Licenciada em Engenharia Informática e de Computadores pelo Instituto Superior Técnico. Foi uma das co-autoras do podcast Eu Não Sou Tua Mãe. Emigrante em Bruxelas, feminista e progressista.

Rubiales é o espelho de um sistema sexista que começa a rachar

Em que mundo vivem Luis Rubiales e a federação espanhola de futebol para acharem que o rol de tentativas de manipulação, falsas desculpas e mentiras podia pegar? Como se sentem protegidos ao ponto de mentir sobre um assédio visto por milhões de pessoas?

Ensaio
31 Agosto 2023

A seleção nacional espanhola ganhou o Mundial de futebol feminino pela primeira vez. Devíamos estar a falar do extraordinário feito das campeãs mundiais, a discutir os seus momentos mais inspiradores, a assistir às condecorações a que os seus congéneres masculinos costumam ter direito. No entanto, a arrogância de um ex-jogador medíocre e atual presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, fez com que, em vez disso, todos os olhos se virassem para si e para o grosseiro assédio que cometeu contra uma das campeãs, Jennifer Hermoso.

Para quem tenha andado mais distraído nas últimas semanas, o que se passou foi simples: Rubiales agarrou a cabeça de Hermoso com as duas mão e beijou a jogadora contra a sua vontade, durante os festejos do título. Esse gesto foi transmitido ao vivo para milhões de pessoas, filmado, fotografado… Dificilmente poderia ter sido mais flagrante.

Um gesto tão óbvio de assédio sexual teria, idealmente, uma resolução igualmente clara: a demissão imediata do sujeito, condenação pública clara por todos os órgãos nacionais e internacionais relevantes, um pedido de desculpas à jogadora, investigação por parte do Ministério Público espanhol, etc. Mas, num mundo de sexismo estrutural, nada é tão simples quanto parece.

Dependemos de quem nos lê. Contribui aqui.

Luis Rubiales insistiu que o beijo foi consentido, que foram apenas “dois amigos a celebrar algo”, chamando “otários”, “idiotas” e “pessoas estúpidas” a quem exigia as devidas consequências para o seu assédio à jogadora. Para este tipo de homem, que se acha intocável pela posição que ocupa, as diferenças de poder não existem. Uma jogadora 23 anos mais nova cuja carreira tem o poder de acabar num segundo é uma “amiga”, e “amigos” espetam beijos uns nos outros como celebração (só nunca acontece com os “amigos” homens, vá-se lá saber porquê). Está tão habituado a não ouvir um “não” que acha que é o mesmo que ouvir um “sim” entusiástico.

Do alto da sua soberba, recusa demitir-se e assumiu o papel de vítima, dizendo ser alvo de uma perseguição, criticando o “falso feminismo” e pedindo apenas desculpa por um momento anterior, junto da rainha e da sua filha de 16 anos, quando agarrou os próprios genitais num gesto de “Ole, tus huevos”. Um autêntico cavalheiro.

Também a instituição que lidera correu a tentar lavar a imagem do seu presidente. O departamento de comunicação da RFEF chegou ao ponto de se fazer passar pela jogadora, ao escrever em seu nome uma declaração, em primeira pessoa, em que esta supostamente dizia que o beijo não teria passado de “um gesto mútuo completamente espontâneo devido à alegria imensa que dá ganhar um Mundial”. Palavras que Hermoso nunca disse. Tudo para desculpabilizar o assediador e tentar fazer parecer, de forma ilegal, que a jogadora desvalorizava o sucedido. O próprio Rubiales ter-lhe-á implorado que aparecesse com ele num vídeo para explicar a situação.

As tentativas de interferência da Federação não se ficam por aí. O seu secretário-geral, Andreu Camps, exigiu a intervenção da UEFA – mecanismo que regula o futebol europeu e do qual Rubiales é vice-presidente - junto do governo espanhol, que acusa de ingerência pelos repetidos apelos à demissão de Luis Rubiales por parte dos seus membros. A Federação ameaçou sair da UEFA caso esta não se posicionasse ao lado de Rubiales.

Do outro lado da barricada, Hermoso, que depois de alguns dias de silêncio recusa categoricamente que o beijo tenha sido consentido, afirma ter ficado em choque no momento da celebração e que, depois deste ter passado, se sentiu “vulnerável e uma vítima de um ato impulsivo, sexista e descabido sem qualquer consentimento” da sua parte, confirmando a continuada pressão a que tem sido sujeita por parte da RFEF e que se estende à sua família, amigos e colegas de equipa.

A campeã mundial e as outras futebolistas espanholas que coassinam o comunicado da jogadora exigindo tolerância zero para com estes comportamentos, que medidas exemplares sejam tomadas e recusam-se a voltar a aceitar uma convocatória da seleção se os atuais dirigentes da Federação se mantiverem nos cargos. Não se referem apenas a  Rubiales, mas também ao treinador Jorge Vilda, que durante este mundial apalpou o peito de uma das jogadoras, e que foi o único elemento da equipa técnica da seleção feminina que não se demitiu em solidariedade com as atletas.

Perante estas declarações, a reação da Federação foi de encontro ao padrão de assédio moral, mentira e sobranceria que tem caracterizado a sua atuação: prometeu agir legalmente contra Hermoso e as restantes atletas, acusando-a de mentir quando afirmou não ter tentado levantar Rubiales quando se abraçaram, segundos antes do beijo infame. Para fundamentar esta acusação, usou fotos que, supostamente, provavam que a jogadora o teria levantado.

Esqueceu-se a RFEF que não estamos perante um caso de “diz-que-disse” e que a descontextualização de imagens é uma tática quase infantil, quando se fala de um ato filmado e transmitido por canais de televisão de todo o mundo. Rapidamente as filmagens surgiram, mostrando a verdade: não só Hermoso não tentou levantar Rubiales, é mesmo este quem lhe salta para cima, usando o pescoço da jogadora como apoio.

A questão que fica no ar é: em que mundo vivem Rubiales e a federação para acharem que este rol de tentativas de manipulação, desculpas e mentiras podia pegar? Como é que se sentem protegidos ao ponto de mentir sobre algo que foi presenciado por milhões de pessoas? Como é que assediam moralmente uma jogadora, as suas colegas, família e amigos - depois de se tentarem fazer passar por ela - e contam com o seu silêncio? E, se esperavam que estas táticas tão óbvias pegassem agora… Quantas vezes já terão pegado antes?

Em Espanha, país da “la manada”, onde o Vox cresceu tanto também através da “denúncia” da “jihad feminista” e da “ideologia de género”, da defesa do “homem heterossexual” e de um bravado contra supostas “denúncias falsas” de violência doméstica, é quase natural que um homem, capaz de beijar uma mulher contra a sua vontade, ache que nada o impedirá de seguir a sua vida e de manter o seu cargo na mais absoluta impunidade.

O machismo estrutural tem garantido que o assédio sexual e os crimes contra as mulheres não só não têm consequências como também que a mera ilusão de que essas consequências podem vir a existir é suficiente para alimentar movimentos reacionários que demonizam o feminismo. Os que se deixam cativar pelos seus discursos acreditam que denúncias falsas de crimes sexuais ou violência doméstica são comuns (na verdade são menos de 2% das denúncias) e que são suficientes para destruir vidas de homens inocentes, apesar de nada indicar que tal seja verdade.

Esta inversão dos papéis de agressor e vítima é tão pervasiva que leva mulheres a colaborar na própria opressão e a defender o indefensável. Se a atitude da mãe de Rubiales, que se fechou numa igreja em greve de fome, e da sua prima, que apela a que Hermoso revele uma suposta “verdade” que inocentaria o homem que a beijou à força, poderia ser explicada pela proximidade familiar, o que dizer de quem acha que aquilo que a “histeria” em torno deste caso revela é que o futebol “não é um desporto para ser praticado por mulheres” e que compara o beijo de Iker Casillas, no Mundial 2010, à na altura namorada Sara Carbonero, ao assédio sofrido pela jogadora espanhola?

Outro lado do sexismo estrutural, talvez mais discreto, mas igualmente perigoso, é o tratamento do assédio sexual laboral como um assunto pessoal e não estrutural, como fez a Federação Portuguesa de Futebol ao desvalorizar o que se passou e insistir em manter a candidatura conjunta com Espanha à organização do Mundial 2030 – apesar de, como este caso deixa claro, os abusadores fazerem uso do poder que auferem dentro das instituições em que se enquadram em todos os momentos do “processo” de assédio.

As vítimas são pessoas com as quais têm uma relação de poder desigual e que se sentem impotentes perante os seus avanços. Essa relação também se verifica com muitas das testemunhas, o que facilita o seu silenciamento. O silêncio também é garantido pela esfera de influências que o cargo traz, criando uma rede de “open secrets” em que uns protegem os outros. E quando tudo falha e as denúncias acontecem, não há qualquer hesitação em usar a máquina institucional para tentar calar, distorcer, caluniar e pressionar as vítimas.

Felizmente, se toda a reação é causada por uma ação, todo o reacionarismo é causado por movimentos sociais e pelas suas conquistas, e isso não podia ser mais claro neste caso. Não é o apoio público que Hermoso tem recebido que surpreende numa Espanha pós “La Manada” e num mundo pós “Me Too”. É a forma como esse apoio se reflete agora na resposta de instituições que historicamente pouco têm feito para garantir o respeito pela dignidade das mulheres, ainda para mais das desportistas profissionais, que pode sinalizar ventos de mudança.

Começando por vários membros do Governo espanhol, incluindo o primeiro-ministro, Pedro Sanchez, que denunciaram o caso e exigiram consequências sérias para Luis Rubiales, até à FIFA, que o suspendeu por 90 dias, passando pelo Ministério Público espanhol, que abriu uma investigação ao ex-jogador, não parece haver margem para dúvidas: Rubiales não passará impune.

Também a RFEF, depois da forma vergonhosa como tentou desculpabilizar o seu presidente, parece vir a sofrer consequências. Além das jogadoras (e jogadores) que não regressarão à seleção caso os dirigentes que denunciam não sejam afastados, são os próprios dirigentes regionais das associações da federação a querer pôr ordem em casa: exigem a demissão do presidente, "uma profunda e iminente reestruturação orgânica dos cargos estratégicos da federação", que se "retire de imediato a última comunicação em nome da RFEF com a FIFA e a UEFA" e reforçam o compromisso de investir nas políticas para o fomento da igualdade e do desenvolvimento do futebol feminino.

Resta-nos agora esperar o desfecho deste caso, na esperança de que o atual bravado não seja sol de pouca dura, mas o início de uma nova fase em que o assédio sexual seja tratado com a seriedade que merece e reconhecido como o problema estrutural que é. É por isso que continuamos a lutar: por um mundo em que a falta de decoro de homens pequeninos não volte a ofuscar as conquistas de mulheres gigantes.