A Quinta da Manguela, em Santo Tirso, é um exemplo de agrofloresta de sucessão no norte. Entre as cerca de 60 variedades, o trabalho de poda das árvores é essencial | Foto de Ricardo Meireles
O aumento das temperaturas, os incêndios, as secas cada vez mais severas e a degradação dos solos mostram que precisamos de mudar de paradigma na agricultura convencional. Já há quem desenvolva alternativas em Portugal com a agrofloresta de sucessão. Que agricultura é esta?
Mértola é um dos concelhos mais secos e mais quentes do país. Passear pelo campo numa tarde de junho é como estar num deserto. Se a temperatura for de 35 graus, a sensação térmica é de 40. O índice de UV bate os 10. Olhar para a paisagem árida daquela região pode ser desolador, depende da perspetiva: há quem ache bonito os campos amarelados com azinheiras e sobreiros isolados, como um quadro típico do Alentejo. Na verdade, significa que o solo está com pouca vida e as árvores estão muito sós. Preferiam ter companhia.
No dia em que o Setenta e Quatro pôs os pés na Horta da Malhadinha, onde se situa o Centro de Agroecologia de Mértola, o calor era intenso e tudo à volta era o cenário a que estamos habituados naquela região. Tudo menos o terreno onde desde 2019 está a ser implementado um sistema de agricultura regenerativa a que se chama sintrópica, ou agrofloresta de sucessão. Ali, a temperatura baixa imediatamente uns 4 graus e o verde é mais intenso.
As árvores estão plantadas em fila, como num desenho. São muitas e variadas. Entre as árvores estão hortícolas, o principal produto que provém do trabalho de António Coelho, que nos explica o que se encontra naquela propriedade com três hectares. Um primeiro talhão com este tipo de agricultura foi iniciado em 2019, um segundo em 2021 e um terceiro tem apenas um mês e meio, apesar de se encontrar já com bastante densidade. Os girassóis e o milho mexicano, mais resistente ao calor, dão-lhe exuberância, no entanto aquilo que ainda não se vê mas que vai ser mais abundante é a videira de uva Dona Maria. Pelo meio, estão várias outras coisas. A concentração é tanta que não há hipótese para ervas daninhas aparecerem.
Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.
“Aqui em cada dois metros e 40 centímetros temos um choupo, um salgueiro e uma videira”, explica António. “Se fecharmos esses 2 metros e 40 para um metro e vinte temos um choupo e um salgueiro. Se fecharmos para 60 cm temos um tagasaste e nos outros 60 cm temos uma amoreira. Entre esses blocos de 60 cm temos hortícolas, como por exemplo a beringela, o manjericão, o feijão verde ou o rabanete japonês.”
Com um sorriso, Marta Cortegano, que também nos acompanha nesta visita, diz que “o mais engraçado da agricultura sintrópica é isto. Perguntam-nos 'como é que é possível tudo misturado? Não vão competir umas com as outras?' Não, porque cada uma ocupa o seu estrato, quer no tempo quer no espaço. Não é um conjunto de plantas que estão a ser atiradas por acaso, todas elas têm características que fazem com que seja uma conjunção”. Para esta engenheira agrónoma, o sistema de abundância tem sido uma constante descoberta. Enquanto nos mostra a curta distância entre as árvores plantadas, diz que é o contrário do que aprendeu no curso que tirou.
Além de estarem em linha, as árvores, arbustos ou hortícolas encontram-se em diferentes estratos. Esse princípio de densidade com diferentes alturas faz parte do modelo de agricultura sintrópica, aquele que podemos considerar que imita mais a natureza, pela extrema biodiversidade e humidade que proporciona. A junção de múltiplas espécies e variedades em grande quantidade vai enriquecer o solo e diminuir a necessidade de água. Além disso, aumenta a produtividade ao longo do ano, com mais produtos para comercializar.
Marta e António foram viver para Mértola há 18 anos. António como agricultor, Marta em projetos de desenvolvimento local. Um deles é a Terra Sintrópica, da qual António também faz parte, outro é o Centro de Agroecologia de Mértola, que está inserido no mesmo espaço da Horta da Malhadinha. Agroecologia é um conceito mais abrangente, no qual se insere a agrofloresta de sucessão. A ideia daquele centro é receber ali os ensinamentos e exemplos de diferentes práticas, todas elas com uma base ecológica.
O Centro agrega várias entidades, entre elas o município de Mértola, as escolas do concelho e outras associações. O terreno em si tem também uma história curiosa que mostra o espírito comunitário. Pertencia ao historiador José Mattoso, que o doou ao campo Arqueológico de Mértola. Quis apenas ficar com usufruto da totalidade de uma das duas casas que estão no terreno, e metade da outra casa, onde se encontra a sua biblioteca, devidamente catalogada.
O terreno esteve quase abandonado durante muitos anos, até que em 2008 o Campo Arqueológico fez um acordo de comodato com António Coelho. Inicialmente, este plantou aromáticas, mas, depois de interromper a atividade durante um ano, mudou o paradigma da exploração agrícola e transformou a terra seca e inóspita da Malhadinha numa pequena agrofloresta, onde se fazem experiências e se produz.
Estamos a viver um verão em que a totalidade do continente português está em seca severa ou extrema. Aliado à falta de chuva, temos um problema crónico de gestão de água, tratado como se as épocas de seca fossem fatalidades, quando na verdade são a consequência das alterações climáticas, do aquecimento global e da forma como se trabalha (ou não) o solo.
É consensual entre a literatura científica que se continuarmos a explorar de forma intensiva as regiões agrícolas de Portugal, estaremos a criar desertos. As monoculturas não são compatíveis com a biodiversidade e a vida das árvores no ecossistema. Mais tarde ou mais cedo, não haverá adubo ou água suficiente que dê vida a estas propriedades. Habitualmente, os terrenos são abandonados, tal como grande parte do território português, o qual 98% pertence a privados. Com o abandono vêm os incêndios, os terrenos inférteis, o aumento de temperatura e a baixa pluviosidade.
A agricultura dita convencional intensiva tem subsistido com o uso de fertilizantes, com a injeção de fundos europeus para manter o nível de produção e a água disponibilizada por barragens e aquíferos. Na equação deste sistema, há coisas que ficam de fora. São essas que os sistemas de agrofloresta querem trazer de volta.
Em termos de conceito, aquilo que Ricardo Leitão, investigador da Universidade de Coimbra, explica ao Setenta e Quatro é que as práticas de agrofloresta de sucessão - ainda recentes em Portugal - “partem do princípio de aproximar a agricultura a um modelo natural, a um modelo de floresta". "Ou seja, pretendem pegar em terrenos muito degradados, que não seriam produtivos, e convertê-los em modelos produtivos muito rapidamente, muito mais rapidamente do que a reparação natural de uma floresta”, explica. Essa reparação natural normalmente é feita pela introdução de espécies e pela poda, uma “ferramenta fundamental deste sistema”. O elemento árvore tem de estar sempre presente. O objetivo é criar uma floresta e ter uma ocupação máxima do espaço, com muita produtividade agrícola. É um sistema intensivo, mas biodiverso.
“A biomassa é o melhor fertilizante que se pode ter. São solos esponjosos, quando chove a água fica retida. Na agricultura sintrópica a água planta-se”, diz Pedro Nogueira.
O mundo académico tem ido ao encontro do interesse crescente da União Europeia pelo tema da agrofloresta. O primeiro trabalho realizado com o apoio financeiro da Comissão Europeia foi o SAFE. Depois disso houve vários. Mais recentemente foi criado o AFINET (AgroForestry Innovation NETworks), uma espécie de consórcio que junta investigadores e praticantes de nove países (Portugal, Espanha, Bélgica, Reino Unido, Itália, Hungria, Polónia, França e Finlândia). O objectivo é compreender cada vez melhor o impacto económico e ambiental destes sistemas.
Segundo o biólogo Ricardo Leitão, vice-delegado da EURAF (em inglês designada como European Agrofloresty Federation), e organizador do 1º Encontro Nacional de Sistemas Agroflorestais de Sucessão, o potencial é enorme no aumento de resiliência às alterações climáticas e sustentabilidade das explorações. “Seja qual for o modelo agroflorestal,” esclarece, “já se provou que em termos de carbono é benéfico e em termos de gestão de água também, porque aqui é o elemento árvore que faz a diferença. Normalmente não estaria presente quando tínhamos outras culturas”. Ou seja, enquanto a monocultura é baseada numa cultura apenas, “na agroflorestal tem pelo menos dois elementos no sistema, por vezes três ou quatro, mesmo nos mais convencionais. Pode parecer pouco, mas é 100% a mais do que numa monocultura”, explica ainda o investigador.
Sentado debaixo de uma laranjeira no Centro de Agroecologia de Mértola, Pedro Nogueira fala-nos desta simbiose entre a floresta e a agricultura. Para este arquiteto paisagista, que se juntou ao projeto há dois anos, nestes sistemas o que se pretende “é criar percursos sintrópicos onde haja um ganho material e de energia”. No caso desta horta, onde vemos tantas árvores juntas, “há uma maximização da produção fotossintética. Quantas mais árvores temos, mais fotossíntese existe, com todos os benefícios e sucedâneos que daí resultam. Quanto mais fotossíntese, mais material vegetal vamos ter”. E isso resulta numa regeneração do sistema, porque se está a devolver esse material ao solo.
Como as árvores têm diferentes ritmos de crescimento e diferentes estratos, há umas mais altas do que outras, o que “cria um vortex de humidade das copas até ao chão, e a temperatura vai baixando”, explica Pedro. “Num pinhal, por exemplo, pode-se ter humidade ao nível da copa, mas ao nível do solo é muito quente, o que é um incentivo à propagação dos fogos.”
Isso vai ao encontro daquilo que é também reconhecidamente um dos grandes problemas de qualquer país, sendo que no sul da Europa e no sul de Portugal se torna mais grave: a degradação dos solos. Não é por acaso que um dos temas fortes da cimeira climática COP26 foi a “Declaração das Florestas e Uso dos Solos”, e que a PAC (Política Agrícola Comum) para 2023-2027 tenha como um dos principais pilares o desenvolvimento de “regimes ecológicos”.
“A água não tem a ver com obras de grande escala, como barragens, mas na forma como iniciamos um caminho de promoção da fertilidade de solos e da humificação”, refere o arquitecto paisagista. “A biomassa é o melhor fertilizante que se pode ter. São solos esponjosos, quando chove a água fica retida. E a floresta é o melhor modelo para várias coisas, entre elas a fixação da água. Na agricultura sintrópica a água planta-se.”
Em Mértola, o que se faz é precisamente essa aceleração de processos, sem receio de que as plantas entrem em competição porque, tal como Marta explica, “na sintropia não existe o conceito de invasoras ou exóticas, há plantas!”. O importante é descobrir como podem cooperar umas com as outras.
A junção de várias espécies em grande quantidade vai enriquecer o solo e diminuir a necessidade de água. Além disso, aumenta a produtividade ao longo do ano.
Ao contrário do conceito de “rewild”, de que agora se fala muito, em que se deixa a natureza seguir o seu caminho, porque sempre se há-de regenerar, na sintropia cria-se abundância com o objetivo de também produzir alimentos. Como explica Pedro, “em muitas geografias entrou-se num ponto de não retorno, ou que demora mesmo muito tempo (a regenerar). Nesta noção antropocénica de que somos os agentes nefastos do sistema, pode-se ser o agente promotor. As soluções são simples. E o rendimento passa a ser mais plural.”
A paisagem seria também outra e, tal como Marta sugere, se em volta das aldeias se criassem este tipo de sistemas, a temperatura seria mais suportável para as populações nas épocas de Verão, cada vez mais quentes. Numa região como Mértola e Castro Verde, que passou a ser designada como semi-árida, deixava-se de ter o Alentejo do cereal e das planícies despidas e voltava-se a ter um Alentejo de floresta mediterrânica.
O conceito de agrofloresta de sucessão ou agricultura sintrópica foi desenvolvido por Ernst Gotsch, um agricultor e investigador suiço que em 1984 resolveu mudar a sua vida e experimentar no Brasil aquilo que já estudava há uns anos. Comprou 500 hectares de uma fazenda com o nome de “Fugidos da Terra Seca” - por causa da sua aridez - e desenvolveu um conceito de sintropia (equílibrio organizacional, em oposição à entropia) aplicado à agricultura.
Baseou-se em ideias ancestrais e práticas indígenas para criar algo novo. Começou a juntar uma enorme diversidade de plantas em diferentes estratos. Hoje em dia, além de produzir um dos cacaus mais caros do mundo, tem uma floresta tropical que gere uma enorme variedade de alimentos. Tudo o que usa é a tesoura da poda - naquela terra não há qualquer tipo de agrotóxicos ou adubos, orgânicos ou químicos. Entretanto, Gotsch tem sido o mentor de projetos em diversos países, muitos dos quais na Europa. Cada geografia e cada clima tem as suas características. Os princípios são os mesmos, é apenas uma questão de adaptar as plantas.
Em Portugal, no que diz respeito à agrofloresta sintrópica e a outros modelos de agricultura ecológica, há muitos anos que tudo gravita um pouco à volta de Alfredo Sendim. É na sua propriedade, a Herdade do Freixo do Meio, que a maior parte das pessoas interessadas pela agricultura ecológica teve o primeiro contacto com estes conceitos e assistiu a formações. É lá que Alfredo recebe gentilmente quem queira conhecer diferentes formas de agricultura regenerativa. Um dos edifícios é um centro de interpretação, ilustrado com as várias fases de uma floresta, desde as primeiras árvores até ao seu estado de climax.
Ernst Gotsh é visita regular e neste momento um dos seus pupilos, Marc Lieber, está a gerir autonomamente um hectare e meio da herdade, a que deram o nome de Quinta das Abelhas. Tem ali cerca de 70 mil árvores e muitos vegetais. É um oásis verde que quase não precisa de água.
Na visita a esta enorme propriedade, com 600 hectares no total, o Setenta e Quatro teve como guias Alfredo e Ana Fonseca, investigadora que há muitos anos se dedica ao estudo do montado. Começou por ir para o Freixo para concluir um estágio de doutoramento e acabou por ficar e fazer parte da equipa. A herdade tem uma enorme variedade de ecossistemas agroflorestais e uma enorme variedade de produtos, mas nem sempre foi assim.
Em 1990, quando Alfredo Sendim se juntou à mãe, que tinha herdado dois mil hectares do pai (foi posteriormente dividida entre Alfredo e os irmãos), tudo o que se via eram plantações de trigo. Havia também monoculturas de tabaco e tomate. “Quando cheguei isto estava a menos que zero. Sem ter noção disso, estava no deserto, punha uma semente na terra, senão pusesse adubo nada crescia”, conta, enquanto passamos de carro pelos vastos hectares de montado.
Começou a pôr em causa o que estavam a tentar fazer, e a procurar formas de olhar para a agricultura numa perspectiva ecológica. O seu pensamento mudou. “Vamos imaginar o solo como uma bateria”, sugere Alfredo. “Na natureza há a biodiversidade, que vai carregando aquela bateria. A questão é quanto se pode gastar. A formação do montado foi isso, ver até onde se pode gastar. Salazar percebeu que tinha uma boa bateria no montado, usou-se tudo. E depois da última campanha do trigo isto estava esgotado."
O montado, que ocupa cerca de 700 mil hectares do território nacional, é um sistema agro-silvo-pastoril antigo, que combina árvores como o sobreiro e a azinheira com o pastoreio de animais como vacas, ovelhas e cabras. É considerado um sistema característico do clima mediterrânico. Durante a ditadura de António de Oliveira Salazar, nas décadas da campanha do trigo (1930/40), muitas árvores foram cortadas para dar lugar aos cereais, outras mantiveram-se para manter a produção de cortiça e de bolota.
Hoje em dia, é o tipo de agrofloresta que tem mais apoio financeiro e que se considera a mais prevalente solução de mitigação e adaptação para o impacto das alterações climáticas em Portugal. Há quem defenda que se deve implementar este modelo no centro e norte do país, devido ao crescente aumento das temperaturas para outras latitudes e à necessidade de regenerar os solos, destruídos pela agricultura convencional.
“Há um distanciamento da humanidade com o sistema natural que é um bloqueio. Quando falamos de regenerar e de recursos, há coisas básicas que a maior parte da sociedade não tem noção", explica Alfredo Sendim.
Para Alfredo Sendim, o montado tem todo esse valor de biodiversidade, mas pode-se ir mais longe, até mesmo para o proteger. A ideia é criar mais estratos de árvores e para isso estão a introduzir mais espécies na herdade: carvalhos, pinheiro manso, oliveira, vinha, figueiras, limoeiro, marmelo, amendoeira, entre outras. Tudo se aproveita e tudo tem o seu serviço, até mesmo as folhas de videira. Depois de secas, são vendidas à marca Weleda para se produzir um medicamento.
“Estamos a tentar olhar para o sistema natural e ver o que é compatível com ele”, diz Alfredo. O objetivo é complexificar um sistema que se tem vindo a simplificar. Os sobreiros vão conviver com árvores mais altas e árvores mais baixas. “O montado é uma estrutura muito interessante, é uma tentativa do homem de viver dentro dos limites da natureza funcionar, não colide completamente, como a maioria das maneiras que nós temos de interagir com os ecossistemas”, explica. “Mas o montado não permite que a agulha continue a andar para o lado do climax. Não vai trás nem vai para frente. O problema do montado é estagnar.”
Pelo meio daquilo que vai ser uma floresta mais densa, estão animais, mas não para produzir carne para vender. “Temos animais porque são fundamentais para o ecossistema”, salienta. Os burros bagueiros, por exemplo, têm como maior função a digestão. “É solo andante”, diz Alfredo, “são exímios em fazer uma pré-mastigação. Não teríamos certos fungos e bactérias se tivessemos só cavalos. O burro está todo o dia a trabalhar para o sistema. Todos estão. Os únicos a quem passou pela cabeça tirar do sistema e não retribuir fomos nós!”
Os outros animais que vemos na herdade são as vacas barrosãs, o porco preto ou o zebro, um cavalo que se considera a espécie mais antiga. O focinho é idêntico ao das zebras, daí os portugueses terem dado esse nome aos cavalos listados que encontraram em África.
Observar os zebros na Herdade do Freixo do Meio é como um regresso ao passado ou um encontro virtual com uma espécie extinta. Quando chegamos à aldeia neolítica esta sensação aumenta. Foi há pouco tempo que começou a ser construída, tentando seguir ao máximo aquilo que seria na época, incluindo a escolha do sítio. Vai servir principalmente para explicar aos visitantes como viviam as pessoas naquela altura, o que comiam e como se relacionavam com a natureza.
“Há um distanciamento da humanidade com o sistema natural que é um bloqueio”, explica Alfredo, quando falamos sobre a perspectiva de utilização da natureza. “Quando falamos de regenerar e de recursos, há coisas básicas que a maior parte da sociedade não tem noção. Todos nós fomos criados num sistema humano, nunca me ensinaram ecologia. É uma ciência, não são umas pessoas que querem ver passarinhos.”
Foi na Herdade do Freixo do Meio que Ricardo Meireles teve, através de Ernst Gotsch, conhecimento das práticas de agrofloresta de sucessão. O cenário da propriedade de Ricardo, em Santo Tirso, é completamente diferente da Horta da Malhadinha em Mértola ou da Herdade do Freixo do Meio em Montemor-o-Novo. Ali respira-se outro ar, mais fresco. A sua história começou com uma propriedade herdada pelo pai, na qual Ricardo, fotógrafo de profissão, cultivou plantas aromáticas.
“Trabalhei numa revista de agricultura durante muitos anos”, conta ao Setenta e Quatro. “Foi aí que percebi que a prosperidade na agricultura convencional é uma ilusão. Eu visitava uma quinta e outra e outra e percebia o denominador comum: a maior parte dos agricultores não conseguia pagar o seu salário. Todo este desenvolvimento que acontece na agricultura convencional tem a ver com investimentos cada vez maiores, geridos por menos pessoas.”
“Muitas pessoas ficam admiradas de plantarmos eucaliptos na hortas”, mas o que está errado é a forma como o ser humano o planta, refere Ricardo Meireles.
Para dar início à sua ideia de cultivar plantas aromáticas com certificado biológico, pediu um apoio financeiro europeu, mas depressa percebeu que não estava a compensar, porque o preço a que vendia era mais baixo do que tinha previsto. Além disso, sentiu que “o que fazia era biológico, mas não era sustentável”. As telas de plástico que usava para cobrir a terra não permitiam que esta respirasse. “Não havia sol, não havia micro-vida, estava a ficar um solo inerte”, conta. Quando começou a perceber que “estava a dar um passo em falso”, resolveu informar-se por alternativas, até que se interessou pelos modelos sugeridos por Ernst Gotsch.
“Na agricultura sintrópica, ao fim de algum tempo, cada alface que vamos tirar daquele local o solo vai ficar mais rico do que quando a plantámos”, refere Ricardo. “Isto é a grande mudança. Até agora, nos últimos dez mil anos, o homem nunca fez isso, sempre extraiu.”
Normalmente a pergunta que sobressai num primeiro contacto com este tipo de agricultura é se é possível aplicar em grande escala. Na verdade, já existem vários exemplos no Brasil que mostram como é possível produzir em muitos hectares, com sistemas mecanizados.
Por cá, já temos um exemplo mais recente na Golegã, na propriedade da marca Paladin, com Gotsch como orientador. No entanto, pessoas como Ricardo gostam de pensar que a aprendizagem e incentivo a este tipo de agricultura é muito útil para a economia local. Nos apoios financeiros que são dados, “saber se o produtor está a enviar o seu produto para o Japão ou para a mercearia da esquina devia ser um fator de avaliação”, diz-nos. Neste momento, não comercializa produtos da sua propriedade nem recorre a apoios, mas mantém uma atividade que inclui muitas formações e workshops: “acho interessante do ponto de agricultura familiar. Um dos nossos projetos é ensinar famílias para se tornarem autossustentáveis”.
Em Mértola, a crescente produção de António Coelho na Horta da Malhadinha tem destino na venda a distribuidores, no mercado e no espaço PREC - Processo de Regeneração em Curso -, situado no centro da vila. Marta Cortegano diz que um dos sonhos desta organização “é no futuro próximo as cantinas da região possam começar a receber estes produtos.” Por agora, uma das atividades extra-curriculares das escolas primárias do concelho é cuidar de uma horta criada segundo estes princípios.
Segundo Marta, muitas crianças dizem que lhes faz lembrar a horta dos avós. “Já tivemos a situação de um avô à porta a explicar ao filho porque é que aquilo fazia sentido”, conta-nos. O filho não percebeu, mas o neto sim.
O espaço PREC é também onde a equipa da Associação Terra Sintrópica se encontra e onde se juntam para as refeições. Está aberto ao público - pode-se almoçar e comprar diferentes produtos -, e serve também para reuniões, encontros e workshops. Na denominação, trocou-se o termo Revolução por Regeneração, mas Marta Cortegano diz que no fundo “tem a ver com todos os conceitos anteriores”. E acrescenta que neste momento têm “um sistema em que os grandes proprietários dão terra a pessoas que não têm terra para fazer agricultura regenerativa.” Segundo o arquiteto paisagista Pedro Nogueira, parte deste espírito inquieto e capacidade associativa de Mértola foram impulsionados pelo trabalho de décadas do arqueólogo Cláudio Torres, responsável pela criação do Campo Arqueológico e grande comunicador sobre a história da região.
Consumir produtos locais é um dos objetivos desta associação, e é também um dos princípios de Alfredo Sendim, da Herdade do Freixo do Meio. “Decretei o fim de entrada de comida de fora nesta herdade. O desafio é viver autossustentáveis”, esclarece. E, de facto, a quantidade de produtos que se produzem na herdade não justifica a entrada de mais. Muitos deles são provenientes da bolota, o símbolo da herdade.
Já houve um tempo em que a bolota era um alimento habitual, assim como a castanha. Ana Fonseca, da Herdade do Freixo do Meio, explica-nos que entrevistou muitas pessoas com cerca de 80/90 anos cujos pais alimentavam a família essencialmente de bolotas cozidas ou assadas. “Tem muito a ver com a fome”, diz-nos, “e até com má memória. Havia a vergonha de comer a bolota. Havia perseguição dos guardas das herdades. O pai do mestre Salgueiro, um senhor daqui de Montemor, vinha pela ribeira até ao Freixo, porque aqui o guarda não chateava por vir apanhar bolota. Noutros sítios às vezes as pessoas eram presas. Isto nos anos 1930/40”.
Atualmente, a bolota é a estrela da herdade. São vários os produtos que dali resultam: farinha, biscoitos, pão, enchidos, hambúrgueres, pó de infusão (como substituto do café ou chicória), patês, bolotas fermentada, etc.
Querem, principalmente, passar a ideia de um produto que já não tem a ver com a fome, mas sim com as tradições, a identidade, e que tem “qualidades nutricionais excepcionais, com uma capacidade anti-oxidante superior à da romã”, garante Ana.
Para Alfredo, “a bolota para consumo humano é uma causa incontornável. Pode demorar mil anos, ou pode demorar um ano, mas vamos acabar por perceber que não faz sentido comer coisas que não venham das árvores.”
Um dos factores mais importantes para o crescimento dos sistemas de agrofloresta de sucessão é a poda. Quando pegamos num pedaço de terra escura no terreno da Horta da Malhadinha em Mértola percebemos porquê. É escura, nitidamente mais húmida e mais rica em nutrientes do que toda a terra que vemos à volta. O que a torna assim não é a rega nem adubos ou fertilizantes, é a biomassa acumulada pela constante poda e a diversidade de plantas que ali se encontra.
Entre as árvores cuja maior função é criar biomassa está o choupo e o eucalipto, habitualmente relacionado com as extensas monoculturas e com o risco de incêndios. Na agricultura, o pensamento é outro. Marta Cortegano considera-a “uma árvore generosa''. "Os primeiros sistemas que conhecemos na agricultura sintrópica são com eucaliptais, a crescer com bananeiras e cacau.” O problema é como se usa.
Ricardo Meireles confirma esta ideia, ao explicar que “muitas pessoas ficam admiradas de plantarmos eucaliptos na hortas”, mas o que está errado é a forma como o ser humano o planta. Se fizermos um deserto verde de eucaliptos é mau, mas se plantarmos eucalipto pontualmente, misturado com outras árvores para produzir biomassa é uma mais-valia.”
É preciso podar constantemente, daí a mão-de-obra ser uma questão que suscita dúvidas e incertezas quanto à implementação de um sistema de agricultura sintrópica. Se, por um lado, não existe a necessidade de gastos em adubos e fertilizantes, por outro, exige conhecimento especializado e mão-de-obra.
Para Marta Cortegano, este é um falso problema, precisamente por causa dos outros custos. E dá-nos um exemplo. “Tem de se ver quanto gastam todos os meses os produtores pecuários só a comprar alimentação para o gado, porque o sítio onde o gado está não produz a comida que eles precisam”, explica. “Importam soja de sítios que estão a ser desflorestados. São altamente subsidiados. Pergunte a algum produtor de vacas e ovelhas se continuavam a fazer pecuária se acabasse o subsídio. O nosso sistema alimentar está todo altamente viciado porque a comida é muito subsidiada.”
“A culpa nunca está do lado do produtor, que tenta fazer o melhor com as ferramentas que tem”, reforça António Coelho. “A questão é que grande parte dos apoios são atribuídos limitando os produtores, seja de gado ou de outro sistema alimentar, a fazê-lo de uma forma que melhore o sistema da sua propriedade.”
Um dos aspectos a ter em conta nos financiamentos é considerar que modelos de agricultura estão a reter água em vez de a gastar.
É também sobre esta questão que nos fala Joana Paulo, investigadora do Instituto Superior de Agronomia. “A solução seria criar uma medida que não fosse fechada numa caixa”, explica-nos a investigadora envolvida em projetos europeus sobre agrofloresta e membro da EURAF, “porque não há receitas universais, ainda para mais num país tão diverso, com geografias tão diferentes. As políticas devem dar directrizes concretas mas amplas e visionárias a longo prazo. Pensando na biodiversidade e nas alterações climáticas, o que se quer é sistemas mais complexos do que os da agricultura intensiva.”
Para isso, Joana Paulo entende que não se deve criar um apoio específico para a agrofloresta de sucessão, mas sim “desbloqueando um bocadinho os sistemas (burocráticos). Há pessoas que querem fazer coisas diferentes e não podem”. Em Portugal, as decisões são do Ministério da Agricultura e criam algumas limitações.
A primeira diz respeito às espécies, muitas delas não passam nas linhas de financiamento do IFAP (Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas) no apoio à instalação de sistemas agroflorestais. “É uma medida que parece boa, só que está completamente formatada”, diz-nos esta engenheira florestal. Todas as espécies “vão ao encontro do que já existe”, sendo elas o montado (como principal), os soutos (onde se produz essencialmente castanheiros) e os lameiros (pastos naturais delimitados por árvores).
Há ainda um “outro problema”, refere Joana Paulo: “esta medida compete com a florestação de terras agrícolas, uma das medidas onde Portugal investiu. No Alentejo foi uma área imensa.” Como qualquer investimento florestal tem um período de retorno muito grande, compensavam os proprietários. “Há uns anos davam compensações durante vinte anos, agora a compensação é durante dez anos. Na agrofloresta só tem período de compensação de cinco anos, porque tem atividade agrícola, por isso as pessoas preferem a outra”, esclarece.
Por outro lado, há também um mecanismo relacionado com a emissão de CO2 que se está a desenvolver cada vez mais. É preciso não esquecer que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, como disse Mark Fisher. Provavelmente aquilo que fará o mundo ficar com mais árvores é o facto daquilo que elas absorvem, o dióxido de carbono, ter hoje em dia um valor comercial.
Entre todos os benefícios que se possam apontar ao sistema de agrofloresta, aquele que pode ser mais cativante para uma ação política e económica mais rápidas é o seu papel no mercado do carbono. Hoje em dia tornou-se um negócio que implica até intermediários que consultam os espaços onde podem pagar medidas de compensação, como foi o caso da Herdade do Freixo do Meio no dia em que o Setenta e Quatro a visitou. Para os agricultores, pode ser uma vantagem e uma forma de ultrapassar as burocracias que os apoios institucionais implicam.
Tal como no setor da energia, a agricultura também tem possibilidades de iniciar uma fase de transição. Sendo uma atividade altamente subsidiada, encarar sistemas mais complexos é uma mais-valia em vários aspetos: adaptação às altas temperaturas, regeneração dos solos, produção variada de alimentos, desenvolvimento local, proteção dos incêndios, promoção do ciclo da chuva.
São várias as instituições filantrópicas que já entenderam isso e que têm abertura para financiar diferentes projetos - e são estas que vão à frente no apoio a quem avança com este tipo de agricultura. O que lhes interessa é ver o resultado.
As alterações climáticas são uma realidade que preocupa muitos decisores, mas chegar ao nível do solo, que é a base de tudo, tem sido um caminho lento. Um dos aspectos a ter em conta é considerar que modelos de agricultura estão a reter água em vez de a gastar. Como diz Alfredo Sendim, “as árvores são os únicos seres que de uma forma eficiente transformam a luz em matéria, são o motor de tudo isto, o resto são ferramentas. Devíamos tirar todos os recursos que precisamos da natureza essencialmente das árvores”.
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