia hidrográfica do Douro. A alguns quilómetros abaixo das minas, o Covas desagua no rio Bessa, que depois desagua no rio Tâmega. O Tâmega é um afluente do Douro. No pior cenário apresentado por Steven Emerman, caso haja uma falha na estrutura de contenção de rejeitados, esses lodos podem chegar à foz do Douro, e nem as barragens ao longo do rio serão suficientes para conter essa poluição.

Estamos, portanto, a falar de um projeto que não tem só impactos localizados. Pode vir a ter impactos negativos por toda a bacia hidrográfica do Douro, e até na zona ribeirinha do Porto e de Gaia. Isso tem sido pouco discutido, até pela comunicação social, mesmo sendo uma das grandes ameaças do projeto.

E a avaliação de impacto ambiental?

Essas avaliações falham logo à partida, por causa da forma como são pensadas. Um estudo de impacto ambiental é contratado a uma consultora pela própria empresa que quer promover o projeto. Existe uma relação clientelar a limitar esses estudos. Sofrem muita edição. Isso compromete, desde logo, qualquer estudo enquanto ferramenta.

Este, em particular, também começou mal. Existe muita vontade do governo de que este projeto vá para a frente. Todo o processo demonstrou que o estudo deveria resultar num parecer positivo, independentemente do que qualquer avaliação dissesse. Há uns três anos, dizia que este processo acabaria com um "parecer favorável condicionado". É o que temos hoje. É uma decisão estritamente política.

A APA resistiu fortemente a qualquer consulta pública. Não houve abertura para receber questões das partes interessadas, nem que estas chegassem à fala com a comissão de avaliação. Todas as tentativas de contacto foram controladas com a desculpa da covid-19. A primeira consulta pública, em maio de 2021, teria sido feita online, não fosse a pressão da Câmara Municipal de Boticas, que exigiu uma sessão pública no auditório da câmara.

Mesmo assim, essa sessão não esteve aberta ao público. A APA definiu um número restrito de pessoas, representantes de diferentes organizações. Foram algumas horas, numa sessão de acesso restrito, em que algumas pessoas puderam colocar algumas questões. Houve um grande cuidado sobre aquilo que era dito e foram proibidas quaisquer gravações.

Ainda assim, juntou-se muita população à porta do câmara, e os protestos ouviam-se lá dentro. Essa mensagem passou, pelo menos. Mas ficou bastante claro, a partir desta posição da APA e das restantes autoridades, que estas acreditam que as comunidades não têm nem devem ter voz, não têm de ter uma opinião sobre o projeto da mina, nem contactar a comissão de avaliação. Isto é profundamente errado.

No dia seguinte à consulta pública, aproveitando a presença de grande parte dos membros da comissão de avaliação no Barroso, a APA organizou uma visita aos terrenos da concessão. A comunidade não foi sequer informada desta visita. A população percebeu que ela estava a acontecer com a chegada da caravana de viaturas da APA e da comissão. A visita foi guiada por representantes da Savannah.

"Se a mina põe em causa o património agrícola, põe em causa esse modo de vida e as pessoas. Mas, de acordo com o governo, o projeto pode continuar."

Tivemos [os membros da associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso] de nos impor como "convidados". Ao chegarmos, houve uma reação negativa à nossa presença por parte dos representantes da APA. Depois de alguma tensão, os membros da comissão de avaliação perceberam que seria melhor se nos recebessem na visita. Aproveitámos esse momento para conversar e mostrar o que não lhes estava a ser mostrado.

A APA sempre mostrou muita resistência a fazer mais do que o mínimo estabelecido pela lei, o que não garante a obrigação de uma participação efetiva das populações nos processos de avaliação. Nunca houve vontade política de ter outro resultado que não o de um "parecer favorável condicionado". Mas no estudo está dito, claramente, que o projeto desta mina não é compatível com a certificação de Património Agrícola Mundial do Barroso.

Não é só esse selo que se perde, é o reconhecimento de um modo de vida das pessoas daquela região. Portanto, se a mina põe em causa o património agrícola, põe em causa esse modo de vida. Põe em causa as pessoas. Mas, de acordo com o governo, o projeto pode continuar.

Porquê tanto entusiasmo governamental em acelerar estes projetos extrativistas?

Podemos elencar várias hipóteses. Por um lado, há a diretiva que vem de Bruxelas. O governo português sente necessidade de lhe responder positivamente, colocando Portugal como ator central na política europeia para a obtenção de minerais estratégicos. 

A própria visão do governo sobre a descarbonização, no âmbito da mobilidade, está alinhada com a visão europeia da transição tecnológica. Não há visão política que permita ir além disso, porque há interesses económicos superiores a defender.

Depois, também há os interesses das grandes empresas portuguesas de mineração. Há lóbis a nível nacional, como a associação Cluster Portugal Mineral Resources, que concentra diferentes interesses no âmbito da mineração. E também temos as universidades, e os seus centros de investigação, que têm interesse no desenvolvimento destas atividades.

Todos estes interesses pesam sobre as instituições e isso reflete-se na falta de transparência. A Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), responsável pelas concessões mineiras, sempre resistiu a entregar informação às comunidades enquanto cooperava proximamente com os atores interessados no projeto de mineração.

Toda a informação a que tivemos acesso sobre a avaliação de impacto ambiental só nos foi apresentada após ser instaurado um processo judicial contra o Estado português, por parte de uma associação galega. A resistência em entregar informações às organizações que se opõem ao projeto demonstra conivência por parte do governo. E nem o tentam esconder: o governo sente-se à vontade para reunir publicamente com grupos de interesse e empresas de mineração. Sem perceber que há aí um problema: o governo não pode ser, ao mesmo tempo, fiscalizador e promotor destes projetos.

"A resistência em entregar informações às organizações que se opõem ao projeto demonstra conivência por parte do governo."

Na direção da Savannah encontramos um antigo CEO da Navigator, empresa que este mês defendeu o aumento da área de plantação de eucalipto no nosso país. Se, para além desta aparente promiscuidade de quadros, também é visível a união de interesses entre o poder político e estas empresas extrativistas (ou de agricultura e silvicultura intensivas), e havendo hoje prospeção de lítio desde Portalegre até Viana do Castelo, em que ponto estamos na união dos movimentos de resistência?

Não há só portas giratórias do governo para a iniciativa privada. Lá dentro também as há. Estes atores movem-se de projeto extrativista em projeto extrativista. O plantio intensivo de eucalipto, do qual somos relembrados todos os anos no verão, é provavelmente o nosso maior problema ambiental. Não me espanta ver alguém passar da Navigator para a Savannah. Encaixa na perfeição.

A mina que a Savannah quer fazer em Covas do Barroso, e a consequente resistência, tem um simbolismo particular. Se este projeto acontecer, escancara as portas para todos os outros. Travar a mineração no Barroso é fundamental não só para aquela comunidade, para Boticas, mas também para o resto dos territórios ameaçados pela hipótese da mineração de lítio.

Creio que isso tem ajudado na congregação de tantas pessoas à volta desta resistência em Covas. Entretanto, surgiram pontes com outras lutas. As pessoas foram percebendo que uma mina nunca é só uma mina e que irão sofrer as mesmas consequências que outras pessoas noutros territórios do país.

Esses processos de articulação nem sempre são fáceis, mas tem-se caminhado nesse sentido. Vão-se estabelecendo pontes importantes com a Galiza, que partilha uma identidade cultural com Trás-os-Montes, e que também luta contra vários projetos de mineração de lítio. No fundo, todas estas lutas são a mesma luta. É uma resistência a uma lógica de acumulação capitalista que só sobrevive se devorar novos territórios e formas de vida. Até para especular é preciso prometer a exploração de novos territórios.

A Savannah, que é cotada em bolsa e precisa de investimento de capital para se afirmar, tenta passar aos seus investidores a ideia de que a resistência popular se resume a meia dúzia de pessoas. A empresa precisa que o projeto pareça credível aos olhos dos investidores, para poder especular o valor da concessão e depois, talvez, vendê-la.

Sabemos que não são só meia dúzia de pessoas a resistir, nem em Covas, nem no resto do mundo. Como o seu trabalho de investigação demonstra, as lideranças destas resistências tendem a ser femininas, por diversas razões e motivações. Consegue traçar paralelos entre as resistências à mineração no Equador e em Portugal?

Mais que estudar as lideranças, quis entender as motivações que levam as mulheres a opor-se a projetos de mineração, mesmo que não estejam envolvidas nos movimentos de resistência. Assisti a diversas assembleias populares no Equador, especialmente na região amazónica, em que a participação das mulheres era muito reduzida.

Estamos a falar de assembleias em comunidades indígenas que podiam durar de um dia para o outro e em que eram poucas as mulheres que falavam. Mas aquilo que era dito era, qualitativamente, muito significativo. Os poucos minutos de testemunhos das mulheres valiam por horas de outras intervenções.

As mulheres podem estar fora dos espaços de tomada de decisões, mas são fundamentais para manter a coesão nos processos de resistência. Temos tendência a imaginar que processos de luta se resumem a um conjunto de atos visíveis, concretos: uma manifestação, um bloqueio. Mas há um trabalho e um esforço diários, mais discretos, que recaem sobre umas poucas pessoas.

Percebi que, tanto no Equador como em Portugal, essas pessoas são normalmente mulheres. Em Covas do Barroso, a gestão dos baldios é da responsabilidade de Aida Fernandes, que é também uma das lideranças da resistência. O seu trabalho nas terras baldias é diário, e fundamental para a própria resistência.

Outro papel essencial das mulheres nestes processos é o do cuidado da comunidade, a sua gestão emocional. Estas lutas são desgastantes. Há tentativas permanentes de dividir as pessoas e de destruir os tecidos sociais. No caso do Barroso, já lá vão seis anos. As pessoas queixam-se. A vontade tem quebras. Física e emocionalmente, é preciso gerir isso, e esse trabalho é das mulheres. Sempre o foi.

"São diversas as estratégias de repressão e perseguição a este movimentos. Tudo o que vi acontecer no Equador pode acontecer em Portugal."

De um ponto de vista material, pelas funções que desempenham, as mulheres têm uma maior noção dos perigos que estes projetos trazem para a saúde e o bem-estar das suas comunidades, seja pela destruição das terras, a poluição da água ou a destruição do tecido social.

É dicotómico. A divisão sexual do trabalho, imposta pela ordem patriarcal, atribui às mulheres e aos homens diferentes responsabilidades, secundarizando as primeiras. Mas também faz com que elas tenham um papel elementar na coesão comunitária. Assumem e acumulam responsabilidades, das quais os homens se escusam, mas depois são pouco ouvidas.

No Equador, as resistências populares à mineração têm sido fortemente reprimidas pelo Estado. Crê que isso possa acontecer cá?

São diversas as estratégias de repressão e perseguição. Podem passar pela criminalização dos movimentos, podem chegar à violência. Tudo o que vi acontecer no Equador pode acontecer em Portugal. No Equador, a criminalização das lideranças é muito comum, especialmente quando as lutas levam décadas. A perseguição judicial é uma ferramenta de repressão e dissuasão, e já temos um exemplo disso.

Uma das lideranças da luta em Covas do Barroso está a ser alvo de um processo judicial por parte da Savannah, por causa de uma alegada agressão que não aconteceu. Este tipo de perseguições servem não só para anular a pessoa em questão, mas também para descredibilizar a luta, e desincentivar as restantes pessoas a participar. Infelizmente, estas estratégias funcionam.

No Equador, a perseguição faz-se com ordens de prisão. Um líder popular da região de Molleturo [Victor Guaillas] foi preso, em 2019, durante uma greve nacional no Equador. O governo aproveitou os piquetes, os bloqueios e os enfrentamentos com a polícia para prender algumas lideranças que já estavam marcadas. [Guaillas] Foi acusado de sabotagem e terrorismo, detido, e encarcerado na Penintenciária do Litoral, em Guayaquil, onde morreu carbonizado durante os motins de setembro de 2021.

Em relação à repressão policial, que no Equador é bastante violenta, nunca a podemos descartar. Obviamente que haverá diferenças, mas no momento em que as máquinas começarem a entrar pelos terrenos adentro e as populações as quiserem bloquear, temos de esperar violência policial. Em Portugal, no âmbito urbano, a repressão policial está em crescendo. Mesmo que, publicamente, uma carga policial sobre uma comunidade rural possa ser vista de outra maneira, não estamos isentos de isso acontecer nestas lutas. Precisamos pensar seriamente nisso.