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Dalila Cerejo: "O corpo das mulheres é uma arma e querem fazer delas vítimas da reprodução”

A investigadora que trabalhou no primeiro inquérito à violência de género em Portugal, em 2007, identifica os exemplos de misoginia e descriminação que permanecem na atual sociedade portuguesa e que se mostram transversais, quer na Europa quer na América Latina. Da desigualdade salarial ao referendo que permitiu o direito ao aborto, os alertas "ouvem-se hoje, mais do que nunca".

Entrevista
6 Março 2024

A preparação para a comemoração do 8 de Março já se faz sentir no país. Os cartazes que marcam local e hora das concentrações do Dia Internacional da Mulher já se cruzam. Dividem as ‘atenções’ com as arruadas e grandes debates dos partidos para as eleições legislativas. Os direitos das mulheres estão no centro do debate. Volvidas cinco décadas de decisões democráticas, e mais de uma centena desde a primeira vez que se comemorou o dia da(s) mulhere(s), surgem hoje novos alertas e, tal como Dalila Cerejo descreve em entrevista ao Setenta e Quatro, ouvem-se em uníssono. 

A investigadora do Observatório Nacional de Violência e Género/CICSNOVA, NOVA FCSH, trabalhou no primeiro inquérito à violência de género em Portugal, em 2007, e tem-se focado neste fenómeno. Nestes últimos dez anos, garante não ter havido uma descida consistente deste tipo de violência. “Qualquer pessoa que olhe para os indicadores da igualdade de género pensará o mesmo: continuamos a ser uma sociedade altamente patriarcal”, afirma. 

Da desigualdade salarial ao referendo que permitiu o direito ao aborto, Dalila Cerejo elucida vários exemplos de misoginia e descriminação - subtis - que permanecem na atual sociedade portuguesa e que se mostram tranversais, quer na Europa quer na América Latina. Já numa análise geral dos programas eleitorais dos partidos políticos, não deixa de reconhecer as grandes disparidades: à direita medidas que tendem a ser disfarçadas com um cunho de implementação quando já existem ou, por sua vez, medidas “vazias” e até violentas no que toca à reivindicação dos direitos das mulheres.

"Não quero falar numa naturalização, mas há, sem dúvida, um branqueamento de muitas violências onde as mulheres ainda continuam a ser as suas maiores vítimas e a quem ainda não prestamos atenção suficiente. Aliás, a literatura científica internacional e nacional mostra claramente que em tempos de crise, as mulheres estão à cabeça como as suas principais vítimas", continua Dalila Cerejo. 

DEPENDEMOS DE QUEM NOS LÊ. CONTRIBUI AQUI.

No que diz respeito aos partidos alinhados mais à esquerda, reconhece que as suas preocupações revelam concessões relativamente sólidas, no entanto, “é fundamental pensar na agenda feminista como uma luta interseccional”, o que, “apesar de não parecer novidade no tempo em que vivemos, tende a ser consecutivamente branqueado, para não dizer esquecido”, salienta a investigadora. 

Passaram cerca de 50 anos do 25 de Abril e pouco antes dessa comemoração passaremos por novas eleições legislativas. Foram vários os discursos nos últimos meses que trouxeram os direitos das mulheres ao cerne das atenções políticas e sociais. Olhando para as conquistas e os receios, que análise podemos fazer?

As mudanças para Portugal e para as mulheres, 50 anos depois do 25 de Abril, ainda espoletam frustrações, mesmo numa perspetiva de maior aprofundamento. As mudanças do 25 de Abril tiveram recuos. Não é que se sinta que o 25 de Abril não se tenha concretizado, porque houve grandes conquistas e o roteiro histórico que vimos definido até então demonstra-nos isso.

"Por mais movimentos backlash que venham e por mais vozes que de forma insidiosa e perniciosa nos remetam para questões como a “ideologia de género”, não nos esqueçamos, que é fundamental ensinar enquanto ainda vamos a tempo para a igualdade e para a não discriminação." 

Quando se dá vazão a determinadas mensagens que não têm que ver com a igualdade, isso permite à sociedade dizer 'se eles dizem...', há uma naturalização. Mas há um longo caminho pela frente, em termos de educação. Há uma coisa que enquanto sociedade é impensável abdicarmos. Por mais movimentos backlash que venham e por mais vozes que de forma insidiosa e perniciosa nos remetam para questões como a “ideologia de género”, não nos esqueçamos, que é fundamental ensinar enquanto ainda vamos a tempo para a igualdade e para a não discriminação. Nenhuma sociedade desigual ou discriminatória é uma sociedade totalmente democrática. É impossível, porque isso significa que, na sua génese, não temos as mesmas oportunidades. Nenhuma sociedade democrática o é se não estimar e se não fizer com que as suas crenças respeitem a igualdade, se pautem pela igualdade, pela cidadania e pelo direito à diferença. E isto é claríssimo. Não vale a pena vir com discursos de desconhecimento. Mandam-se alguns chavões, alguns lugares comuns, sem significado, sem sentido e sem um mínimo de responsabilidade social. 

Falou em particular da violência.  Entre janeiro e dezembro de 2023, 22 pessoas foram assassinadas, entre elas 17 mulheres, segundo a Procuradoria da República. Já os dados recolhidos pela OMA e pela UMAR, em novembro de 2023, falavam-nos em 25 mulheres assassinadas em Portugal, dos quais 15 femicídios. Como olha para estes números e esta pequena disparidade entre eles?

Esta questão apresenta dois níveis. Primeiro, é importante perceber que  Portugal só  considera o termo femicídio do ponto de vista conceptual, ou seja, nos termos académicos ou científicos. Comecemos por perceber o que é. O feminicídio é o homicídio de mulheres simplesmente pelo facto de serem mulheres e, normalmente, são consequência de uma trajetória de violência doméstica. Se olharmos apenas para os números que refere,  estamos a falar de cenários ou casos de feminicídio que demonstram uma perspetiva evolutiva. Isto significa que apesar de algumas oscilações anuais, é irrelevante andarmos a discutir se baixam de um ano para o outro ou se sobem ligeiramente. No que temos que nos concentrar, com toda a certeza, é que não estamos a conseguir baixá-los. Não numa análise temporária ou de um ano para outro, mas de uma forma consistente. Isto já se verifica há décadas. Da mesma forma que não estamos a conseguir baixar os números da violência doméstica, particularmente no contexto de intimidade. E falamos disto regendo-nos apenas pelos dados das estatísticas oficiais, que na verdade são a ponta do iceberg. Nós sabemos. A ciência sabe, a academia sabe. O Observatório Nacional de Violência de Género, que faz parte do Centro Interdisciplinar em Ciências Sociais - o CICS NOVA - há décadas que demonstra que há uma parte muito significativa das cifras negras, maioritariamente mulheres, que são vítimas de violência doméstica. Não conseguem romper com o ciclo da vergonha, do medo, da culpa, não fazem queixa. E, portanto, as denúncias consistentemente também não baixam. Há oscilações de um ano para o outro. No período da covid-19, por exemplo, houve um decréscimo das queixas às entidades, mas é importante perceber que isso tem que ver com o fenómeno particular do confinamento. 

Também é importante dizer que às vezes gosta de se vender a ideia de que a rede ou o sistema de proteção não funciona, mas não é verdade. Porque só falamos dele quando não funciona bem. E basta  um homicídio de uma mulher para questionarmos o sistema. A questão é que, infelizmente, por cada mulher que nós - porque nós somos o sistema - deixamos escapar nas suas malhas, há uma série de outras mulheres que também são salvas e isso também é importante. Quando uma mulher é vítima neste contexto, o sistema ou a rede nacional e, portanto, toda a interoperabilidade de todas as esferas judiciárias, policiais, sociais, e a forma como trabalham em conjunto tem que ser questionada. Até mesmo outras esferas que são importantes como: profissionais de saúde ou educação, por exemplo. 

Há pouco falou de uma análise que considerava importante: o número de casos no contexto do confinamento. 

Em Portugal, ainda que não em todos os governos, mas em termos de políticas públicas, as entidades já perceberam que há um conhecimento incontornável: o conhecimento da ciência em relação às questões de violência de género. E tenta sempre que possível - quando montam equipas de combate para delinear as estratégias nacionais e municipais - reunir-se um conjunto de peritos e peritas que conheçam bem os meandros deste tipo de violência. No período de confinamento tornou-se logo muito claro, para toda a gente  envolvida de alguma forma nestas questões de violência de género,  que este período acentuaria o risco. O governo foi particularmente ativo, nomeadamente através da CIG [Comissão para a Igualdade de Género], ao lançar campanhas de SMS anónimo, para dar ferramentas às mulheres e às vítimas em geral. Eu digo mulheres porque, esmagadoramente, são as maiores vítimas de violência. Sabemo-lo por estatísticas oficiais e pelos inquéritos à prevalência nacionais e internacionais. Perguntar-me-á, eventualmente, se há homens vítimas de violência doméstica ou violência no contexto de intimidade? Certamente. Mas convém não confundir a árvore com a floresta. 

A nossa equipa do Observatório ganhou um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia para perceber o que estava a acontecer e o que se entendeu foi que a violência contra as mulheres não só aumentou a partir do período de confinamento, como a sua severidade aumentou. É bom não esquecer que quando as pessoas vítimas vão à PSP ou GNR fazer queixa é preenchido aquilo que se chama a ficha de avaliação de risco e um dos indicadores de avaliação é perceber se em relação à sua perceção enquanto vítima de violência, no último mês, a violência exercida tem estado a ser mais frequente e mais intensa ou mais severa. As coisas interligaram-se. Neste contexto a dificuldade de fazer uma denúncia tornava-se ainda maior, daí os números baixarem.

Há também aqui um outro factor: provavelmente as pessoas puseram a sua segurança sanitária acima deste outro nível de segurança. Os números, as estatísticas oficiais são boas para termos uma visão iniciática do fenómeno, mas não são suficientes para nos ajudar a explicar. 

Recentemente, numa conferência feita pelo Público que se debruçava em “Ser mulher em liberdade” uma das críticas feitas num dos discursos advém exatamente na questão de uma não representação plena, objetiva e estatística que permita identificar a experiência de vida das mulheres a quem a desconhece ou não a quer conhecer. Concorda? Como é que conciliamos tudo isto? 

Temos muita coisa produzida. Dizer que não existem é um bocadinho falacioso. Desde 1995 que conhecemos a dimensão macrossocial e sociológica do fenómeno da violência contra as mulheres, muito antes da violência doméstica ser crime público. Hoje em dia é muito fácil ouvir dizer que o foco da violência, ou lugar onde estão mais expostas à violência é na própria casa. Ainda bem que essa ideia se concretizou, até porque ela é, infelizmente, importante do ponto de vista do nosso processo cognitivo de segurança. Não devia ser assim, mas é um outro fardo para as mulheres delegarem-nos a nossa própria segurança, quando  não devíamos de ser nós as próprias responsáveis por incorporar todas estes meandros de nos manter a salvo, com todo este registo patriarcal, de dominação, subjugação e subalternidade das mulheres.

"Muitas destas mulheres morrem numa situação em que o sistema poderia ter atuado de forma mais profícua para as proteger."

Portanto, de onde é que vem esse conhecimento que agora é um conhecimento corriqueiro? Vem do primeiro estudo nacional da Universidade Nova de Lisboa, em 1995, coordenado pelo professor Manuel Lisboa e pela ex-Secretária de Estado Elza Pais (que com todo o seu conhecimento académico também foi capaz de o transportar para aquilo que depois foi a pasta que assumiu, a Secretaria De Estado da Igualdade), e aí percebeu-se que o foco de exposição de violência perpetrada era na própria casa, porque as mulheres eram vítimas de violência no contexto intimidade: violência física, sexual e psicológica. Aí, foi uma pedrada no charco. Foi quando se percebeu que o perigo não estava na rua ou nos desconhecidos, como se achava até então. Este foi, de alguma forma, um primeiro momento académico que permitiu dizer às entidades políticas 'atenção, que há aqui um problema de segurança das mulheres, e ele reside em grande parte no contexto da intimidade’. E depois houve uma série de estudos que se seguiram. 

O estudo nacional de prevalência, em 2007, já considerava a violência de género. Tentou-se perceber o contexto de violência ou a tipologia de violência a que homens e mulheres estavam expostos. A mesma equipa fez um estudo nacional, estatisticamente representativo, e percebeu que, do ponto de vista de vitimação geral, houve um decréscimo em relação à violência contra as mulheres desde 1995, que era o primeiro e único estudo que tinhamos no contexto de vitimação geral. Mas, se olharmos depois para a vitimação que tinha que ver com a violência praticada no espaço da casa e no contexto da intimidade, ela mantinha-se igual. Seguiu-se o estudo sobre o confinamento, como referi anteriormente, que também perguntava às mulheres se foram vítimas de algum dos tipos de violência no passado. 

Portanto, de alguma forma, temos uma amostra estatisticamente representativa. Temos a mesma coisa em relação às questões da desigualdade. Temos os manuais do conhecimento integrados sobre as questões do tráfico sexual, a exploração sexual, as questões das desigualdades no mercado de trabalho. Temos entidades que produzem esses dados. É importante não esquecer que a CIG , no que se trata de dados oficiais, tem agora  muitos indicadores que têm que ver com estas questões da desigualdade. Temos os Índices da Desigualdade, temos os Eurostat, os estudos Eurobarómetros. Na verdade, temos conhecimento de indicadores suficientes para nos dar um bom panorama do ponto de vista das desigualdades que têm que ver com género.

Mas são suficientes? 

Ainda não. Até porque —- e isto penso que é um erro — às vezes trabalhamos  isoladamente, ou seja, não há um esforço para haver a integração. Temos conhecimento, mas, por vezes, é isolado. Seria bom haver uma forma de reunir todo este conhecimento académico. Por exemplo, os técnicos de apoio às vítimas são pessoas que encerram em si mesmos um manancial de informação enorme. Se nos perguntarmos de um ponto de vista microconceptual, sabem exatamente relatar quais são as dimensões que condicionam a denúncia deste tipo de crime.

Há também estudos microssociológicos sobre o que faz as mulheres não denunciarem...

Sim, aliás a minha tese de doutoramento foi sobre algo a que não damos muita atenção. As emoções e a socialização feminina das emoções, em conluio com outros aspetos, fazem com que não seja fácil à mulher denunciar que é vítima de um crime no contexto da sua intimidade. São aspetos tão finos, tão pequeninos da nossa existência que achamos que não contribuem para nada. Isso também é uma falácia do patriarcado. Fazer-nos crer que algumas questões são escritas em pedra e têm que ver com a nossa identidade.  Não é verdade. E essa é a dimensão perniciosa do modelo patriarcal: o que está lá ou que nasce conosco não se questiona. Nada nasce connosco. E tudo tem que se questionar. Pouquíssimas coisas na nossa essência, que é fundamentalmente social, estão escritas em pedra. Pouquíssimas coisas, para não dizer nenhuma, são imutáveis. Tudo o que é construído, tudo o que é socializado em todos os indivíduos, tem que ver com uma série de dimensões. Desde logo as relações de poder. 

Sabemos que ainda hoje as relações de poder entre masculino e feminino — e não digo homens e mulheres porque têm muito que ver com os ideais normativos dos papéis de género — são ainda dimensões altamente assimétricas. Estamos a falar da violência, podíamos olhar para as questões das desigualdades do gender pay gap, da conciliação da vida pessoal e vida profissional, que está a ser levantada novamente com esta irrealidade do teletrabalho, e aí sabemos como a décalage ainda continua a subalternizar e a punir as mulheres. Há muito conhecimento, talvez nós é que não consigamos torná-lo uníssono, no  sentido de organizar melhor o que sabemos. Não adianta a academia ou a ciência trabalharem se depois o conhecimento científico não sai das quatro paredes da universidade e não chega a quem precisa, às pessoas, às vítimas de desigualdades de género. É fundamental um poder político que alerte para essas desigualdades. Obviamente que nem todo o espectro político olha da mesma forma para estas questões das desigualdades de género.

"Isto também é uma falácia do patriarcado. Fazer-nos crer que algumas questões são escritas em pedra e têm que ver com a nossa identidade.  Não é verdade. E essa é a dimensão perniciosa do modelo patriarcal: o que está lá ou que nasce conosco não se questiona."

​​Há uma consciência colectiva e societal muito mais desperta para estas questões do que havia há mais de uma ou duas décadas. Exemplo disso é o alarde social que criou aquele acórdão do juiz Neto Moura que  causou uma repulsa muito grande, em várias dimensões da sociedade. Mas há uma série de outras dimensões de violência. Por exemplo, uma violência  muito corriqueira e que não falamos dela e o programa do Bloco de Esquerda é o único que fala especificamente sobre ela: a violência obstétrica. Não quero falar em naturalização, mas há aqui uma série de desviar dos olhares em relação a este tipo de violência de género. A violência no contexto da intimidade, apesar da dimensão grotesca, levamo-la ainda de forma algo leviana.  

Não quero falar numa naturalização, mas há, sem dúvida, um branqueamento de muitas violências onde as mulheres ainda continuam a ser as suas maiores vítimas e a quem ainda não prestamos atenção suficiente. Aliás, a literatura científica internacional e nacional mostra claramente que  em tempos de crise — crise social, económica,  contexto de guerra — as mulheres estão à cabeça como as suas principais vítimas. Estes exemplos existem desde a pré-história. Sabemos que a violação das mulheres sempre foi usada como arma de guerra. Continua a sê-lo. Olhemos para o que acontece na Ucrânia, Palestina e Israel. Digamos que há aqui um roteiro histórico da subalternização do uso do corpo de mulher como arma do regime patriarcal que em pleno século XXI continua, quase que diria, inamovível desde há milhares de anos. Isto tem de nos fazer refletir.

Ao longo do século XX, o movimento feminista concentrou-se muito nas alterações legislativas. Mudanças que efetivamente fizessem ou produzissem efeito. Mas hoje o foco tem que ver com as mudanças de comportamentos, porque as leis já existem. 

O processo legislativo foi fundamental. Vamos recuar ao ponto de alerta de 1995, o primeiro estudo nacional sobre violência contra as mulheres. Foi fundamental perceber que era um problema social gravíssimo. Portugal não era o único país nesse estado. Às vezes falamos só do contexto português, mas na questão da violência de género, Portugal é muito ativo nas instâncias europeias. 

Aliás, é visto como exemplo do progresso do que foi feito nas últimas três décadas do ponto de vista do avanço das questões da igualdade de género e do combate à violência de género. O contexto legislativo foi fundamental, pois sem ele não teríamos a  violência doméstica como crime público. Isso faz toda a diferença. O processo de intimidação, o medo das represálias do agressor - porque lhe continua a ser dado lastro que assim o consiga fazer - continua a imprimir-se sobre a vítima e, na altura, o que fazia era com que a vítima recusasse em relação à queixa; o estatuto da vítima; o reconhecimento de que as crianças são vítimas diretas da violência. Tudo isto era uma coisa que nós, com os estudos que fazíamos, dizíamos há imenso tempo: os filhos, na esmagadora maioria dos estudos quantitativos e qualitativos, que assistiam às agressões eram também em 82% dos casos vítimas diretas da violência. Felizmente agora também há esse reconhecimento. Portanto, este foi o primeiro momento em que o legislador emitiu um sinal para a sociedade dizendo: ‘isto não é tolerável e o ponto de vista legal de punir será introduzido nas leis no Código Penal’. Isso passa um sinal fortíssimo à sociedade. 

Depois, a mudança de mentalidades. Defendo que qualquer pessoa que olhe para os indicadores da igualdade de género pensa o mesmo: continuamos a ser uma sociedade altamente patriarcal. Vemo-lo a cada esquina. As mulheres ainda vivem uma dificuldade imensa para chegarem ao topo, quer nas empresas, quer na política. O PS, com quase 51 anos de história, nunca teve uma mulher secretária-geral. O PSD, que contabiliza uma elevada quantidade de presidentes desde a sua fundação, teve apenas Manuela Ferreira Leite como líder, já Assunção Cristas presidiu ao CDS entre 2016 e 2020. O BE teve Catarina Martins a assumir a coordenação em conjunto com João Semedo entre 2012 e 2014, altura em que assumiu sozinha o cargo. Sucedeu-lhe Mariana Mortágua, em maio de 2023. O PCP nunca teve uma secretária-geral nos seus 100 anos de história. Inês Sousa Real foi eleita em 2021 líder do PAN.     

É importante perceber ainda que as mulheres estão maioritariamente subrepresentadas nas posições de topo. É óbvio que não terão tanta capacidade de fazer determinadas reivindicações ou de serem ouvidas ao denunciar certas questões. Onde há falta de representação ao nível do poder, há sempre uma menor capacidade de chamar a atenção para determinados fenómenos. E quando o poder é desafiado? Quando o poder é desafiado reage na onda da culpabilização. Não deveria ser assim, fossem homens ou mulheres. Repare no desporto, sobretudo, nas posições de liderança, qual é a representação das mulheres? Quantas mulheres são líderes das federações de futebol nacionais e internacionais? A população mais ou menos representada é sempre aquela que está mais exposta a estas situações de assédio, desigualdades e violências.

"Não adianta a academia ou a ciência trabalharem se depois o conhecimento científico não sai das quatro paredes da universidade e não chega a quem precisa, às pessoas, às vítimas de desigualdades de género."

Numa análise mais macrossocial, olhamos para os indicadores da igualdade de género e as mulheres auferem uma diferença salarial, nalguns dos casos de 17% entre homens e mulheres. Aqui está, de facto, o grande desafio. E é um desafio difícil. Como sabemos que não estamos a ir num bom caminho? Olhemos para as estatísticas oficiais e estudos sobre as questões da violência no namoro, nos jovens dos 14/15 anos. A forma como eles naturalizam os comportamentos de vigilância uns dos outros, de controlo do telemóvel, do controlo das sociabilidades, a forma como naturalizam determinados atos de violência física, tudo isso é altamente preocupante, porque tem que ver com a naturalização de comportamentos que são comportamentos de controlo social, de dominação como a questão do ciúme, por exemplo. Se analisarmos os estudos de prevalência à violência de género e se perguntar às próprias vítimas porque acham que são vítimas de um tipo destes crimes na intimidade, o ciúme vem logo à cabeça. 

Apesar de haver mecanismos legais, como a lei 152, artigo 30º, que permite o afastamento do agressor da residência comum em vez do afastamento da vítima, revitimizando-a, fazendo-a deixar tudo para trás. Já o agressor continua a sua vida, naquele espaço da casa. Mas a verdade é que a lei tem mecanismos de afastamento do agressor dentro e fora de flagrante delito. O que é preciso para isso ser posto em prática? Que entidades como as forças de segurança tenham a formação necessária para saberem trabalhar com este tipo de crime. Deveríamos ter, por lei, um agente formado em atendimento especializado à vítima de violência doméstica e uma sala. Não temos. E tudo isso condiciona no momento da denúncia. 

Depois há uma outra dimensão: os tribunais. Volta e meia somos confrontadas com acórdãos absolutamente absurdos. Há pouco tempo uma juíza recomendou o marido levar a mulher a jantar fora, num contexto de violência doméstica. Isto não é o que diz a lei. Agora, a lei tem os seus intérpretes. A lei por si só, não faz nada, não atua. Quem atua são as pessoas que Interpretam a lei e que depois a fazem cumprir ou não. Se andamos a fazer recomendações quase conjugais quando estamos a julgar casos de violência doméstica e não enquanto juízes nem juízas, somos terapeutas conjugais. Então a lei é letra morta. É bom não esquecer que no contexto judicial, da tipologia de crimes perpetrados contra as pessoas, a violência doméstica é aquela que tem maior expressão quantitativa. Deveria ter de um ponto de vista das entidades judiciais um olhar não punitivo, porque não acredito que a solução esteja em aumentar tempos de execução de pena, mas a solução definitivamente também não está em branquear e em desculpabilizar o comportamento do agressor, porque isso passa um sinal completamente errado. A forma como os media reportam os casos de homicídio de mulheres, Às vezes  é uma coisa quase que idílica – 'Um homem que mata num episódio de paixão e de loucura de ciúmes' – branqueia-se o facto de ser um homicídio num contexto de violência doméstica, na maior parte dos casos, a vítima fica sem uma história. 

É interessante ver que muitas vezes os femicídios/feminicídios acontecem quando há uma rutura, quando as mulheres conseguem arranjar força, energia e apoio para pedir ajuda e, normalmente, seguem-se do suicídio do agressor. Do ponto de vista académico tem-se tentado estudar o que está aqui em articulação e é algo que é transversal ao contexto de violência na intimidade:  o controlo social e o controlo total do corpo de uma pessoa sobre o outro, ou seja, quando eu enquanto homicida faço desaparecer o meu objeto de domínio, a partir do momento que ele desaparece, já não há razão para a minha existência. A partir do momento em que o meu objeto de dominação deixa de existir, quase que se esvazia a identidade do agressor. Isto tem que ver com algo sócio- histórico ou de sociogender que o género explica, que é a regulamentação do controlo do regime patriarcal assim como todo o sistema capitalista. O livro da Sílvia Fredericci explica-nos muito bem que até para o próprio florescimento do sistema capitalista foi fundamental o controlo e o domínio do corpo da mulher. Ela explica que o controlo do corpo da mulher é fundamental, até para garantir que ela continua a gerar peças, a alimentar um sistema capitalista com filhos. Esta dimensão do controlo e do domínio que o sistema patriarcal sempre teve e ainda tem sobre o corpo da mulher, que é absolutamente regulamentado, é algo que as gerações mais jovens se tinham esquecido, a minha em parte, mas que começamos agora a perceber que, afinal são questões que ainda persistem. 

A consagração do direito ao aborto, assim como o seu referendo, tem sido posta em causa e retomou discussão por algumas dos partidos candidatos às legislativas. Em simultâneo, presenciamos em outras coordenadas a inserção do direito ao aborto na Constituição Francesa, o primeiro país a fazê-lo no mundo. 

 Um contexto de globalização não é só sobre bens e mercadorias, mas também de ideias e ideologias. O cavalgar destes movimentos de direita, alguns deles mais extremistas, e que começaram a descer do centro da Europa, como a extrema-direita em França e o Vox em Espanha, o caso português não seria obviamente imune ao recrudescer dessas forças de uma Direita Radical.

A direita radical sempre existiu na Europa, o que nunca aconteceu foi ser tão populista e demagoga. Isso agrava o contexto, porque essa demagogia viaja mais rápido hoje com as redes sociais. E depois temos outra coisa a que estamos expostos, sobretudo as nossas gerações mais jovens que ainda estão a desenvolver a sua capacidade crítica e não questionam tão facilmente aquilo que lhes é vendido, ou seja, estas ideologias populistas vendem bem as fake news. Nesse sentido, os mais jovens têm mais dificuldade em fazer a triagem ou em comparar fontes. Temos o caso da Polónia e da Húngria, onde já tinha existido retrocessos nos governos. O importante a perceber é que as forças de direita, nomeadamente, a direita radical, nunca foram amigas dos direitos das mulheres. De uma forma lata nunca o foram dos direitos humanos. No referendo à actual lei do aborto, apesar da força do maior partido de direita ter dado liberdade de voto, sabemos que a maior parte dos seus militantes não votou propriamente alinhado com a despenalização do aborto. Portanto, há aqui esta questão que tem muito que ver com as ideologias dos partidos. 

Olhemos para os programas políticos. 

É importante olhar-se com atenção para aquilo que é o programa eleitoral da AD, por exemplo. Fala especificamente em violência doméstica e de género, mas se olharmos com atenção para as medidas que propõem, percebemos que há uma grande confusão. Muitas destas medidas são vagas, imprecisas na forma como se vão traduzir do ponto de vista do impacto real na vida das pessoas, outras são medidas que estão lá cunhadas, mas que já existem, ou seja, já estão atualmente a ser implementadas. Diria que ali há algum desgoverno do ponto de vista de pensar estas questões do género e da igualdade. E há um outro nível, os direitos das minorias em particular, por exemplo, as pessoas LGBTQIA+. Não há uma referência no programa da AD em relação a estas questões ou em relação às questões da não discriminação. 

Já no programa do BE vemos claramente as questões étnico-raciais dos  aspectos específicos da violência que as mulheres sofrem. Vemos também no programa do PS uma concessão relativamente sólida até porque, numa leitura académica, os governos socialistas têm estado numa posição de charneira do ponto de vista do avanço das questões da igualdade - do ponto de vista europeu isso também é reconhecido, não é exclusivo em Portugal.

Mas no programa do PS é possível ver uma preocupação com as questões das minorias, da diferença e da não discriminação. No programa da AD isso está completamente omisso. 

O líder do Chega já deixou sair algumas frases como ser normal haver uma discrepância entre homens e mulheres. Sabemos quais são as suas posições em relação ao aborto, e não será necessário revisitá-las no programa eleitoral. Em debate,  André Ventura afirmou que o Chega tinha medidas muito concretas para combater a violência doméstica. Eram de tal forma concretas que vão contra o pensamento feminista: passam por aumentar as penas (quando sabemos que isso não resolve o problema) e aumentar o número de casas abrigo, o que é ainda mais gritante. Na sua teoria, vamos aumentar ainda mais as casas abrigo para continuar a revitimizar as mulheres alvos de violência doméstica. Além do desconhecimento, estes programas mostram uma falta de reflexão sobre estas questões.

“As forças de direita, nomeadamente, a direita radical, nunca foram amigas dos direitos das mulheres."

No caso das declarações do dirigente do CDS, coligado com a AD, devo dizer que são perigosas. É precisamente assim que se começa a minar o pensamento das pessoas. Uma coisa que parece que é dita, mas que depois é fora de contexto e que não faz parte do programa. É precisamente assim que se começam a questionar os direitos, neste caso, especificamente, no direito ao aborto. Temo que isto seja um sinal, não tão pequeno, de um retrocesso que possa estar aí à porta. Se os eleitores e os eleitoras decidirem por um bloco de direita, quer seja uma direita de arranjos partidários ou apenas com a AD, eu temo que este seja um sinal que faça nascer ou faça crescer, com outra força, o questionamento de direitos que outros países, quase vizinhos já cunharam na sua Constituição. O direito à mulher decidir algo que tenha que ver com o seu corpo. Repito: os regimes patriarcais sempre fizeram questão de retirar esse livre arbítrio à mulher. As coisas nesse ponto de vista não irão mudar muito e temo que haja um retrocesso. Também acho que o povo português, as portuguesas e os portugueses, têm maturidade cívica de cidadania e sobretudo alguns deles têm uma memória de um regime ditatorial, fascista, punitivo, de não permitir liberdades, às vezes nem de pensamento, e não o quererá repetir. Esta liberdade do direito à escolha do que fazer com o nosso corpo é uma liberdade que  há muito que deveria ter seguido o exemplo de França, mas à qual devemos estar muito atentos e muito atentas.

Por exemplo, na Argentina existe a ideia de criminalizar o aborto em toda a sua dimensão, até nos casos de violação. A pena efetiva também tem aqui uma dimensão extremamente megalómana. O governo de Javier Milei está a tentar uma reforma constitucional e um ataque às condições de vida que se baseia numa estratégia que vai além dos direitos humanos: um ajustamento feroz, o pior da história, agravando a inflação pela liberalização de preços, congelando salários e começando a cancelar compulsivamente programas sociais, especialmente aqueles recebidos pelas mulheres na economia popular. Tudo se completa agora com a implementação de um protocolo repressivo. 

Todas estas questões não estão desligadas de outros processos sociais e demográficos. Voltando ao caso europeu, a Europa está num processo de envelhecimento gravíssimo e isso também não pode estar fora da equação quando pensamos nestas questões dos direitos das mulheres. Ao tentar reequilibrar com outras variáveis, por exemplo, a imigração, já se percebeu que isso pode não ser suficiente. Então, agora, o objetivo é fazer com que as mulheres regressem ao seu papel tradicional e normativo de mães. Isso é muito claro. Onde é que a direita aposta de alguma forma a resolução desta questão? É vaticinar novamente o destino das mulheres ao seu papel tradicional como, aliás, muitas vezes está subjacente ou implícito em alguns discursos. E isso também não é displicente quando refletimos sobre estas questões. E daí volto novamente à questão do como, do ponto de vista da pujança do sistema e do sistema capitalista, o corpo da mulher é uma arma e as mulheres acabam por ser vítimas precisamente dessa sua capacidade de reprodução.